terça-feira, 10 de maio de 2011

BAIXA: NÃO MAIS HAVERÁ PÁSCOA PARA O REIS





 Hoje, de manhã, apanhei um murro no estômago. A sapataria Reis, na Rua Eduardo Coelho e com frente para o Largo da Freiria, encerrou. Dizer isto sem chorar é difícil.  Este estabelecimento tinha cerca de oito décadas. Esta venda, até ontem, para além de vender sapatos era um livro de memórias. Aqui, nestes cerca de 30 metros quadrados, se amou, aqui certamente se odiou, aqui se criaram famílias e ajudou o país no seu desenvolvimento ao longo de todo o último século.
É certo que as lojas são coisas. Estarão para a cidade como as plantas para um jardim. Se morre uma flor já velhinha e entendemos que o seu desaparecimento seria inevitável pelas leis da natureza até aceitamos. Mas se o seu declínio foi causado por alguém intencionalmente, isso, para além de doer, cria revolta. Não quero dizer com isto que a sapataria Reis encerrasse porque alguém, particularmente, decidisse prejudicá-la e o estabelecimento claudicou. O que quero dizer é que nesta selva em que se transformou o comércio não haverá apenas um culpado, mas uma corrente criminosa que, como máquina em autofagia, paulatinamente vai dilacerando, um a um, todos os estabelecimentos comerciais das cidades envelhecidas pelo peso da história.
Poucos se importarão que há meia dúzia de anos atrás este pequeno comércio desse trabalho a três pessoas. Poucos se afligirão que o Manuel Magalhães, de 72 anos e que quase ali aprendeu a gatinhar, saia com uma mão à frente e outra atrás. Os mais desligados de sentimentos dirão que as firmas são como as pessoas: morrem umas para dar vidas a outras. Mas em nome da humanidade que existe dentro de cada um de nós é preciso que não nos deixemos levar por este aforismo simplista. Em nome da concorrência –desvirtuada, selvática da lei do mais forte-, em nome de quem vender mais barato é que é bom, não se pode justificar tudo. Uma sociedade insensível, que tem por objecto o consumo imediato a qualquer preço desde que seja o mais barato, sem se preocupar se quem vende ganha dinheiro ou não, é uma colectividade doente. Estamos a contribuir para produzir máquinas com aspecto de humanos, onde o que conta é o constante alimento pessoal seja ele a que preço for. O que interessa é que o seu interesse pessoal, num egoísmo atroz, que nem os animais procederão assim, seja satisfeito. Este viver de hoje está transformado num campo de batalha onde os que se aguentam caminham por cima de cadáveres que não resistiram a esta guerra fratricida. Para vencer o vizinho vale tudo. O que conta é que depois da sua morte, como guerreiros bárbaros, com um pé sobre o caído, ergamos a lança bem alto e gritemos às hostes que somos os vencedores. É disto mesmo que o povo gosta… de vencedores a qualquer custo.
Ninguém pensa que a vida -que sempre correu em círculo, mas que agora gira vertiginosamente- é uma roldana em grande velocidade e que a nossa hora, inevitavelmente, chegará. E quer sejamos empresários ou clientes. Nesta máquina infernal somos os próprios dentes dessa roda dentada que inexoravelmente triturará todos, incluindo cada um de nós. É um sistema económico anárquico que vive da morte e da morte se alimenta.
Nunca os consumidores, como hoje, tiveram tanta responsabilidade social. É nos seus irreflectidos –aparentemente, porque todos somos manipulados pela publicidade- actos que condenam  ou não um sector económico, como, por exemplo, o comércio tradicional.
A Rua Eduardo Coelho e o Largo da Freiria, depois da partida do Manuel Magalhães, irão ficar mais tristes. Poucos se irão lembrar da algazarra, ainda há poucos anos, em frente a esta sapataria, em que se juntavam vários reformados a jogar à moeda. O caricato é que, nessa altura, muitos achavam este modo de estar rústico e ultrapassado. Esqueciam que ali, nessa altura, aqueles gritos de "três"... "cinco"... "zero", eram o pulsar do povo, a vida das gentes em todo o seu esplendor. Hoje, depois do encerramento da sapataria Reis, a rua e o largo ficarão entregues ao silêncio. É este manto indescritível de emudecimento que queremos para as cidades? Talvez valesse a pena pensar nisto.


TEXTOS RELACIONADOS:


O LARGO DA FREIRIA


A RUA EDUARDO COELHO


UM OUVIDO INDISCRETO


POR AMOR DE DEUS NÃO FAÇAM NADA


QUEM AJUDA A SALVAR O SPORTING NACIONAL?


A BAIXA ESTÁ A MORRER

UMA PALMADA LIGEIRA


DANIEL, MEU AMIGO, GOODBYE



3 comentários:

Jorge Neves disse...

Quantas mais vão encerrar até ao fim do ano?

Anónimo disse...

Ao ler esta noticia fiquei triste. Mais uma loja que a Baixa de Coimra perde. Enfim!
Quero aproveitar este espaço para daqui, agradecer ao Manel " Vai Tu" a amizade que sempre me demonstrou e desejar-lhe o Melhor do Mundo.
Sinceramente não sabia desta situação. A vida de comerciante na Baixa de Coimbra, é mesmo ingrata.
Obrigado Manel pela amizade e respeito que sempre tivemos um pelo outro.
Um abraço amigo
Carlos Clemente

José Barata disse...

Manuel, Elvira, Belinha, Xico,

Foi com a maior surpresa e profunda tristeza que, por este blog, soube do encerramento da vossa casa comercial.
Recebam um forte abraço de encorajamento.
Mais uma vítima dessa cidade, reflexo do país em que vivemos.
Coragem, amigos.