segunda-feira, 20 de maio de 2013

UMA ENTREVISTA, POR ACASO...



UMA ENTREVISTA, POR ACASO…



 Praticamente, com raras excepções, almoço todos os dias no “Marcius”, na Rua da Sofia. Enquanto estou sentado num dos bancos do balcão, do pequeno snack-bar onde cabe apenas uma dezena de pessoas um pouco apertadas, vou mirando o aspecto cansado do casal Victor Pereira e da Graça Santos –a Dona Graça, como é gentilmente tratada por todos, pelo respeito conquistado à força de trabalho, da luta e do sacrifício diário. Enquanto mastigo as habituais delícias pantagruélicas, inimigas do meu ventre e que me deveria tornar comedido, sou sempre acometido por dois pensamentos. Um deles é o facto da Dona Graça ser, para mim, a melhor cozinheira da cidade e, como águia aprisionada cujo destino é voar, ter de se manter engaiolada ali num espaço tão exíguo e não poder mandar-se ao vento; outro é eu sentir que, por tal pitéu primoroso, pago tão pouco e estou a participar numa injustiça, onde o mérito não está a ser legitimamente relevado e ressarcido. Desde há meia dúzia de anos, quando entre 2007 e 2009, foi assaltada 15 vezes no seu anterior estabelecimento, na Rua Velha, e, pela passividade camarária foi obrigada a claudicar, que passei a ver esta senhora como modelo de uma descomunal força invisível que se apreende mas não se vê. Vamos ouvir a Dona Graça:

“Tenho muita saudade da Rua Velha, senhor Luís  –e uma lágrima mais afoita começa a balouçar entre cai e não cai. Foram muitos anos. Mais de uma dezena que por lá passei. Embora seja aqui muito bem tratada por toda a clientela, e também esteja na Baixa, lá, na Baixinha –porque há mesmo duas classificações em divisória para a mesma área-, onde tinha a minha tasca, era um ambiente diferente. Naquelas ruas estreitas está o coração, o pulsar de vida, a essência natural das coisas. A sua ambiência pitoresca, peculiar, pura, é como um cosmo no Universo, uma pequena aldeia no meio de uma grande cidade onde todos se conhecem. Ali tinha a amizade sincera, a camaradagem. Deixei lá muitos amigos. Ainda que, volta e meia, me visitem já não é a mesma coisa. Embora estejamos apenas separados por uma rua larga as pessoas afastam-se. Tenho mesmo muitas saudades desse tempo –e os seus olhos parados ficam presos numa imagem perdida no vácuo. Graças a Deus, o meu negócio aqui, na Rua da Sofia, está a correr bem. Tenho muita clientela. O problema é que, para o manter, sou obrigada a levar barato e tenho pouco lucro. Trabalho cada vez mais para ganhar cada vez menos. Quer dizer, como sou poupada e trabalhadora, tenho as minhas contas em dia, entende? Também faço por isso. Esforço-me muito, sabe? Trabalho 14 horas por dia, sábados e domingos. Depois deste meu horário ainda vou fazer umas horas para outro serviço externo ao meu snack. Tenho de me multiplicar para fazer face às despesas. Naturalmente que nesta descrição incluo o empenho do meu Victor, o meu marido, que trabalha aqui comigo a tempo inteiro.
Às vezes custa-me a entender a razão de as pessoas não virem à Baixa. Esta zona tem tudo. Por cá compra-se mais barato do que nas grandes superfícies. Há melhor qualidade nos produtos. Sendo assim, porque se afastam as pessoas da zona histórica? Interrogo-me e não consigo chegar a uma conclusão. Houve interesses em licenciar as grandes superfícies. Por parte dos executivos dos últimos 20 anos, houve desleixo e um deixar-correr o marfim. A cidade já há muito que está esgotada na oferta. No entanto, pasme-se, continuam os licenciamentos. Nunca se fizeram estudos de impacto comercial. Trataram sempre os comerciantes da Baixa como coisas descartáveis. Sinto uma profunda raiva, e, ao mesmo tempo, uma intensa frustração que me consome a alma; uma impotência surda pelo que está acontecer. Os comerciantes também têm muita culpa no cartório; aceitaram sempre tudo, sem um queixume, um ai. Nunca levantaram a voz. Se eu pudesse encerrava a Baixa durante uma semana. Talvez assim, residentes na cidade e políticos da Praça 8 de Maio, verificassem que faz falta. Nunca aceito propaganda no meu bar das grandes superfícies. Isso é que era bom! Se não nos deixam lá publicitar os nossos produtos vêm para aqui? Homessa! Estas grandes áreas foram as grandes responsáveis pelo estado a que isto chegou. Foram a bomba de neutrões que tudo destruiu, história, edificado, vidas, famílias inteiras. Os políticos da última vintena de anos, que passaram nos paços do concelho e contribuíram para a degradação ambiental desta zona, deveriam ser todos julgados em processo comum por atentado à dignidade da pessoa humana. Sinto uma enorme tristeza  –encolhe o queixo, cerra os dentes, e novamente os olhos se inundam. Quando vejo comerciantes, que trabalharam toda a vida e contribuíram para a Segurança Social, encerrarem e ficarem na miséria dá-me uma dor no peito. Porra! Não se trata assim nem os animais quanto mais gente!
Acredito no futuro da Baixa. Mas sabe? O problema é que a recuperação vai demorar mais de uma década. E quem é que lá chega? Dos que estão agora, quase de certeza, nem um lá vai chegar para festejar! O executivo municipal deveria dar amparo. Não quer saber. O estacionamento público deveria ser gratuito durante as primeiras duas horas para permitir que mais gente cá viesse comprar. Perante o que está acontecer, os dramas estão à vista de todos –você sabia que amputaram uma perna ao senhor Manuel Magalhães, da desaparecida Sapataria Reis? Coitado! Acabar assim! A edilidade deveria isentar todos os novos licenciamentos para investimento e desonerar as taxas de toldos e publicidade a quem cá está e faz um esforço danado para se aguentar. Não se sente nenhum apoio por parte da autarquia. É assim uma coisa estranha, que está no meio de nós mas não faz parte de nós –e note, este sentimento já vem de longe. Não digo isto por questões partidárias. Essa questão dos partidos transcende-me. Eles, como reis num palácio, estão lá mas não sabem nada do que se passa aqui nas ruas, nas lojas, nas casas com pessoas a passarem fome. O deles, o seu ordenado, está certo, sabe? Esse, verdadeiramente, é a causa de todos os nossos problemas. Estamos a ser dirigidos por pessoas que não têm o mínimo de sensibilidade social. Com tantos edifícios devolutos, levam daqui cada vez mais serviços públicos e transferem-nos para a periferia. Querem o quê? Eu gostava de ter um presidente de Câmara dinâmico, que olhasse nos olhos os pequenos comerciantes. Estive tantos anos na Rua Velha e aqui há cerca de cinco anos e, nem este (Barbosa de Melo) nem o anterior (Carlos Encarnação), nunca os vi no meu estabelecimento. Gostava de ver um presidente, pelo menos uma vez num mandato e fora da campanha eleitoral, a entrar por aquela porta e que me cumprimentasse. Por culpa deles, há um enorme divórcio entre os políticos eleitos e nós, pequenos empresários. Estamos a viver um momento de sufoco. Para nos aguentarmos deveriam embaratecer a Luz, a água, as taxas, os impostos. Como se colocassem uma gota de veneno diariamente no nosso prato, estão a matar-nos lentamente. Se continuar assim é impossível sobrevivermos.
Penso muitas vezes em abandonar a Baixa  –por vontade do meu Victor já tinha ido há muito. Mas sabe? Não gosto de deixar nada a meio. Não gosto de desistir. Se fosse mais nova emigrava. Cada vez me sinto menos gente e mais coisa com as pessoas responsáveis pelo nosso destino. Sinto-me inferior, discriminada. Sinto ser um joguete nas mãos e na vontade de quem nos governa. Apesar de tudo, ainda conservo alguma esperança que isto um dia mude. Este sistema que nos rege está falido. Temo muito pelos meus netos. Acredita?”






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