terça-feira, 8 de agosto de 2017

SEI QUE ESTÁS EM FESTA, BAIXA. VENHO HOJE E VOLTO PARA O ANO...





No Sábado de manhã, enquanto decorria a mostra de “Estátuas Vivas” na Baixa, um funcionário administrativo com cargo superior na Câmara Municipal, em vistoria à humana performance estática nas ruas estreitas, desviando-se do seu trajecto programado, um pouco ufano pelo sucesso da iniciativa que se comprovava por grupos de transeuntes parados a apreciar o desempenho artístico da “performer”, dirigiu-se-me assim: “Então, está gostar? A mostra vai merecer um comentário seu positivo?
Em diálogo curto, tentei explicar-lhe a minha posição sobre estas festas. Pouco ou nada convencido pela minha argumentação, foi à sua vida. Certamente na sua passagem, se olhou para dentro dos estabelecimentos comerciais, teria visto que as lojas, apesar do envolvimento da festividade, estavam vazias. Mesmo com as mostras artísticas a decorrer durante a tarde, às 13h00 o comércio nas ruelas estreitas praticamente encerrou quase na totalidade e deixando os artistas imóveis como se fossem mesmo estátuas reais.
Antes de prosseguir vou fazer uma declaração de interesses. Pelo pessimismo notório, por me sentir uma espécie de “Medina Carreira do comércio tradicional”, nos últimos tempos tenho vindo a deixar de escrever sobre o que se passa e como interpreto o que está acontecer na Baixa. A cada dia que passa cada vez mais estou convencido que estou sozinho a falar para o vento e, a ser assim, não sendo entendido, nem pelos mais interessados, os comerciantes, nem pelo poder político que apenas está arrebatado no resultado final de sucesso que transparece para o público e pouco preocupado com o que está acontecer de facto, só me resta mesmo cuidar de mim.
Repetindo o que defendo há alguns anos, e foi isto mesmo que tentei mostrar ao funcionário camarário, o que a edilidade está a fazer são festas para “turista ver” e que para o comércio de rua não traz absolutamente nada. São como fogo de artifício a ribombar no ar. Saliento que, com esta crítica, não pretendo destruir o trabalho apresentado e realizado pela autarquia. Discuto os meios e os fins que levam à concretização e não o que se apresenta ao público. O que afirmo é que estas festas, pelos elevados montantes gastos, não estão a ser devidamente canalizadas para a revitalização da Baixa. São formadoras de uma atmosfera festivaleira, oca, panfletária e sem conteúdo, e, para quem está de fora, para quem aprecia sem se questionar para que serve, cativa simpatias e gera ovação na aparência. Têm um elevado pendor político de “show-off”, um faz de conta associado, que a todo o custo querem retratar uma realidade que não existe. Com a conivência da comunicação social, escrita e falada, que só revela a fachada e não o interior, ostenta-se um centro comercial de vida, pujante de turismo, que está na moda, activo e a mexer, como nenhum outro nacional. Neste quadro falseado, a cidade muito fica a dever à SIC. Só para exemplificar, na penúltima sexta-feira, sob responsabilidade da APBC, Agência para a Promoção da Baixa de Coimbra, foi realizada mais uma “Noite Branca”, pretensamente com o comércio aberto até à meia-noite, com “Dj's” a actuarem em algumas praças e outros músicos dentro de algumas lojas. Quem viu a reportagem no canal privado, mais que certo, ficou impressionado. O que não se disse na peça é que pouco mais de meia-dúzia de estabelecimentos comerciais estiveram abertos. No Sábado, no “Primeiro Jornal”, a mesma coisa acerca das “Estátuas Vivas”. Como não foi exibida a rectaguarda desta alegoria, o que perpassa é um êxito jamais visto. Nestas reportagens de pendor duvidoso na seriedade, nunca são entrevistados comerciantes extra-organização para saber o que pensam destas celebrações.
A questão é que, em face do alegado triunfo destes eventos, e não havendo contraditório, para o cidadão comum que vê a farra do lado de fora como um banquete gratuito, tomando conta da não adesão do comércio, há uma tendência para a exaltação do poder político e na culpabilização dos comerciantes. Ora, está visto, isto é o pleno que os dirigentes autárquicos pretendem atingir, falando de Coimbra como outras cidades, fazer de conta que está a alavancar a recuperação dos seus centros históricos. Pura mentira! Inegável aldrabice! Digo eu, que também não serei credível para muitos.

LADO-A-LADO, UM CONCERTO E UM FUNERAL

Para muitos dos que não fazendo parte da grande família comercial e seguem o que persistentemente tento transmitir, estou em crer, mesmo vendo o que está a acontecer, com ramos de negócio a desaparecer, uns atrás dos outros, tomam-me como exagerado. Uma espécie de anjo da desgraça. Para os outros, os que estão imbricados com a mão na massa, os que aqui ganham a vida, sabem que o que escrevo é verdade mas, aceitando passivamente, preferem não se manifestar. Em jeito de protesto mudo de costas voltadas, o seu maior ruído percepcionado a ecoar no silêncio é a manifesta falta de colaboração nestes festejos. Em metáfora, é assim que, pela imagem de lojas fechadas num desinteresse bem vincado e a banda a tocar, parece um funeral e um concerto musical a conviverem no mesmo espaço. Nos últimos dias encerraram três estabelecimentos na Baixa.

MAS, AFINAL, O QUE É QUE SE PODE FAZER?

Até parece que escrevendo muito sobre o comércio de rua, na linha de salvação, sou senhor de grandes saídas reveladoras. Não, em confissão e com a humildade possível, não detenho soluções milagrosas. Tenho para mim que, de uma maneira geral, o estado de desgraça é de tal modo caótico, e atingiu tal gravidade, que já não haverá recurso possível para o inevitável desaparecimento da loja tradicional de rua. Sem querer parecer profeta do infortúnio, acredito que, sem tardar muito, se continuar a elevada carga fiscal sobre a pequeníssima empresa, vão ser as câmaras municipais a ocupar-se dos espaços comerciais, colocando lá funcionários pagos pelo erário público para dar vida às cidades e vilas.
Dando crédito, basta atentar às actuais quotas de mercado divulgadas nos últimos tempos: comércio online já ocupa uma fatia de cerca de 51% -com tendência para aumentar-; grandes superfícies cerca de 41%; comércio de rua cerca de 8%. Se, por um lado, se verifica que o comerciante tradicional resiste a novas formas informais de transaccionar, o que resulta em seu prejuízo, por outro, também é certo que, sendo o mais vulnerável, é atacado por todos os lados e até por si mesmo. Vejamos algumas debilidades que se detectam a olho nu:

-É ofendido pela crise, na diminuição drástica dos rendimentos, que redunda na queda da procura;
-Pela oferta desmesurada, em concorrência feroz, que contribui para o embaratecimentos dos produtos, com curtas margens de comercialização, e que provoca a deflacção;
-Pela mudança dos costumes, na troca do ter pelo ser, isto é, abdicando dos bens materiais em prole do imaterial, como viagens e prazeres perecíveis e imediatos. Pela desvalorização das coisas, em opção por outras escolhas, o adquirir e ficar amarrado ao futuro deixou de ser opção;
-Pela intencional desregulação das leis de mercado, com promoções diárias, debilitando o pequeno investidor e favorecendo os grandes grupos;
-Pelas vendas particulares em populares sites da Internet, em que poucos pagarão um cêntimo de impostos, em que é desencadeada uma luta desigual com a conivência do Estado. O lojista está encurralado. Para além de não conseguir fugir a nada, com custos fixos exacerbados, está preso a malhas administrativas e a obrigações fiscais de confisco;
-Pelas feiras e mercados, nascidos como cogumelos por esse Portugal fora, apadrinhados pelas câmaras municipais. Apresentados como revivificadores salvíficos dos lugares, poucos parecem perceber que, contrariamente ao apregoado em que se tenta fazer crer ser complementar, com estas medidas, estão a acelerar a morte do que resta da antiga loja tradicional;
-Pela desertificação habitacional nos grandes centros urbanos, as lojas (sobre)vivem apenas dos imprevisíveis passantes. O cliente fidelizado ao longo de décadas desapareceu;
-Pelo abandono e carência de políticas locais e governamentais de desenvolvimento;
-Pelo desinteresse como as entidades nacionais ligadas ao turismo desprezam o comércio de rua. Apenas se interessam pelo alojamento e hotelaria em geral;
-Pela desunião de classe e fraca capacidade de reivindicação. o comerciante tradicional, maioritariamente sexagenário, raramente ou nunca fala das suas dificuldades económicas. Morre sempre envolto num silêncio sepulcral.

Assim a continuar, só sobreviverão os negócios únicos no seu género e sem concorrência e aqueles que estejam virados para o turismo massificado -enquanto durar o trânsito internacional de pessoas, porque, como sabemos, o turismo é um sector muito oscilante e dependente de vários factores.

SUA EXCELÊNCIA O TURISTA “PÉ-DESCALÇO”

Segundo as estatísticas do INE, Instituto Nacional de Estatística, divulgadas na última sexta-feira, “o ano de 2016 foi o melhor de sempre para actividade no Centro, que registou crescimentos na ordem dos dois dígitos a nível de hóspedes, dormidas e receitas”, in Diário de Coimbra.
Ainda no mesmo diário, citando a Turismo Centro de Portugal, é referido que este crescimento revela “maior expressão nos mercados externos”, com um auento de 13%, para 2,36 milhões de dormidas. (…) Estes números comprovam os dados preliminares de que já dispúnhamos. E comprovam também que a estratégia que definimos é a mais correcta”, afirma Pedro Machado” (presidente da Turismo Centro de Portugal).
Como já percebi há muito, para a Turismo Centro de Portugal, o comércio de Coimbra não merece qualquer referência, seja sobre esta actual declaração do INE seja sobre outra qualquer passada. O que contam são as dormidas, o resto é paisagem.
Atente-se no facto de, progressivamente e sobretudo este ano, o turista ser cada vez mais “low-cost”, de baixo consumo, mochila e tenda às costas e telemóvel a captar imagens sem pedir licença.
Em Coimbra verifica-se que a classificação de Património Mundial, atribuído pela Unesco, foi um grande negócio para a Universidade. Melhor dizendo, uma escandalosa classificação que, para além da hotelaria e algum comércio de cortiça, pouco trouxe à Baixa e à cidade. Um falhanço clamoroso. Com rotas viciadas, entre o Hotel Astória e a Praça Dom Diniz, a cidade, e nomeadamente a Baixa, com a Rua da Sofia abandonada, fica a vê-los passar na rota programada ao milímetro. Uma vergonha que poucos admitem! Quem leu ontem o Diário as Beiras ficou a saber que “O turismo da Universidade de Coimbra vai facturar quatro milhões este ano”. Continuando a citar o periódico, “A afluência de turistas à Universidade de Coimbra continua a aumentar, esperando-se que este ano ultrapasse o meio-milhão. A larga maioria dos visitantes são estrangeiros, mas o número de portugueses está a aumentar”. Ou seja, quando a actividade comercial na Baixa morre um pouco todos os dias, a Universidade, fazendo concorrência aos privados na venda de artigos alegóricos, engorda perante o regozijo dos seus responsáveis e com o beneplácito da autarquia, que não tem coragem de pôr fim a esta arbitrariedade que redunda numa aviltante discriminação, e da Turismo Centro Portugal, que, pela voz do seu presidente, nega estar a favorecer a Universidade em detrimento da Baixa no seu todo. Defendendo a mesma cartilha doutrinal, a Câmara Municipal de Coimbra, pela voz da vereadora da Cultura, afirma que estão todos a trabalhar em conjunto para tornar Coimbra uma cidade melhor. Entretanto as grandes casas centenárias de comércio vão encerrando.
Para quem permanecer na Baixa, aguardemos com serenidade o cair do pano desta comédia trágica para os que, por insolvência, partem e para os que, a conta-gotas, se vão aguentando e tentam ganhar a vida. Já agora, porque a classificação consignada obedece a uma série de requisitos, esperemos que a UNESCO não leia esta crónica.


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