sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

O FUNERAL DO CARLITOS

Carlos Alberto Freire, outra figura carismática da cidade de Coimbra, também prestou a última homenagem ao "Carlitos"

(Fotos de baixo desviadas, com intenção, do semanário Campeão das Províncias"




Cerca das 10h30, na capela funerária da torre da igreja de São José, começaram as cerimónias fúnebres de Carlos Alberto dos Santos Duarte, mais conhecido por “Carlitos popó” ou “Carlitos pipi” consoante os dois destinos a que esteve ligado na Baixa de Coimbra e último figurante carismático.
Inicialmente anunciadas para a igreja central, “devido ao pouco público presente”, como disse o pároco celebrante, as cerimónias religiosas foram realizadas na pequena capela onde estava o corpo presente. Cerca de três dezenas de pessoas ouviram o presbítero na oração de encomenda da alma do finado.
Apesar do diminuto número de acompanhantes, os vários sectores de actividades profissionais a exercerem na Baixa estiveram muito bem representados. Desde a Cozinha Económica, com três irmãs vestidas de hábito de trabalho; ao comércio, com cerca de meia-dúzia de comerciantes a prestarem homenagem ao finado; à hotelaria, com patrões e empregados a deixarem marcado vinco de saudade; aos serviços, às trabalhadoras de vida difícil, com a lágrima no cantinho do olho no acto de despedida; até aos polidores de esquina, também em bom número de presenças. De salientar também a comparência espiritual de várias dezenas, centenas, ou senão milhares de lacrimosos do Facebook. Muito sério, sem sorrir, o rosto do “Carlitos” parecia agradecer a todos, aos materializados presentes e àqueles que em pensamento estiveram na sua partida para a última morada. De luvas brancas, o extinto parecia também agradecer à Câmara Municipal, à APBC, Agência para a Promoção da Baixa de Coimbra e à Confraria da Rainha Santa a invisível sentida consagração. De salientar que, aquando do transporte entre a igreja e o cemitério, a urna foi envolvida com uma cobertura onde era visível as armas da cidade.
No fim da missa, em homenagem póstuma ao “Carlitos”, foram lidos um bonito texto de António Castelo Branco, ex-animador social do Inatel, e duas poesias de um comerciante, que, dando pelo nome de Luís Fernandes, por acaso, até me pareceu chegado. No fim das leituras foram deixadas muitas palmas em despedida ao “Carlitos”, o “faz-tudo”, o “sete-ofícios” da Baixa de Coimbra, que agora partiu para não mais voltar.
Eis então o elogio de António Castelo Branco:

Carlitos:
Não sei quantos somos os que aqui estão para te dizert adeus. Mas somos seguramente muitos que contigo conviveram ao longo da tua vida nesta terra, se não no dia-a-dia, de certeza no decurso das tuas “estórias”. Coimbra parou ontem quando soube que nos tinhas deixado, as redes sociais fizeram eco da tua perda do nosso convívio, na cidade não se falava noutra coisa, a Baixa sentia-se de luto e a própria academia se rendeu à triste verdade que foi a tua partida.
Em antítese ao poder e à riqueza, às mordomias e às senhorias, às honrarias, às condecorações e aos demais títulos que por aqui proliferam, tu eras, e sempre foste o Carlos PIPI, o rei do Papelão. E nessa condição viveste, pobre como Jó, sem nunca e mesmo sem forças, deixares de contribuir para o teu pão de cada dia. E é nessa vertente da simplicidade, e num reconhecimento pelo exempo que nos deixas, de sem nada teres e tanto nos legares que aqui estamos. Que saudades não sentiremos de ti, quando amanhã olharmos para a Procissão da Rainha Santa e tu não vieres abri-la. E outro tanto acontecerá aquando das latadas, do Cortejo da Queima, dos desfiles dos bombeiros e de tantas outras manifestações onde sempre comparecias compenetradamente responsável e garboso. Era a tua forma mais ingénua de participar na vida desta cidade que agora te vê partir com mágoa, mas onde fica a tua memória.

E a seguir os dois poemas do tal Luís Fernandes. O primeiro, “Uma folha caída no Natal”, para que tomemos atenção aos diferentes entre iguais que pululam no nosso meio, e o segundo, “O Carlitos Popó”, em homenagem póstuma:


UMA FOLHA CAÍDA NO NATAL

É Dezembro…
Uma folha cai… lentamente…
Ziguezagueia por entre a amálgama de gente,
gente apressada, escrava do tempo,
insatisfeita, faces duras sem contento,
pisam a folha, alinhados em parada, com tacões,
ecoam na calçada… como centuriões,
as pedras vibram, com tanta precisão,
uma pedrinha solta-se na multidão,
alguém a pontapeia, ao acaso, em estopada,
e ela rolando, por cá e lá, vai sendo chutada;
O vento sopra, cortante, e a folha voa,
e de cima, olha para baixo, vê à toa,
este exército mal ordenado,
como se estivesse condenado,
a andar, a andar, sem se render,
mesmo sabendo que vai desaparecer,
continua a querer mais, a ambicionar
mesmo que por um metro de terra tenha de matar
e o menino de olhos tristes, cara meiga, faça chorar,
o que importa nesta guerra é o feito, o vencer,
a infelicidade não conta, mesmo sabendo que se vai morrer;
E de novo a folha cai… lentamente…
Um louco ri sozinho… desalmadamente,
pega na folha, com carinho, o anormal,
afaga-a com a mão, como se fosse um pardal,
faz caretas, gesticula, dança ao vento com nobreza,
embala a folha, dá-lhe beijos, filha da natureza,
nem o frio, a refrear o ímpeto, lhe faz mal,
ele sabe que é festa, não sabe que é Natal,
não sente a solidão, não conhece abraços,
não compreende a razão de tantos laços,
E de tantos rostos fechados com ar formal;
Alguns presentes e sacos enfeitados,
tantas almas embrulhadas,
tanto amor materializado,
tanto calor humano… desperdiçado
entre o dever e o ser,
só é gente com… o ter,
e a folha… lentamente,
nos braços de um demente,
sorri… para a turba disforme,
e pensa a folha, se eu falasse… uma frase conforme,
mesmo com a voz do tonto rouco, gritaria em altos berros:
AFINAL QUEM É O LOUCO??!

O “CARLITOS POPÓ”
(Poema póstumo)

Sou o Carlos Alberto Duarte,
todos me conhecem na Baixa,
uns tomam-me como baluarte,
outros como louco que encaixa
na senilidade do seu encarte;
Sou quase um vivo monumento,
na paisagem envolvente,
tenho um pressentimento
que para muitos não sou gente,
sou coisa sem sentimento;
Mas eu sou pessoa que ama,
dentro de mim bate um coração,
olho para quem passa, para a dama,
para a viúva triste sem consolação,
que olhando para mim, exclama:
Olha, é um maluco que aqui vai,
caminhando nas ruas sozinho,
pouco fala, parece que nunca sai
do Largo das Ameias, do cantinho,
pobrezinho, valha-o Deus, ajudai!”;
Mas contrariamente ao pensar,
sou feliz com pouco ter,
basta-me apenas não chorar,
que me importa não saber ler,
ou não ter telemóvel para falar?;
Apesar de não ser religioso,
mas até sou um bom cristão,
tantas vezes sou caridoso,
dou um braço, dou a mão,
por alguém mais andrajoso;
Desconheço o ódio, pois então!
gosto de qualquer humano,
quando vou na procissão,
em passo solene franciscano,
julgam-me um igual na razão.

UMA LINDA HOMENAGEM DA ACADEMIA

Chegado o féretro ao Cemitério da Conchada cerca de uma vintena de pessoas aguardava os restos mortais do “Carlitos”. Entre eles estava o "Pirilau", um dos figurões de outros tempos, felizmente ainda vivo, certamente por ser muito mais novo, tem agora 58 anos. No agrupamento perfilavam-se vários estudantes trajados a preceito. Depois da urna descer à terra o grupo de fado “Capas ao luar” tocou e cantou dois temas imortais, exactamente, no espírito da mesma imortalidade do “Popó”. Pela tristeza do fado, pela saudade implícita da canção coimbrã muitos acompanhantes faziam um grande esforço para suster as lágrimas. No fim de tudo uma enorme salva de palmas para o “Carlitos”.
Uma espectacular, uma bonita homenagem realizada pela academia coimbrã. Muitos parabéns pelo reconhecimento ao “Rei do Papelão”. Uma cerimónia singela, mas a mostrar que nem sempre, na última partida dos simples, o esquecimento prevalece.

1 comentário:

Anónimo disse...

sim e verdade foi com muito esforço que muitos tentaram não chorar .Carlitos pequeno em tamanho mas grande Homem