sábado, 8 de novembro de 2014

LEIA O DESPERTAR...



LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA 

Para além  do texto "UMA CALÇADA ARMADILHADA", deixo também as crónicas "A MANGO CONTINUA ENTRE NÓS"; "DIREÇÃO DO RANCHO DE COIMBRA DEMISSIONÁRIA"; "REFLEXÃO: O DIA DE FINADOS QUE MORREU".


UMA CALÇADA ARMADILHADA

Edmar Ferreira, funcionário da firma A. Loureiro, e Gualter Oliveira, proprietário da Ourivesaria Marialva, vizinhos, porta com porta na Rua Visconde da Luz, já perderam a conta às vezes que saíram espavoridos das suas lojas para darem uma mão a alguém que se estatelou em frente aos seus estabelecimentos.
Segundo Edmar Ferreira, “sabe o que é, Luís, o passeio deu-se, cedeu, e está completamente desnivelado. As pessoas vêm descansadas e, de repente, falta-lhes chão. Ainda ontem uma senhora caiu aqui. Corri para ela e ajudei-a a erguer-se. Perguntei se tinha ficado ferida mas respondeu que não. A esfregar os joelhos, mais que certo com dores, lá seguiu a coxear em sobe e desce e em busca de uma calçada menos agressiva.
Também Gualter Oliveira está desgostoso com a armadilha que está à sua porta e acrescenta: “quando chove ficam aqui umas poças de água e ainda é pior! Isto está uma lástima!”
De salientar que, no geral, os pisos em calçada portuguesa em toda a Baixa está uma calamidade. Os buracos com falta de pedras são incontáveis. A situação não está pior por que alguns comerciantes, dentro das suas possibilidades, vão remendando, ora calcetando, ora colocando cimento para que ninguém se magoe. Está de ver que, quando se chega a este ponto, alguma coisa não bate certo. Estes arranjos minimalistas não dão sorrisos e simpatias para o executivo? Sei lá! Se calhar não!


A MANGO CONTINUA ENTRE NÓS

Há cerca de duas semanas escrevi aqui que a Mango, na Rua Ferreira Borges, corria risco de vida, sobretudo a sua permanência na Baixa. Havia um diferendo, uma questão a resolver de aumento de renda, entre o atual proprietário e o inquilino, o comerciante que explora a marca e que detém também uma grande loja no Fórum Coimbra. Ambos estavam dentro da sua legitimidade. O primeiro, o proprietário, argumentava que a renda praticada há vários anos estava muito abaixo e o segundo, o locador, como é natural, invocava que o aumento seria incomportável para o momento comercial e ameaçava abandonar o Centro Histórico.
Sem me alongar, dentro de uma escrita de influência –que é o modo como me coloco-, procurando o melhor para todos, entrevistei um dos dois proprietários que pretendia legitimamente elevar o seu rendimento patrimonial e publiquei no jornal O Despertar. Consegui que da sua parte houvesse um comprometimento de que, de facto, também procurava o melhor para todos. Ou seja, era sua intenção chegar a acordo com o seu inquilino. E foi o que aconteceu. Através de uma fonte que pediu o anonimato, soube que ambos chegaram a bom termo e a marca Mango, para gáudio de todos nós, vai manter-se por cá.
Gostava de conseguir descrever o quanto sinto regozijo por perceber que, quer o dono do prédio da Mango quer o arrendatário, ambos, sem descurar o seu proveito individual, puseram o interesse social acima do pessoal. Ora quando assim é, sem dúvida que estamos perante cavalheiros de calibre singular. Por isso mesmo, para os dois, uma enorme salva de palmas! Em nome dos cinco funcionários da Mango, em nome da Baixa, se posso escrever assim, muito obrigados!


DIRECÇÃO DO RANCHO DE COIMBRA DEMISSIONÁRIA

A Assembleia Geral, marcada para as 20h00, de quinta-feira da semana passada, nos editais distribuídos pela Baixa e publicado n’O Despertar, começou uma hora depois, às 21h00, no Rancho das Tricanas de Coimbra. A reunião prometia fazer correr insultos e mais que desse. Ao que parece, em agosto, um ensaio de folclore acabou em ensaio de pancadaria entre mulheres e sentia-se a tensão entre o grupo de cerca de uma vintena de associados presentes. Como em tudo o que são movimentos associativos de pessoas, há sempre duas correntes, uma que vai na onda e outra que vai contra.
A liderar a assembleia, como presidente eleito, no meio da mesa, estava Carlos Clemente –que, embora o Rancho se mantivesse inativo durante os últimos anos, até ao anterior sufrágio, e durante vários mandatos, comandou uma das mais antigas coletividades da Baixa de Coimbra. Ao seu lado direito, acompanhado por alguns membros do atual executivo, estava Luís Montenegro, o presidente da direção.
Mal começou o congresso, imediatamente, estalaram as hostilidades contra Montenegro. Lançado por uma associada, caiu logo um petardo de “mentiroso”. A coisa prometia serrabulho. A assistência, com uma vontade danada de despejar o que levava na alma e atropelando-se nas intervenções, como se estivesse no Coliseu Romano, revolvia-se inquieta e pedia sangue. Como um sino a bater Trindades, uma voz proclamava: “Eu quero saber da minha carta de demissão!”
Clemente, adivinhando violência verbal, puxou dos seus galões de apaziguador e ao mesmo tempo ia contando aquela história velha e nossa conhecida: “no meu tempo era assim!”. O problema era que ali havia demasiada areia para a sua camioneta e acabou a enfiar os pés pelas mãos. Ora misturava o seu papel de presidente da assembleia, onde há necessidade de ser árbitro imparcial, ora amassava reivindicações de associado comum e fazia de relator com perguntas. Para seguidamente, centralizando tudo, dar as respostas carregadas de paternalismo para com Montenegro e admoestando a assembleia: “não podemos sacrificar o senhor presidente da direcção. Provavelmente ele delegou nas pessoas erradas!”. Ocupando todo o espaço áudio, impunha silêncio e reinava na pequena sala onde a ignorância geral se apanhava às pazadas. Não dava a palavra a alguns sócios que, alegadamente, não teriam as quotas em dia –estes defendiam que não puderam pagar por não saberem o seu número de associado e mais coisas e tais. Montenegro, ao lado de Clemente, enfiado na cadeira, como passarinho encolhido, como se apelasse a um qualquer santo “tira-me daqui”, via, ouvia, abanava a cabeça e nada dizia. Lá no canto da sala um já desaparecido ensaiador que faz tijolo há muitas décadas, em foto a preto e branco, parecia ensimesmado com tudo o que se estava a passar à frente dos seus olhos e não parecia querer sair da terra onde jaz e voltar para o meio daquele forrobodó. Até a Tricana de Coimbra, bem retratada na tela, provavelmente por António Vitorino na década de 1930, estava incomodada com a situação e sugeria querer dizer: “levem-me daqui!”
No calor da noite e da discussão cruzada, dois associados ameaçaram abandonar a sessão mas, depois de divinos apelos à serenidade, lá voltaram a sentar-se. E mais uma vez se ouviu: “eu quero saber da minha carta de demissão!”
No fim do encontro Luís Montenegro assumiu que, pelos interesses da coletividade, estava a tentar que a direção não caísse mas, perante o que se passou nesta Assembleia Geral, não estava para aguentar tanto desaforo, -que lhe tirava anos de vida, descanso e dinheiro- e iria apresentar a sua demissão.
Vamos aguardar as cenas dos próximos capítulos.


REFLEXÃO: O DIA DE FINADOS QUE MORREU

Os relógios bateram há pouco as onze badaladas neste primeiro dia de novembro, conhecido há mais de um século pelo povo como Dia de Finados, dia dos mortos, em respeito por quem partiu, elegia à vida. Retirado do calendário como Dia Santo, pelo Governo, a maioria dos estabelecimentos comerciais na Baixa estão abertos ao público mas, na generalidade, sem ninguém a comprar. Mesmo as poucas lojas de flores estão sem gente. Os passantes olham para os cravos e crisântemos como um elefante olha para um quadro de Picasso.
Está um tempo acinzentado. Respira-se uma estranha apatia no ar, uma atmosfera que se apanha numa qualquer localidade costeira com a neblina a envolver, a tomar o passo e a refrear a ansiedade. Os transeuntes, de rosto fechado, sem grandes manifestações de alegria e como se transportassem o credo na boca, calcorreiam as ruas calcetadas desta parte velha.
A Praça 8 de Maio, há poucos anos, quando era Dia Santo estaria cheia de flores e com o seu perfume a entrar na Igreja de Santa Cruz e a invadir tudo em redor, agora, sem cheiro como num deserto de areia, está abraçada pela modorra colada e incómoda. Nas portas da autarquia uma agente da Polícia Municipal olha o Céu e, quem sabe, dará graças a Deus por ter trabalho ainda que pouco profícuo na data de hoje. No largo, junto ao monumento ao descanso dos trabalhadores romenos, a lembrar o São Martinho e um comércio em desaparecimento, um casal, a senhora Natália e o marido, e a senhora Adelaide, ambos vendedores de castanhas, estão junto dos carrinhos anodizados e harmonizados pelas normas securitárias da Comunidade Europeia -creio, poucos se terão apercebido da transformação. Estão a destruir o património cultural, a memória do povo! Por que é que quem manda é tão estúpido? Não haverá alguém que impeça este genocídio cultural? Era bom saber quantas pessoas morreram nas últimas décadas por efeito dos carrinhos tradicionais.
Na rampa de acesso à Rua Visconde da Luz, o Pino, o vendedor da revista Cais, que já faz parte da paisagem urbana, está sentado no parapeito de pedra e, pelos traços do rosto, demonstra pouco ânimo em continuar e está arrumar as coisas numa sacola. A dois passos, não fossem os sons melódicos de dois músicos e estaríamos na cidade do silêncio. Junto ao novo ou velho banco Espirito Santo, a cantar, ironicamente, a “menina dos olhos tristes”, de José Afonso. Mais à frente, na Rua Ferreira Borges, junto ao Milénio BCP, novo ou velho, o Luís Bartolesi a soprar o seu saxofone, a arrancar uma melodia tristonha faz gelhas na sua fronte.
Não se avistam crianças a cravar uma moeda com os saudosos “Bolinhos e Bolinhós”. Esta manifestação cultural e popular, tão arreigada à prática de antanho, está em coma e, perante a indiferença da maioria, vai morrer. No seu lugar, para uma elite, está a nova moda importada dos Estados Unidos, a noite de halloween. Como se precisássemos de bruxas para levar a saudade! Mais à frente a Celeste Correia, a mulher de todas as causas, veste um colete vermelho da Liga contra o Cancro e tenta cravar os amigos, os conhecidos e outros tantos com uma moeda.
O Largo da Portagem, como de costume, apresenta-se bem. As lojas da Rua de Sargento-Mor, tal como as restantes, apresentam-se vazias de clientes. Na Praça do Comércio, em frente à Igreja de São Tiago, o Cadaxo, um caminheiro solitário destes becos e ruelas, entretém-se a dar pão aos pombos e, sem humanos para trocar ideias, monologa com os animais voadores.
Na Rua das Padeiras, a dona Paula, florista e proprietária da Orquídea Silvestre, está à porta. Adianta-me que o Dia de Finados morreu. Devido ao Governo ter enterrado o feriado, poucos são os que ainda compram flores para os cemitérios. Servem-se de algumas rosas e outras plantas simples dos seus jardins.
No Mercado Municipal Dom Pedro V, embora se apresente bastante florido, já não é como antigamente em que, neste dia, a flor era a rainha da antiga praça citadina. No andar superior, uma vendedeira, a meu pedido, confidenciando que foi pior a emenda que o soneto, aproveita para interrogar: “o Governo, ao pretender abolir o este dia para aumentar a produtividade, rebentou com a venda de flores e velas. O País ganhou alguma coisa com a troca?”



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