sábado, 27 de setembro de 2014

OS MENDIGOS DAS PALAVRAS





Estão em todas as encruzilhadas dos caminhos. Encontramo-los em qualquer esquina de uma qualquer rua. Damos de chofre com eles numa qualquer paragem de autocarro. As suas vestes tanto podem ser ricas como, pelo contrário, serem humildes e retratos de indigência. Em todos há pormenores que os aproximam: os seus cabelos desgrenhados e baços, o seu olhar desconsolado e sem brilho, os ombros descaídos a deixar sobrar tecido para pouco corpo e o implícito ar de abandono mostrado na barba por escanhoar, que carregam ao alcance de um vislumbre mais apurado. Ao nosso lado, podem permanecer estáticos, como se fossem portadores do medo de serem rejeitados ou, pelo contrário, chamarem a nossa atenção com uma singela infantilidade.
São os novos mendigos das cidades. Não estendem a mão, não rogam nada por palavras, no entanto são pedintes de atenção. Os seus olhos amargurados, como paisagem bucólica de negritude, mostram a tristeza que a sua alma carrega. Desde um amor desperdiçado, a um filho perdido nas malhas da droga, até um casamento preso por fios de nada e amarrado a conveniências mútuas para não se perder a segurança material, tudo transportam na sacola da sua existência. Pelos recalcamentos e frustrações marteladas, já há muito que deixaram de vociferar contra o Governo acusando-o de ser o causador das suas dívidas camufladas e destruidor da sua felicidade perdida. São baterias de energia acumulada. São as novas bombas humanas de deflagração do Ocidente. São os surdos kamikases do nosso tempo. Será sempre de supor que virarão a sua ira contra si mesmo, no entanto, mesmo em possibilidade remota, tomemos atenção às suas manifestações de ambiguidade entre a previsível loucura e a apatia inconsciente. Podem a qualquer momento explodir e desencadearem tragédias iminentes.
Se por acaso, em conversa de ocasião, despoletamos a sua descarga emocional teremos muita dificuldade em descolar. Colam-se como molusco na pedra batida em busca do último reduto. As conversas, como linhas e entrelinhas, engatam umas nas outras e dificilmente têm um resguardo que lhe ponha fim. Querem apenas ser ouvidos. Se forem interrompidos, pedem espera ao interlocutor e prosseguem a longa viagem através da memória. É natural que a narração seja acompanhada por lágrimas ardentes de sofrimento. Ali, na nossa frente, está uma pessoa desfeita em partículas de solidão. Ao alcance da nossa mão está o nosso espectro, a projecção de nós, como se nos mirássemos ao espelho.
Algumas vezes de cultura superior, verificamos amiúde que são sujeitos de extrema sensibilidade para as artes, quase sensitivos e carregados de espiritualidade. Parecem fantasmas que trazem consigo um mapa malfadado de pecados praticados em outra vida e que, por força de um destino desconhecido, têm de penar em busca de uma aceitabilidade e um aperfeiçoamento terreno. São uma espécie de inadaptados a este tempo de agora, que se diz moderno, onde poucos comunicam por palavras e muitos, a maioria, se faz transmitir através por dois dedos num teclado. São órfãos de pai e mãe nesta época onde o individualismo é a argamassa que liga o eu ao eu e o eu ao tu. São os novos ciganos das urbes que, como nómadas em área sedentarizada, desde o banco de jardim à cadeira de esplanada, poisam e acampam em qualquer lugar.
A comunicação natural, enquanto significado de partilha humana assente na frase, no olhar, no ouvir e no gestual, está a desaparecer a grande velocidade. O seu lugar foi ocupado pelo artificialismo da máquina -interessante como todos pensamos que o planeta encolheu e tudo está mais próximo. Nunca como até agora houve tanta possibilidade de transmissão entre pessoas. Mas se analisarmos ao pormenor, constatamos que cada vez estamos mais distantes e esvaziamos os afectos. Sentimentos como a amizade, o amor e a solidariedade são expressões praticamente sem sentido neste mundo globalizado. Sem termos noção, estamos a destruir o intrínseco, a originalidade do ser humano. Tudo indica que vão ser precisas várias gerações para recuperar o que se está perder. A menos que, nesta dinâmica, estejamos a evoluir para um novo homem, um passageiro do tempo. Mais autómato, mais frio de sentimentos e calculista, facilmente manipulável pelo desconhecimento do que o rodeia, sem opinião própria, este indivíduo não pode trazer nada de bom às sociedades futuras.
Porque vai reconhecê-lo facilmente, quando passar por um deste isolado mendicante dê-lhe um sorriso e uma palavra. Não esqueça, todos estamos a caminhar para este mesmo isolamento. No limite, pode ser que ainda se possa recuperar a essência perdida.



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