terça-feira, 30 de setembro de 2008

AS URBANAS ILHAS DA FELICIDADE



Eram 21 horas de um destes sábados de Setembro. Eu e você, leitor, passeávamos pela Baixa da cidade. Enquanto percorríamos as ruas estreitas, reparávamos que estas estavam completamente desertas, era desconfortante andar ali. O sentimento de insegurança era palpável. Nem vivalma se avistava. De repente, um pássaro de relativas dimensões bate as asas e o som ecoa como tiro de canhão. Você, surpreendido pelo susto, dá um salto e quase se estatelou na calçada de pedra portuguesa. Leva a mão ao peito, e, como bom português que se preza, solta uma valente imprecação. Claro que, naturalmente, ia-me desmanchando a rir. Você é que não gostou nada do meu riso hilariante e sarcástico. Em jeito de justificação, atira: “fogo!, já viu isto? Não se vê ninguém! Onde é que se meteram as pessoas?”
Antes de eu poder responder, contra-ataca novamente: “É a crise! As pessoas agora nem saem de casa para não gastarem dinheiro”. Como eu não respondi, mas abanei a cabeça em sinal de discordância, você, como mestre sapiente dono da verdade, ficou à defesa e replicou: “ai pensa que não, que não é da crise? Homem, o que se passa aqui em Coimbra é transversal a todo o país!”
Como pareceu adivinhar no meu rosto um engelhar de cara, embrulhado em sorriso amarelo, novamente tomado de forças redobradas de réplica, questiona: “quer apostar que o Café Santa Cruz (dos poucos abertos àquela hora na Baixa) têm menos de uma dúzia de pessoas, incluindo os empregados?”
Eu continuava céptico, mas, mesmo assim, aceitei o repto e lá fomos. De facto o belíssimo café, irmão siamês da Igreja com o mesmo nome, estava às moscas. Sentámo-nos, bebemos café, e você, exultante, como se fosse o ganhador mais procurado do Euro-milhões da região da cidade do Mondego, sem disfarçar a arrogância, ufano, de peito feito, replica: “vê? Eu não lhe disse? É a crise. De que vale os estabelecimentos estarem abertos se as pessoas não vêm passear? É difícil de ver? Você parece cego, homem de Deus”, recalcitra você, dirigindo-me um olhar reprovador, como se me chamasse besta.
Confesso que a sua insistência, como se a verdade fosse una e indivisível, já me estava a chatear. Você até sabia que eu tinha as minhas razões para não concordar consigo. Anteriormente estivemos a falar sobre este assunto e eu até lhe disse que o abandono das zonas históricas não pode ser só atribuído à crise financeira das famílias. Tem de haver mais qualquer coisa, sublinhei com ênfase. Mas, apesar disso, sem levar em conta a minha argumentação, você insistia em que tudo se resumia à falta de dinheiro.
Tenho a certeza de que você está enganado, contra-argumentei, e vou provar-lhe. Venha daí. Entrámos nos nossos carros e você foi atrás de mim. Não sem antes, de uma forma insistente, sem sucesso, me interrogar acerca do nosso destino.
Fomos ao Fórum Coimbra, na encosta de Santa Clara. Os estacionamentos, interiores e exteriores, estavam repletos e tivemos de aguardar. Entrámos e fomos directos ao terceiro piso, onde, depois de esperarmos um bom bocado, nos sentámos a beber um sumo. Você, como se tivesse entrado num mundo novo, parecia abismado. Centenas de pessoas, ou talvez milhares, percorriam a superfície comercial. Daquele piso cimeiro, com uma panorâmica plena, naquelas imitações de ruas públicas, víamos o ar de felicidade daquelas pessoas. Eram famílias inteiras, entre novos e velhos, a consumir hambúrgueres e outras especialidades. Reparei naquela senhora a passear despreocupada com a carteira aberta a tiracolo. Você, perante todo aquele movimento, parecia absorto e não falava. Parecia que, de repente, tinha perdido o “pio”. Como se, perante a evidência, perdesse toda a réplica.
Mas se pensava que ia ter complacência estava bem enganado. Agora quem falaria seria eu. E você, agora, sem sequer pestanejar, limitava-se a escutar-me. Comecei então a defender os meus argumentos.
Se a crise é a causadora da desertificação das cidades, como se poderá entender esta deslocalização para estas “ilhas”? Aqui, se há recessão, é só aparente. A maioria das salas de cinema “multiplex”, estão completas, nomeadamente o “Mamma Mia!”, com a Meryl Streeap, bem como outros filmes.
As pessoas vêm para aqui porque o conforto é uma constante. Podem passear à vontade com segurança e frequentar os estabelecimentos até à meia-noite. Se escolhessem a cidade o que recebiam? Pouco, para não dizer nada. As cidades, dentro do formato tradicional, estão ultrapassadas. Mesmo se, eventualmente, se recuperasse todo o edificado, mesmo assim, a urbe continuaria sem atracção e sem funcionar. As cidades, no seu conceito de vivência amorfo e estático, estão como um velho de cem anos. Pararam no tempo. Hoje os grandes centros urbanos estão para os centros comerciais como há cerca de vinte anos estavam as aldeias para as cidades. A deslocalização é igual. As pessoas “fogem” para estas “ilhas de felicidade aparente” porque aqui respira-se movimento e modernidade. Há aqui imensas possibilidades de escolha. Poderíamos perfeitamente apelidar estes centros de consumo de alter-ego das cidades, uma extensão futurista, na qual estas, se quiserem sobreviver, terão de copiar o modelo. E refiro-me concretamente à disciplina, quase ditatorial, de horários de estabelecimentos. Nas zonas históricas, para além de ninguém querer trabalhar à noite e ao fim de semana, a liberdade de cada um estabelecer o horário que mais lhe convém na sua loja, ajudou a matar o comércio de rua. Depois a falta de policiamento, sobretudo à noite, acaba com o resto. Já para não falar na falta de limpeza e, nalgumas artérias, luz pública. A cidade, concretamente a Baixa de Coimbra, é uma zona abandonada. Repare-se no piso das ruas, no empedrado partido e cheio de buracos na calçada portuguesa. Atente-se na quase uma dúzia de prédios abandonados, uns sem início de obras, outros entaipados há vários anos.
Acho curioso quando alguns responsáveis chamam à Baixa de “Centro Comercial a céu aberto”. Deveriam estar calados e pugnar por medidas eficazes, políticas de revitalização por parte da autarquia e sensibilização dos comerciantes de que ou mudam ou morrem todos.
Ah! Você, com este meu discurso, adormeceu. Que falta de respeito!

EM LISBOA É O QUE SE SABE, E EM COIMBRA?



Como todos temos lido nos Jornais, em Lisboa, a Câmara Municipal andou durante sucessivos executivos a distribuir casas em jeito de presente no sapatinho a vereadores, a artistas, amigos e outros quejandos.
Para além da sua iniquidade, e contrário ao seu objecto social, estas benesses em vez de contribuírem para revitalizar o centro histórico, dentro de uma política pública de habitação aos mais carenciados, sobretudo aos mais jovens, –obviamente por sorteio-, as habitações, propriedade da autarquia, serviram para “servirem” (passando a redundância) os compadres e as comadres que fossem filiados nos partidos dos executivos que foram passando. Exactamente favorecendo quem menos necessitava.
A talhe de foice, talvez fosse bom saber o que se passa em Coimbra. Se a autarquia souber responder, poderíamos começar pelo número de casas existentes na cidade e que é de sua propriedade. Depois, na Alta e na Baixa, talvez o vereador da habitação, Gouveia Monteiro, pudesse informar de que modo, e a quem, têm sido atribuídas as habitações.
O que sei é que também aqui, em Coimbra, a atribuição de casas é feita um pouco com base na “camaradagem”. Não ponho em dúvida de que os beneficiários serão pessoas necessitadas. O que é preciso é mostrar a forma como são arrogadas.
Talvez fosse bom, a bem de quem trabalha na Baixa e na Alta, que o executivo de coligação da Praça 8 de Maio, mostrasse a relação de casas de sua propriedade e, ao mesmo tempo, declarasse o modo de as atribuir. Convém não esquecer que esta outorga de habitações é uma ferramenta fundamental na revivificação do centro histórico.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

TODOS DIFERENTES... TODOS DESIGUAIS



Nas últimas décadas, no país, resultado ou não das profundas desigualdades do Estado Novo, a verdade é que, numa lógica viciada, numa osmose, numa influência recíproca, como clones, passámos todos a sentirmo-nos iguais uns aos outros. Não apenas em direitos substantivos formais (os direitos Civis e Constitucionais alienáveis da dignidade da pessoa humana), como também nos adjectivos, no modo de procedimento (Códigos de Processo). É certo que o direito, numa inclusão exacerbada, sobretudo tentando corrigir os erros do passado, a partir de meados da década de 1980, passou a levar em conta as diferenças de cada um. Ou seja, se um indivíduo foi apanhado a furtar, e se o produto desse furto foi para satisfazer a sua necessidade básica de alimentação, ou de entes consanguíneos, este acto de reprovação social perde a sua aura de delito “grave”, passando a ser considerado “desvio”, e, subsequentemente entra numa punição de moldura penal leve.
Por outras palavras, porque corro o risco de não ser suficientemente claro, até esta altura, meados de 1980, o direito em Portugal, resquícios de um corporativismo integral e inflexível de cinco décadas, assentava num positivismo jurídico, isto é, qualquer furto era julgado como tal, uma espécie de chapa numerada previamente, tendo apenas em conta a denominação da classificação do acto desviante, sem levar em conta a motivação do autor. Era um direito sem rosto humano. O juiz decidente, sem capacidade autónoma subjectiva, era um mero exequente das leis. Tal como acontecera em França, após a Revolução francesa de 1789, no iluminismo, com o surgimento dos direitos individuais, o positivismo jurídico tentava mostrar que todo o homem é igual à luz da lei. Então, nessa época das luzes, tal como aqui em pleno século XX, num igualitarismo desenfreado, embora de motivações políticas diferenciadas, perante o erro todo o homem era igual. Em França, num experimentalismo cruel Robespierrano, assentes, sobretudo, em teorias de Voltaire e Rousseau, era de índole ideológica-revolucionária-social, cortando laços com um absolutismo sufocante do povo sem direitos (burgueses, camponeses e artesãos). Em Portugal era o contrário, este “positivismo”, através de um autoritarismo pronunciado, em que o poder judicial estava subjugado ao regime, servia exactamente para conter as hostes, prevenindo convulsões sociais, e evitar o alastrar da reivindicação de direitos.
Então aqui, você, leitor, e eu, fazendo um balanço do que foi escrito, interrogamo-nos: bom, se o positivismo jurídico era atentatório do valor pessoa, hoje, em que se leva em conta as diferenças de cada um estamos no bom caminho. No bom, para não dizer no óptimo, pensa você. Pois, mas eu não. E explico a seguir porque creio estarmos no mau caminho. Como passámos a hipervalorizar o “diferente”, em detrimento do “igual” ejectando-lhe doses maciças de psicologia social, quem é diferente, fazendo das suas fraquezas forças, com a ajuda do Estado, acha que a sua diferença, física, psíquica ou outra, não existe. Ou seja, caímos numa pretensão de um igualitarismo de ascendente perigoso. Porque, sejamos pragmáticos, o que é diferente jamais pode ser igual.
Por outro lado, o Estado, numa diarreia legislativa, através de legisladores obcecados por direitos, liberdades e garantias, tentando agradar a lobbies, grupos de pressão conotados com uma esquerda radical, invocando “discriminação” a “torto e a direito”, vai passando a ideia à sociedade de que somos realmente “todos diferentes… todos iguais”. Uma profunda mentira, que só a engole quem não pensa. Claro que, neste conluio, o Estado não é inocente. Tem objectivos económicos a atingir. Veja-se, por exemplo, o sucessivo encerramento de instituições psiquiátricas. A mensagem que é passada é de que os dementes ou diminuídos psíquicos não devem ser tratados como diferentes, mas, pelo contrário, devem ser tratados como iguais. Devem ser “ressocializados”, e inseridos na sociedade. Então o que assistimos? É vermos, nas grandes urbes e outras, estes indivíduos abandonados a vaguear e entregues à sua sorte. Claro que não se pode escamotear algum relativo sucesso, sobretudo nas famílias. Também um pouco por, a isso serem obrigadas e sem alternativa, ficarem mais sensíveis para os seus familiares diminuídos psiquicamente.
Claro que se o leitor chegou até aqui, certamente, interroga-se: mas, afinal, onde quer chegar este tipo? Disserta, disserta! Parece uma alma penada.
Se pensou isto, tem razão. Eu estou a abusar da sua tolerância. Mas, já agora, só mais um pouco de paciência, estou mesmo quase a terminar.
É assim: o que me levou a escrever este texto foi o facto de uma mãe, de seu nome Natércia Mirão, no dia 23 de Setembro, no espaço das “Cartas ao Leitor”, do Diário as Beiras, em tom indignado, vir chamar a atenção para o facto de ter tentado inscrever o seu filho, alegadamente com Trissomia 21 (vulgarmente conhecido como mongolismo), nas aulas de expressão musical, no Pavilhão de Portugal e ministradas pelo maestro Virgílio Caseiro. Segundo a verve desta senhora, o maestro é que não esteve pelos ajustes. Ao que parece, o mestre da batuta alegou que “o menino seria um problema para o grupo de 24, prejudicaria o desenvolvimento da aprendizagem, considerando que não acompanharia o grupo”.
A senhora, mãe do menino, desapontada, diz que “é duro demais para uma mãe que ao longo de nove anos tem integrado o seu filho na sociedade como um igual. (…) Estamos no século XXI e ainda funcionamos com o preconceito (…) o preconceito é uma arma forte, poderosa! (…) Lamento que os meus impostos contribuam para o desenvolvimento de projectos com princípios elitistas de desrespeito e intolerância!!!”
Antes de continuar, ressalvo que nem conheço o maestro nem a senhora, mãe do menino.
Então a pergunta que lhe faço, a si leitor, deveria o maestro Virgílio Caseiro ter aceitado aquela criança e fazer a vontade à senhora? Ou, pelo contrário, no seu legítimo direito natural de escolha, fazendo o que achou melhor, será condenável esta sua opção?
Que lhe parece?

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

ANDAR PELA CIDADE



Há dias passeava na Baixinha,
no coração do centro da cidade,
numa rua daquelas tão estreitinha,
que nem o sol parece saber a idade;
Foi então que encontrei uma velhinha,
uma querida, que apetecia abraçar,
tão terna, que imaginamos a nossa avozinha,
naquele colo protector onde íamos chorar;
Com a sua calma, vi-a como um porto de abrigo,
eu, um veleiro, cansado de calcorrear o mar,
com a bússola a girar à volta sem sentido,
e que o destino me empurrou para encalhar;
Tão serena, parecia a Virgem Maria,
mas era outra, chamava-se Conceição,
estava triste, solitária, esvoaçava ao vento,
como folha seca no Outono da solidão;
“Já viste meu amigo, companheiro, meu irmão,
tratam-nos como coisa sem utilidade, sem valor,
como se a idade, fosse um peso, uma aberração,
esquecem que temos vida, necessitamos de amor”.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

HISTÓRIAS DO MEU LARGO



 O Largo da Freiria, é um encantador recanto entre a Praça 8 de Maio e a Praça do Comércio, em Coimbra. Supõe-se que o seu nome advenha de uma Freiria, casa de freiras, que existiu neste largo, presumivelmente, entre os séculos XVIII e XIX.
Em conversa com um antigo residente, que aqui passou a sua infância, o senhor Emídio, um simpático septuagenário que nasceu em 1929, vim a saber pormenores, do ponto de vista histórico, quanto a mim, interessantíssimos.
Segundo as palavras do meu amigo, cujo avô tinha uma oficina de funileiro, latoaria, no rés-do-chão do prédio que, de um lado dá para este largo e do outro faz esquina para a Rua Eduardo Coelho e que em tempos, e durante muitos anos, foi a Topal, um pronto-a-vestir, durante décadas, morou neste mesmo edifício no segundo andar.
Em 1940, com a Segunda Guerra já a decorrer, e mesmo com a neutralidade de Salazar, os habitantes da Baixa da cidade viviam muito mal, com absoluta carência de víveres. Os géneros alimentícios, nomeadamente o pão, escasseavam. Era, neste recanto sem saída, na “Padaria Popular”, propriedade do Dr. Bela, que toda a gente, passantes e moradores, se abasteciam do tão necessário pãozinho. As filas para o obterem, legalmente, só poderiam começar às 7,30 da manhã. O estabelecimento abria portas às nove horas. Porém, como a insuficiência de alimentos era extrema, e cada pessoa só poderia comprar um pão de meio quilo, às 4,30 já havia “bichas”. Então, numa desumanidade sem rosto, os guardas carregavam à bastonada sobre o pobre povo que ousasse desobedecer à norma. “Uma miséria”, remata o meu amigo Emídio, por entre um suspiro de indignação.
Nesse tempo, em que já havia electricidade nas casas da Baixa –o slogan publicitário nos jornais era “Electrodomestique a sua casa”- mas como não havia dinheiro para a manter, tudo era rentabilizado ao máximo. Por exemplo, para colmatar o frio incomodativo de inverno, a “Padaria Popular” vendia as brasas incandescentes aos residentes do centro histórico. Levavam as “escalfetas” –espécie de caixa em chapa de zinco, perfurada por cima, que servia para aquecer os pés- e as brasas eram transportadas dentro delas até às suas casas.
“Eram tempos desgraçados, as crianças, numa completa indigência, vadiavam pelas ruas”, continua o meu amigo. Um dos passatempos que lembra era que, neste largo, onde hoje existe uma casa de velharias, por volta da década de 1940, havia um armazém de batatas. Então, naturalmente, por força das circunstâncias da proximidade do tubérculo, havia muitas ratazanas. O dono do armazém, o Aires Rodrigues, tentando colmatar a praga, durante a noite, colocava umas armadilhas de arame, umas ratoeiras com uma abertura, que quando o mamífero roedor entrava, aquela fechava-se e este, ficando vivo, não conseguia sair. Então, no dia seguinte, o empregado do Aires Rodrigues, colocava as ratoeiras no Largo, como troféu de caça, e as crianças, numa crueldade maliciosa, divertiam-se a despejar água a ferver para cima dos pobres animais, que, numa “chiadeira” infernal, acabavam por sucumbir a tamanha perversidade infantil.
Lá ao canto, do lado direito da “Padaria Popular”, havia o “Nacional”, um grande salão recreativo popular. Durante a semana ensaiava o Rancho folclórico, salvo erro, o “Flores da Mocidade”, cujo ensaiador era o Raul Mesquita, já desaparecido, e ao fim-de-semana havia sempre bailarico. Igualmente, com a mesma cadência e interligados, no fim da rapsódia popular, havia pancadaria de meia-noite até às tantas da madrugada. Só eram interrompidas pela chegada dos guardas, que só apareciam muito depois da refrega ter começado, vindos da primeira esquadra, a duzentos metros deste largo. Faziam-se anunciar com uns estridentes apitos, como a avisá-los e dar-lhes tempo para a fuga.
“Era um largo muito castiço”, continua o meu amigo Emídio. “Havia por aqui um louco, com um vozeirão infernal, mas que cantava muito mal, daqueles personagens típicos das cidades que ainda hoje se vêem, então, com uma atracção fatal por este recanto, este desequilibrado, quase todos os dias, às tantas da noite, vinha tentar impressionar os moradores com o seu talento vocal. Os residentes, em troca, mal-agradecidos, despejavam-lhe água para cima, mas nem assim o cantador desgrudava. Seguindo o mesmo exemplo, o meu amigo Emídio, já apetrechado para o efeito, tinha uma grande seringa que, através da janela do seu segundo andar, neste Largo da Freiria, molhava o pobre tolo solista, por entre uma ária de uma cantata avulsa. Nem mesmo assim o cantante descolava.
“Que saudades que tenho desse tempo! O que eu não daria para voltar atrás, ao meu querido Largo da Freiria”, remata o senhor Emídio, por entre um brilho intenso dos seus olhos e um suspiro de saudade.

COM TAMANHA OFERTA DE PÉROLAS PORQUE NÃO BAIXA O SEU PREÇO?




Hoje, no Diário de Coimbra, na página 7, pode ler-se: “Na sequência da chuva intensa que fustigou Coimbra no Domingo, uma equipa da empresa municipal Águas de Coimbra deslocou-se ontem à Baixa para analisar um colector de água subterrâneo que vai da Praça 8 de Maio até à Avenida Fernão de Magalhães.

(ADVERTÊNCIA: Por favor, ria com contenção. Se possível, mesmo que lhe apeteça chorar, sorria apenas com um esgar amarelo.)

Pérola 1:
“utilizámos um robô de inspecção de condutas e vimos que agora está tudo em ordem a nível de escoamento”, avançou Joaquim Sousa, administrador da Águas de Coimbra.

Pérola 2:
“O director Serra Constantino (da Protecção Civil Municipal) lamentou que as inundações tivessem ocorrido num domingo, “numa altura em que os comerciantes não estavam preparados. Do ponto de vista estatístico pode voltar a acontecer amanhã ou daqui a dez anos”.

Pérola 3:
“Há três anos que a águas de Coimbra sabe o que fazer e é importante que faça. Se não andamos anualmente com este problema. Peço à Câmara Municipal de Coimbra que tenha atenção aos comerciantes”, afirmou Pina Prata, vereador da maioria (e ex-presidente do Conselho de Administração da Águas de Coimbra).

Pérola 4.
“mesmo que fosse vereador da Protecção Civil, só se por influência de viver perto da Rainha Santa é que o que aconteceu ontem não aconteceria”. Álvaro Seco, vereador do PS (e até há cerca de um mês “big boss” da (des)protecção Civil).

Pérola 5:
“há uma insuficiência nas condutas da Praça 8 de Maio, que não têm capacidade para receber o caudal de água. Já pedi ao presidente do Conselho de Administração da Água de Coimbra, Jorge Temido, para recomendar as obras que são de urgência”. Carlos Encarnação, presidente da Câmara Municipal de Coimbra.

Pérola 6:
“A culpa não deve ser atribuída às autoridades competentes, “que têm trabalhado bem. É a natureza”. Cristóvão Queirós, proprietário da loja “Joaninha”, localizada na Rua da Louça (desabafo colhido num intervalo de uma oração politicamente correcta).

ATÉ ONDE VAI A TEIA?

(IMAGEM DA WEB)


 Eis o título de hoje do Diário de Coimbra: “Norberto Pires acusado de usurpar funções”. Continuando a citar o jornal, “Pina Prata apresentou documento para sustentar acusação de usurpação de funções por parte do administrador que, na resposta, explica o “lapso” e condena a atitude do vereador”. Saliento que Norberto Pires, professor de Robótica da Universidade de Coimbra, e Presidente do Conselho de Administração da NOVOTECNA e da Jovens Associados para o Desenvolvimento Regional do Centro, é o actual presidente do Conselho de Administração do IPARQUE, Coimbra Inovação Parque.
De modo algum quero dizer que estamos perante uma “grande família Coimbrã”, com negócios e negociatas, mas, e sabendo nós que a Polícia Judiciária está a investigar estas e outras actividades de Pina Prata e a sua ligação ao actual executivo de coligação PSD/CDS/PPM, era bom, a bem da Pátria e do burgo, que todos os negócios partidários e intermunicipais deste "paterfamílias", fossem clarificados. Era bom que todos os conimbricenses em geral ficassem a saber até onde vai a teia, ou o polvo, que começou em 1998, como sabemos na ACIC, Associação Comercial e Industrial de Coimbra, com negócios mal explicados e ruinosos para esta associação, mas que os actuais corpos gerentes, num conluio condenável a todos os títulos, até agora, preferindo enterrar a cabeça na areia, optaram por se calar.
Durante anos, de boca-em-boca, andaram a espetar ferroadas no “D. Horácio de La Plata”. “Ele era assim, ele era assado. Por causa dele e dos seus negócios de gestão duvidosa a ACIC estava a viver momentos de sufoco financeiro". Por causa dos seus compromissos assumidos, durante a sua vigência enquanto presidente, de 1998 a 2005, a associação, em 2007, tivera que pedir um financiamento à Caixa Geral de Depósitos de um milhão de Euros (duzentos mil contos em moeda antiga).
No ano passado, por denúncia identificada, a Polícia Judiciária começou a investigar. O Ministério Público arquivou a queixa com base nas seguintes declarações: “Não é do conhecimento da actual direcção qualquer (…). É da opinião da actual direcção que o trabalho realizado pela direcção presidida pelo engº Pina Prata (2 mandatos), nomeadamente quanto a alguns contratos de fornecimento de equipamentos prestados à ACIC, não foram muito favoráveis à associação (alguns vieram mesmo a ser resolvidos com recurso a acções judiciais). No entanto, e na sequência dos dados apurados pelos elementos da actual direcção, estes contratos apenas foram mal negociados, não existiu qualquer intenção de benefício ilegítimo em detrimento da associação”.
Continuando a citar o teor da sentença de arquivamento, “Assim, o mais que se apurou foi a existência de contratos que poderão ter acarretado prejuízos para a ACIC (…). Assim sendo, e não se vislumbrando qualquer outra diligência investigatória que cumpra realizar, impõe-se o arquivamento do presente inquérito”.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

SCRIBÈRE-DEPENDENTE



Ainda não tinha dito,
tenho de confessar,
mesmo que não pareça,
sou um pobre de um adicto,
que gosta de “escrevinhar”,
faça sol ou anoiteça,
agora sabem: tenho dito;
Vocês não sabem o que sinto,
nem a dor que é sofrer,
o que faço para conseguir,
passar um dia sem escrever,
faço tudo para fugir,
mas é um desejo cruel saber
que não “me safo”, nem a dormir;
Às vezes estou a sonhar,
que sou um grande escritor,
estou sentado num altar,
a meu lado está o censor,
dedo em riste, com lápis a cortar
o meu poema de amor,
grito em vão, não consigo acordar;
Se estou a ler, penso em escrever,
se olho o mar imagino um tema,
se “estou na lua”, nem quero saber,
sou um ovo, onde o que conta é a gema,
escrever, é a minha vida, o sol do meu viver,
quero lá saber se chove, as letras são o meu lema,
vou mas é terminar isto, que está chato, mas foi sem querer!

BAIXA: CHEIAS DE DESOLAÇÃO



(AQUI PODE VER-SE A ESTREITEZA DAS GRELHAS DE ESCOAMENTO NA PRAÇA 8 DE MAIO)
(FOTO RETIRADA DO DIÁRIO DE COIMBRA)

Era um Domingo pacato, aparentemente igual a qualquer outro. O comércio de rua estava encerrado. A cidade, como noutro qualquer fim-de-semana, fluía na sua modorra habitual. O tempo limpo, de temperatura tépida e amena, nada diferenciava de outros anteriores finais de verão. Os plátanos, nas avenidas, com as folhas amarelecidas, continuamente a cair, pareciam mostrar que o Outono estava à porta.
De repente, cerca das 15 horas, como se estivéssemos nos trópicos, o céu começou a escurecer e as nuvens, como fumo negro, ficaram carregadas. Subitamente, como se estivesse zangada com os humanos, a natureza descarregou água e mais água. Em meia hora, a Praça 8 de Maio ficou inundada de água com meio metro de altura. As Ruas da Moeda, da Louça, do Corvo e Eduardo Coelho, adjacentes a este antigo largo de Sansão, como se viajassem três décadas no tempo, ficaram completamente atapetadas de água e lixo. Os comerciantes, com uma sensação de falsa segurança -nos últimos anos, descuraram a prevenção contra as águas pluviais- esqueceram que Coimbra, no tocante à hidrologia/hidráulica tem uma longa tradição em cheias. Embora interrompidas depois da construção da barragem da Aguieira/Raiva na década de 1970. As lojas, não preparadas para estas intempéries, com os patins das portas ao nível das ruas e algumas delas abaixo, foram invadidas por lamas e folhas secas.
Por seu lado, a autarquia, seguindo os comerciantes, na mesma crença de total fiabilidade, no mandato de Manuel Machado, anterior inquilino do paço do Concelho, ao rebaixar o piso da Praça 8 de Maio, esqueceu-se que, com estas obras, estava a vulnerabilizar completamente esta zona histórica. Este antigo largo é como um delta, um depósito aluvial, que recebe todas as águas das várias encostas da parte alta da cidade. Não é preciso ser especialista em hidrologia para verificar que o sistema de escoamento desta praça, com pequenas grades de drenagem, de 20 centímetros de largura, que, para além de insuficientes, correspondem a um sistema de sifão de uma qualquer praceta da cidade sem as características receptadoras deste histórico largo, onde predomina a românica igreja de Santa Cruz. O reportar a culpa para a natureza, de que “choveu muito e concentradamente” é branquear a situação e adiar e passar para o lado uma solução que urge resolver. E, não se pode argumentar que a Câmara Municipal não sabia. Basta percorrer a Internet, desde a última grande inundação de Janeiro de 2001, são vários os estudos da Universidade de Coimbra aqui plasmados a alertarem para o risco de cheias na cidade e no vale do Mondego.
Por outro lado, se é verdade que o assoreamento do rio é uma constatação, as inundações de 22 de Setembro nada têm a ver com este problema. As suas consequências serão da falta de escoamento planeado, localizado e de prevenção municipal.
A última recente cheia da Baixa, com graves prejuízos para os comerciantes, foi em Outubro de 2006 e as chagas dos prejuízos sofridos ainda não estão curadas. Ontem, de “galochas” calçadas, quem passasse por estas bandas, facilmente se apercebia das lágrimas de desânimo e revolta a correrem na face da Ana, uma comerciante da antiga Rua dos Sapateiros. Os impropérios do Luís, do Daniel, do Pedro, do Marques, do Pedrosa (a proferir, no Diário as Beiras, que “esta cidade é uma trampa”), do Carlos e da Alice (de calças arregaçadas, com baldes a despejarem água) e da Ilda a, taxativamente, afirmar que vai encerrar no fim do ano a sua loja de artigos de bebé. Estas manifestações sociais, legítimas, de uma classe profissional que sente ser um D. Quixote a lutar contra o vento, não são mais do que a materialização de impotência, o abandono que os homens do comércio de rua sentem.

sábado, 20 de setembro de 2008

BAIXA: UMA CLIENTELA INDESEJÁVEL







Durante várias décadas, no Largo da Maracha, ali junto à loja do Cidadão, a tasca do Manuel Vasques fez história na Baixa da cidade. Os seus petiscos, servidos em mesa corrida por dois compridos bancos de pinho, eram famosos entre estudantes e futricas. A sardinha em molho de escabeche, os “jaquinzinhos” fritos, as iscas de cebolada e o bacalhau frito em pasta, eram constantemente solicitados por todos.
O seu vinho, saído das pipas, servido a copo, bem encorpado e apaladado, vindo dos lados de Rio de Galinhas, corriam por gargantas sequiosas, com a mesma naturalidade que os rios correm para o mar. Era rara a tarde que naquele recanto de boémia um qualquer introvertido, depois de bem aconchegado, não se transformasse num cantador afamado e capaz de fazer as tropelias mais inverosímeis. Lá no canto esquerdo, na parede, numa peanha de madeira, a imagem de nossa Senhora de Fátima, alumiada por uma pequena lâmpada, olhava para tudo isto impassível, com ar de desconto e serenidade. Como se dissesse: “coitados, com um grão na asa são capazes de tudo. O mais medricas, com um copo, torna-se um valentão”.
No outro canto, do lado direito, o “Zé povinho”, com a frase “Queres fiado Toma!”, não se sabe se gozando com a imagem da Virgem, se rindo daqueles figurões, fazia um manguito a tudo isto. Neste espaço de convívio popular, onde não faltava o relógio de capela a dar horas e meias, que quartos não havia, e o rádio a válvulas da segunda Grande Guerra, sempre sintonizado na Radiodifusão Portuguesa. Sobre as duas grandes mesas de pinho estavam sempre presentes o dominó e as cartas da sueca. Estes jogos eram a força motriz da convivência neste “santuário” do “bota-a-baixo”.
Há cerca de oito anos, já com a casa a entrar pelo cano do abandalhamento, pela decrepitude do imóvel e do dono, o velho patrono, o Manuel Vasques, morreu. Durante dois ou três anos o edifício esteve em venda, mas, devido ao elevado preço pretendido pelos herdeiros do velho taberneiro, demorou a ser alienado. Mas, como tudo na vida, quase sempre, a persistência acaba por vencer, mesmo nos negócios aparentemente impossíveis. A verdade é que o prédio foi vendido e há cerca de quatro anos foram iniciadas as obras, com todo o interior a ser derrubado, mantendo a fachada semi-protegida por uns esconsos tapumes de madeira. Segundo se consta, começaram por serem acompanhadas por técnicos do IPAAR, agora IGESPAR, e, ao que parece, surgiram vestígios históricos que retardaram em muito a obra. Segundo se diz também, o proprietário, que já adquiriu o edifício muito caro, com os resquícios arqueológicos a complicar, a obra tornou-se, economicamente, inviável. E há mais de três anos, foram interrompidas. Se foi assim ou não, não sei, pelo menos as escavações estão lá como testemunhas mudas.
Nestes três anos de abandono, junto à fachada, uma árvore já cresceu e é adulta, o tapume está semi-destruído, com uma abertura que permite a intrusão de quem precisar de um recanto urgente. Num painel é anunciado a sua venda. Dizem ali os mais chegados que quem liga para este número jamais é atendido.
Como nesta zona não há retretes públicas, aquele espaço vem mesmo a calhar. Como o negócio está mau paras as prostitutas e um quarto para uma “rapidinha” custa os olhos da cara, ora, assim sendo, aquele recanto está mesmo a jeito. Como a Baixa ainda não tem uma “sala de chuto”, enquanto não vem uma mais aperaltada, este espaço, por entre lixo, fezes e preservativos, vai servindo aos mais necessitados.
Quem não está pelos ajustes são os vizinhos. Dizem que os odores que de lá provém cheiram a tudo menos a rosas. Como se isso fosse pouco, também não gostam da clientela da sucessora tasca do Manuel Vasques.
Em surdina, interrogam-se, a quem podem apelar. Dizem que já solicitaram medidas de prevenção à autarquia mas que, para seu desespero, até agora nada. Se você, que lê este texto, puder fazer alguma coisa, não se “aquede”. Pratique uma boa acção. Vá lá, ajude estas pessoas.

ESCREVER UM LIVRO



Eu gostava de escrever um livro,
com uma história de embalar,
onde o leitor se prendesse,
não a pudesse largar,
nem mesmo para dormir,
desse por onde desse,
sem tempo para sonhar,
tinha sempre que sentir,
interesse no que lesse,
como grude num colar;
Quero uma história de medo,
elemento essencial numa trama,
ambição e vaidade no enredo,
ciúme e morte no drama,
final justo com segredo,
bolas! Falta-me encontrar a dama;
Por mais que rebusque uma narração,
matuto mas não encontro o fio à meada,
se tenho o esqueleto, falta a inspiração,
se tenho o mar, não tenho enseada,
se tenho um porto, falta a embarcação,
tenho um labirinto que não conduz a nada,
parece uma praia, onde só há rebentação;
Vou mas é escrever uma história da carochinha,
ou quem sabe, e porque não aos quadradinhos?
Pode até ser um conto para ler na cozinha,
um entretém para quando estamos sozinhos,
um pequeno peixe de pescar à linha,
tem de ser algo que alimente como uns bolinhos,
nos deixe a alma cheia de contentamento, a sua e a minha.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

O HOMEM QUE FABRICAVA SONHOS




(O CENTRUM CORVO, NA RUA DO CORVO, EM COIMBRA)


O “Centrum Corvo” é talvez o estabelecimento mais bonito da Baixa da cidade de Coimbra. Fica na Rua do Corvo, a dois passos da Igreja românica de Santa Cruz. É uma loja de artesanato. Pois! Mas não é uma loja qualquer, parecida ou igual a tantas outras. Este estabelecimento é um “must”. A sua decoração confere-lhe uma autenticidade e transforma-a no paradigma daquilo que se entende como a verdadeira loja do comércio tradicional.
Quem vê a fachada, com as montras de olaria e vários bordados de boa qualidade feitos à mão, não imagina a riqueza histórica e patrimonial que o seu interior encerra. Toda a decoração assenta nos idos anos de 1900. Os seus móveis, lindíssimos, são mesmo autênticos. Foram feitos de encomenda para uma mercearia fina na época. Durante várias décadas este estabelecimento de açúcar e arroz a retalho, retirado das fundas tulhas e pesados ao quilo, funcionou em pleno. Como outros estabelecimentos de renome na cidade, era famoso o seu café “arábica”, moído na hora e à frente do freguês.
Por meados do século XX foi trespassado para o ramo de tecidos a metro. A Rua do Corvo era identitária pelos seus imensos estabelecimentos de retalho de tecidos pendurados na frente das lojas. Hoje, dentro destas características, conservando a traça antiga, resta uma única nesta rua, que um destes dias falarei dela aqui.
Há cerca de uma dúzia de anos o então ainda proprietário da loja de tecidos a metro, que, para além de saber ganhar dinheiro, não tinha nenhuma sensibilidade, certamente embarcando na actual filosofia de que as lojas tradicionais antigas, carregadas de memória, estão obsoletas e devem substituir toda a ambiência de antanho por uns modernos balcões estandardizados e ornamentados a plástico ou alumínio, foi ter com o dono do prédio e, rispidamente, em jeito de ultimato, disse: “Eu vou modificar o interior da loja e quero tirar os imbecis móveis antigos. Quero substitui-los por uns mais bonitos. De modo que arranje sítio para eles se não vão para queimar!”.
A pessoa que ouviu isto, o dono do prédio, o meu amigo António Cerveira, era a pessoa mais sensível que conheci. Perante esta barbaridade, ficou chocado. Para além de ser um homem de cultura, profundamente vinculado a tudo o que tivesse a ver com a memória, emotivamente, como cordão umbilical, estava profundamente ligado àqueles móveis. O estabelecimento de décadas de mercearia fora de uns seus primos. No meio de rebuçados e azeite ao litro, ali cresceu, se fez homem, se fez médico e partiu para a capital, onde exerceu psiquiatria até se aposentar. Há cerca de uma dúzia de anos, regressou novamente a Coimbra.
Como entretanto nos conhecemos, depois de, a seus olhos, ouvir o sacrilégio do homem dos trapos a metro, preocupado, meio atordoado, veio ter comigo e contou-me o que lhe estava a acontecer. “já viu Luís, uma preciosidade daquelas e aquele camelo quer queimá-los? Você não terá uma garagem disponível em que mos possa resguardar até eu lhe dar um rumo? Estes móveis (cinco, com dois metros e oitenta de altura) significam muito para mim!”.
Durante cerca de dois anos fui fiel depositário deles.
Um dia chegou ao pé de mim, naquele seu ar de menino bem comportado, que escutava mais do que falava, talvez defeito necessário da sua profissão de psiquiatra, e interroga-me: “o que acha daquela minha loja vir a ser um estabelecimento de artesanato?”. Disse-lhe o que achava e fiquei com a pulga atrás da orelha. Passados meses, com os olhos a brilhar de contentamento, chegando ao pé de mim, disse: “fiquei com a minha loja. Consegui reavê-la e pôr de lá para fora aquele estupor”. Vim então a saber que por causa dos móveis antigos, do sentimento que os ligava, comprou de trespasse o negócio, em que, enquanto edifício, era sua propriedade e para o reaver pagou cerca de trinta mil contos (hoje cerca de 150.000Euros). Se para o cedente foi o negócio da sua vida, para o adquirente, o meu amigo Cerveira, foi a vida por um negócio.
Durante vários anos, com um fôlego invejável, com espírito de menino, um sonhador utópico, no seu estabelecimento de artesanato, decorado completamente à imagem da antiga mercearia dos primórdios do século XX, este homem foi profundamente feliz. Tenho a certeza. Ele ia a todos os pormenores. Até a imagem de um corvo, que existia na fachada da antiga mercearia, ele mandou fazer de propósito e colocou-a na parede exterior.
Faltou-lhe tempo para realizar os mil planos que tinha em carteira. Que saudades que tenho dele! Quando chegava, pé-ante-pé, ao pé de mim, já sabia que ali vinha coisa. Uma ideia nova, certamente pensada durante a noite. Nas suas constantes interrogações: “e se fizesse assim? E se pusesse no “Centro Corvo” um centro de produtos endógenos tradicionais? E se fizéssemos um protocolo com a Diocese para as igrejas estarem abertas à noite? E…se…se?”.
Infelizmente, em Julho do ano passado, o homem com oitenta anos, que, na sua destreza mental e agilidade física, parecia um rapazote, que tinha uma força anímica fora do comum, o sonhador, o fabricante de sonhos, como luz que fenece e, repentinamente se apaga, finou-se. Imaginariamente, teria sido um raio que, vindo do espaço, pôs fim àquela força motriz impressionante. Perdemos todos. Eu perdi um grande amigo e a Baixa perdeu um grande impulsionador e inconformista, um grande defensor do comércio de rua. Um lutador de causas.
Se puder visite o “Centrum Corvo”. Se gostar compre uma boa peça de artesanato, mas, sobretudo, aprecie aquela jóia decorativa de novecentos. Embora não o sinta, não o veja, pode ter a certeza que o espírito do meu amigo Cerveira está lá. Em paz, do alto onde se encontra, continua a zelar pelo amor do resto da sua vida.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (32): O MEU AVÔ CRISPIM


(Imagem da Web)




 Já o contei em anteriores apontamentos, quando entro numa qualquer carpintaria ou serração, pelo odor a serradura, numa viagem alucinante, através dos anéis do tempo, chego à memória do meu avô Crispim. Curiosamente, apesar de eu ter já cerca de doze anos quando ele faleceu, em finais de 1968, em boa verdade, não me consigo lembrar das suas feições com clareza.
Recordo-me do meu avô, fosse verão ou inverno, sempre vestido com samarra de gola de pele de raposa, boina na cabeça, e as pernas sempre “aparelhadas” com plainas de cabedal, como se ainda estivesse na Primeira Grande Guerra. Fumava tabaco de enrolar da marca Kentucky. A sua figura imponente, alta e esguia, de dedos longos, de artista, e as suas constantes mentiras, efabulando qualquer história. “Pintava” a seu jeito uma qualquer narração com a mesma facilidade que um qualquer seu vizinho assobiava uma “moda” de qualquer canção. Veio a passar essa sua peculiar forma de ser ao seu filho varão, o meu saudoso tio “Manel”, também já desaparecido do nosso mundo dos vivos.
Segundo informações que recolhi em Várzeas, o meu avô, em questões de labor, era “pau para toda a colher”. Pegava em qualquer trabalho, até porque os tempos eram difíceis e havia na prole, para além da minha avó Madalena, mais quatros bocas para alimentar.
O seu verdadeiro gosto ia inteirinho para a música. Num tempo em que para além da carência de facilidade de aceder ao ensino musical tudo faltava, quem quisesse seguir a “veia” musical teria de se “desenrascar”. E foi o que o meu avô fez. Conjuntamente com o “Manel Serrado”, na “caixa”, o Valentim Gonçalves, na concertina, e ele no bombo, formaram os “Gaiteiros de Várzeas”. Durante largos anos actuaram em toda a freguesia de Luso, mas, alegadamente, onde eram mais solicitados seria para as escamisadas (ou descamisadas, também assim conhecidas). Citando o meu amigo Alcides Rego, do Buçaco, estas escamisadas do milho (retirar manualmente a “camisa” à espiga) eram serões, para além de generalizados, muito apreciados e nas aldeias ocupavam entre as suas gentes um lugar privilegiado. “Às desfolhadas concorriam amigos, vizinhos e familiares, bem como rapazes e raparigas, que animavam o trabalho com canções, adivinhas, lendas, lengalengas e pequenos jogos. A própria escamisada era um jogo permanente em que se procurava encontrar o maior número de espigas vermelhas (milho rei), o que lhe permitiria beijar todos os elementos do sexo oposto. Se a espiga fosse riscada seria permitido apenas um abraço. No final das escamisadas era habitual fazer-se um bailarico”.
Para além desse seu talento inato, o meu avô tinha também alguma queda para comerciar. Como o seu filho mais velho “Manel” foi, durante muitos anos, cozinheiro no Restaurante “Pedro dos Leitões”, em Sernadelo, junto à Mealhada, então e mais que certo, talvez pela ligação ao filho, vender-lhe-iam a fressura -elemento das vísceras do animal e utilizado na alimentação- certamente mais em conta. Durante muitos anos, com uma bicicleta “Albata”, com um recipiente em lata, atado no assento traseiro, o meu avô Crispim correu a freguesia a alienar fressura. Quando esta faltava vendia sardinha “salgada”. No princípio da semana levava ovos, comprados pela minha avó Madalena no Salgueiral, e na volta trazia do “Pedro dos Leitões” uma grande quantidade de fressura, que seria conservada em sal até ser comercializada de terra-em-terra.
Quando a minha avó faleceu, por volta de 1961, o meu avô desistiu das vendas de carne e peixe e virou-se para a produção de carvão. Comprava a madeira de medronheiro e betoino, que são lenhosas compactas e muito duras, fazia um buraco na terra e a seguir, com barro e pedras, construía um grande forno com uma pequena abertura. Depois colocava os cepos uns em cima dos outros lá dentro e incendiava-os. Durante vários dias, em combustão lenta, os troncos transformavam-se em carvão vegetal. Já pronto e como bem essencial para a indústria ia vende-lo ao Luso, às lojas dos senhores Adelino Carvalho, Aníbal e Carlos Castro.
O meu avô Crispim teve em vida dois grandes sustos. Um, sofrendo na pele, apercebeu-se bem dele. Outro, já moribundo, não se deu conta.
No primeiro, lembro-me bem dela na sua mesa-de-cabeceira, ele tinha uma pistola de chumbos. Um dia, na sua casa, tendo-a carregada em cima de uma mesa, entrou o meu tio Albertino, seu filho também já falecido. Começaram a conversar, palavra puxa palavra, e às tantas o Albertino, em jeito de curiosidade e sem premeditação, pegou na pistola, apontando-lha, deu ao gatilho e… ”ai meu filho da puta, que me mataste” –gritou o meu avô, atingido pelos chumbos. O meu avô ficou bastante ferido. Mesmo sendo macaca, a sua sorte é que foi apanhado na fronte e na cabeça. Quem lhe valeu, como seu anjo da guarda, foi a minha tia Dorinda. Para além disso, para evitar complicações com a polícia, até se restabelecer, durante vários dias, esteve retido em casa e mal saiu à rua.
O outro susto, que já não se deu conta, tem algo de tétrico. Como estava às portas da morte, com um pé lá dentro e outro fora, correu o boato de que tinha expirado. Era hábito a sua casa, durante todo o dia, manter-se de porta aberta. Como quem cuidava dele era a minha tia Dorinda, quando foi vê-lo, entrou e deparou-se-lhe um homem com uma fita métrica na mão a tirar-lhe as medidas ao corpo. Era o Salvador, o “manco”, que era informador do “Quim Magro”, o “doutor caixão” e vendedor de urnas do Luso, que ouvindo o boato e antes que alguém se antecipasse começou logo por lhe fazer as medições com ele ainda vivo… para o “sobretudo”. Outros tempos, outras vidas, saudades que restam na memória.


O MOMENTO DA VERDADE

("O MOMENTO DA VERDADE-DIZER A VERDADE...COMPENSA")


“O momento da verdade”, a actual concurso da SIC, é um dos mais repelentes espectáculos televisivos apresentados nos últimos tempos. Num dos últimos concursos, entre várias perguntas ao concorrente, uma delas era se o “concursante” já tinha sido infiel. Ao que parece, como estão ligados a um polígrafo ou detector de mentiras não lhes resta outra alternativa que dizer a verdade. O polígrafo é um aparelho que mede e grava registos de várias variáveis fisiológicas enquanto uma série de questões são formuladas. Se o examinando “aldrabar”, o registo magnético indica linhas variáveis, interrompendo, assim, uma linha contínua.
Como o concorrente respondeu que, sim senhor, já tinha sido infiel, resultado: O casal em questão separou-se.
Esta semana, e ainda segundo a publicidade do canal independente, a pergunta é: “se ganhar o Euro-milhões troca a sua mulher por outra?”. Sinceramente, é uma pergunta muito parva para ser compreendida, mesmo à luz de concursos televisivos de entretenimento. Só pode ser entendida num cenário terceiro- mundista, em que vale tudo. Onde a ética ou moral são cactos desprezíveis num jardim pouco cuidado. Para conseguir dinheiro vale tudo? É evidente que aqui não há inocentes. Somos todos culpados. É o canal, por apresentar um “pacote” tão repelente. São os concorrentes porque, a troco de “cinco reis de mel colado”, se expõem e, num espectáculo indecoroso, destroem a sua vida familiar e somos todos nós, como voyeurs indecentes, a contribuir para o descalabro social. O que me provoca “frisson” é que, em princípio, qualquer programa deve ser proactivo, criando positividade e boa disposição, elevando o lado bom que existe dentro de cada um. Neste caso, e contrariamente ao que se espera, este absurdo concurso salienta o pior que existe dentro de um humano e provoca a destruição moral e material.
É interessante como passados mais de dois mil anos, ainda que numa nova embalagem, a filosofia animalesca e grotesca do Circo Romano volte a estar presente, agora dentro das nossas casas. Não há dúvida nenhuma que o tempo passado, que medeia o Coliseu de Roma e os nossos dias, nada se alterou, pouco trouxe de novo à sociedade. O homem, na sua essência, nada mudou. Continua igual a si mesmo. Ou seja, é um animal vestido de racionalidade mas continua a matar, a prejudicar, a roubar, a invejar, tal-qualmente como o mais primata irracional do universo. Se atentarmos, o que mudou foi o ambiente exógeno que o rodeia. Continuamos todos a ser uns carroceiros rústicos, bem aparentados, vestidos com boas maneiras, bem apessoados no trato. A única coisa que substituímos, para além da vestimenta, foi o cavalo pelo bólide.
Voltando ao programa “Momento da verdade”, e sem me querer armar em moralista, se posso pedir alguma coisa, é que não vejam esta porcaria atentatória aos princípios de alguma decência que deve existir dentro de nós.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

UM DRAMA DE GERAÇÕES EM VÁRIOS ACTOS



“Chamo-me Miguel e tenho onze anos. O que me levou a escrever não é contar a minha curta narração de vida, mas a história em que estou envolvido e dela, como actor, faço parte. Como se duma peça teatral se tratasse, sou o mais novo, o benjamim da família. O meu irmão mais velho tem 22 anos e o do meio 16 anos.
Tudo começou há vinte e poucos anos, quando os actores principais, os meus pais, depois de dois anos de namoro, “deram o nó” na principal igreja da cidade. Como devem calcular não pude estar presente, mas contaram-me tudo. Vieram amigos de longe e foi uma alegria grande para os meus avós maternos e paternos.
A minha mãe, então com vinte e cinco anos, irmã de mais oito, embora vivessem na cidade, era muito pobre. A preocupação do meu avô, homem extraordinário, com um coração de ouro, que conheci muito bem, pai da minha mãe, foi sempre apenas e só o bem-estar dos seus nove filhos. Na sua casa nunca houve luxos, nem grandes farturas, mas nunca a fome por ali passou. Por lá, como no mais justo tribunal, tudo era milimetricamente dividido irmãmente. Quando morreu há oito anos, tinha eu três anos, não deixou terras nem ouro, antes deixou baús cheios de boas recordações em todos os meus tios e uma amizade fora de comum entre todos eles. Como é tão normal nestes casos, onde a ganância individual impera, em conflitos de partilhas, substituindo os laços de amor pela raiva, aqui, como nada de material havia para repartir, dividiram o espírito de amizade recíproca entre todos eles.
O meu pai, nascido na Beira Alta, mais novo que a minha mãe cinco anos, também filho de gente muito pobre, os meus avós, mal fizera 12 anos, e farto de uma vida de sacrifícios, sem nada ter a não ser uma ambição desmedida, um dia tomou a camioneta de carreira e, sem ninguém para o amparar, fugiu e veio trabalhar para a cidade. Naturalmente, se a vida foi sua madrasta, o obrigou a trabalhar duro em vez de brincar, lhe deu o pão, em côdeas, que o diabo amassou, é evidente, pelas agruras do destino, que o meu pai tornou-se um pouco egoísta e frio. Nunca senti muito amor da parte dele. Mas, podem crer, não o acuso de nada. Afinal, se não recebeu carinho como poderia ele dar-me algo que não conhecia?
Já a minha mãe, contrariamente, como contei, nasceu e cresceu em berço de amor. No entanto, no rancho dos nove irmãos, foi sempre diferente de todos os outros. Isto é, mais “malhadiça”, muito teimosa! Ao longo da sua vida, viveu sempre com um complexo de inferioridade: sempre achou que a sua mãe, a minha avó, gostava menos dela do que dos outros irmãos e nunca lhe dava o que ela tinha direito. Mesmo não sendo verdade, nunca nada a convenceu do contrário, fosse o melhor brinquedo ou um sentido gesto de amor mais profundo. Era assim e pronto!
Por acasos do destino, quando eu nasci, em 1997, a minha mãe apanhou uma depressão pós-parto –vocês sabem o que é não sabem? Eu mal sei contar por palavras mas, como senti e continuo a sentir esta “coisa”, penso que vos consigo explicar: é um período de risco psiquiátrico, aumentado pela fragilidade num ciclo de vida da mulher. Consiste numa manifestação depressiva de intensidade variável, em que o factor principal é a quebra do vínculo afectivo entre mãe e filho, podendo interferir nas suas futuras relações interpessoais. Se calhar tive azar, não sei! A verdade é que, hoje, talvez porque nunca fui amado, sinto que não fui desejado. E como devem calcular, sinto-me infeliz. Curiosamente, num ambiente totalmente contrário ao dos meus pais. Há coisas do arco-da-velha, eles, tendo carinho, foram infelizes por, em crianças, nada terem materialmente, eu sou infeliz por me terem dado tudo, muito mais do necessário, e, custando tão pouco, não me ofereceram o principal, que seria o seu amor. Ainda sou novo, mas já me apercebi que esta vida dá tantas voltas. Parece que o destino, ressabiado com as gerações passadas, teima, numa vingança obsessiva, em castigar alguém no presente. Para má sina minha, ao que parece, calhou-me, em sorte, a mim.
Vou então continuar, nem o facto de eu ter nascido serviu para aproximar os meus pais. Ao longo da minha curta existência passei a sentir ser, metaforicamente, o psiquiatra dos dois. De um ouvia cobras e lagartos do outro. Nenhum deles, nunca, se preocuparam em me perguntar, a mim, o que eu sentia.
O meu pai, não sei se para abafar as mágoas que o corroíam por não ser o progenitor e marido que devia, ou outra coisa qualquer, numa escalada sem precedentes, trabalhando noite e dia, alcançou um patamar de tal forma incomum, que lhes permitiu ter mais que uma casa, vários carros, motas e tudo, materialmente, o que o dinheiro pode comprar.
Há dois meses, depois de uma guerra sangrenta de anos, dividida entre balas de amor-ódio, em casa com pão mas sem razão, assinaram finalmente –pensava eu- o armistício, como quem diz o divórcio. Como nenhum deles verdadeiramente queria a separação de facto, perante o juiz, estranhamente ou talvez não, comprometeram-se a, como se nada se tivesse passado, embora separados de direito, a vivermos todos na mesma casa e em comum cuidar de mim. Estava de ver que não dava certo.
Há dias, na minha presença, a minha mãe partiu uma cadeira na cabeça do meu pai. Este retribuiu e ambos, seguidamente, foram para a polícia pedir protecção, por agressão, em cenário de violência doméstica.
Hoje, a minha mãe, fazendo de conta de que eu e os meus irmãos não existimos, furibunda e carregada de ódio, foi às finanças queixar-se do meu pai por…fuga aos impostos.
Como vai acabar a peça? Qual é o meu papel de criança desprotegida neste cenário de guerra, nesta ambição desmedida, nesta vida estúpida e fútil, qual vai ser o meu futuro? Não sei! Provavelmente muito mal. Aguardem pelo epílogo.”

UM CORAÇÃO ABALADO



Margarida é uma flor,
olhos verdes a brilhar,
como sol da meia-noite,
no Pólo Norte a dançar;
Margarida era segura,
nada a fazia tremer,
era uma rocha dura,
onde o mar ia bater;
Um dia a coisa mudou,
a menina, brecha abriu,
um raio a penetrou,
Margarida mal sentiu;
Mas o raio era efémero,
e partiu sem avisar,
a menina ficou triste,
sem esperança dele voltar;
Margarida agora chora,
em ter dado uma abertura,
já se fechou numa concha,
agora é muito mais dura;
Olha o chão, apanha os cacos,
duma relação partida,
já deixou de acreditar
em homens, está ressentida;
Mas ela vai recobrar,
podem ter toda a certeza,
ter caído em tentação,
deu-lhe forças na fraqueza.

sábado, 13 de setembro de 2008

BAIXA: A MENINA DANÇA?




É sexta-feira, são 23 horas. As ruas estreitas do centro histórico estão praticamente desertas. Não fosse o estridente miar de um gato num recanto mais obscuro, que certamente se assustou, e, dir-se-ia, não ter vida. Por entre uma amálgama de estabelecimentos, com inscrições nos vidros, de “Liquidação”, outros tantos com papeis colados a indicarem já terem claudicado, e, por entre os restantes ainda resistentes, muitas montras sem luz, como se, com este gesto de poupança forçada, quisessem, em apelo redobrado de SOS, neste protesto difuso e silencioso, através da imagem da coisa, substituindo o desânimo do obreiro, mostrar aos poucos noctívagos passantes que a Baixa necessita de ajuda. Precisa de socorro exterior, através de medidas políticas concretas, e interior, ou seja, quem trabalha na Baixa, numa recuperação da auto-estima, tem de acreditar na sua revitalização.
Das muitas casas de restauração hoteleira, a esta hora, resiste o Café Santa Cruz, O Salão Brazil, o Restaurante Praça Velha e a Taberninha.
Um casal de turistas, o homem de bermudas e camisa Taiti, passeia despreocupado com a máquina fotográfica a tiracolo no Largo do Poço. Neste largo, tinham acabado de jantar no Salão Brazil. De repente param estáticos. Parecem confusos. Do seu lado esquerdo, da Praça 8 de Maio, ouvem rimas da “Moleirinha”, vindos de um grupo de Folclore. Do seu lado direito, da Praça do Comércio, em contraste de estilos musicais, vêm sons ritmados de um conjunto de musica de baile, do “Só mais um beijo”, dos “Irmãos Verdades”. Um pouco aturdidos, em saber por qual optar e, admirados por, num curto raio de cem metros, as músicas, como batalha sonora, em luta fratricida, parecerem querer aniquilar-se uma à outra.
Seguiram então em direcção à Praça 8 de Maio, onde, naquele magnífico cenário Românico, actuava o rancho típico e assistido por escassas dezenas de pessoas. Depois de tomarem um café no Santa Cruz, atravessando a deserta “calçada”, rumaram em direcção à Praça do Comércio.
Nesta praça, contrariamente à anterior, o ambiente estava animado. Numa recriação de um baile à moda antiga, algumas centenas de pessoas assistiam à actuação do conjunto trio “Mar e Samba”. Num espaço de dança improvisado, algumas dezenas de pessoas manuseavam o corpo. A senhora turista, aos sons de “Desejo meu”, não resistiu e puxou o marido para a roda. Ao seu lado, o sexagenário e residente na Baixa, o Neves mostrava os seus dotes artísticos de dançarino, fazendo lembrar Richard Gere, em “Dança comigo”. Quase a tocar-lhe o ombro, o Rui, já bem entrado nos “entas”, com uma careca de invejar e uns bem estimados cabelos brancos, escultor conhecido, entre a Conchada e o centro histórico, de camisa completamente encharcada, sem perder uma moda, num afã, rodopiava na roda e mostrava aos espectadores que o seu talento de artista ia muito para além do que se conhece dele. No outro lado a Ifigénia, que “trabalha” na avenida, meteu folga e, derretida, nos braços do seu verdadeiro amor, mostrava que a dança não escolhe classes, não discrimina ninguém e pode ser a chave da inclusão. A seu lado, o Almerindo, um polidor de esquinas profissional e que nas horas vagas faz uns biscates no gamanço, tentava engatar uma brasileira. Num multiculturalismo sem precedentes, entre cores de pele e turistas de várias nacionalidades, o Anastácio e o Jacinto, cabo-verdianos, ensaiavam uns passos de dança à espera da “coladera”.
Ao lado, quem ganhou a noite foi a senhora Maria, casada há quase 50 anos com o Mário. Este, ao som de “aperta, aperta”, como “tennager” inconsequente, chegava a si a “ti” Maria, de tal modo que esta, afogueada, parecia ter recuado no tempo e ter a seu lado um homem novo. Mas o melhor estava para vir. Quando o paquistanês Ibraim, com um braçado de flores, naturais e viçosas, estandardizadas em celofane, chega junto deles e pergunta: “qué frô?”, então não é que o Mário, num acto nunca visto aos olhos da sua “cara-metade”, puxa por cinco euros e oferece-lhe uma rosa vermelha? A senhora Maria, ali, naquele espaço de paz e concórdia, entre remediados e carenciados, chorou de felicidade.
No palco, interrompendo a música, alguém se preparava para falar. Ia intervir o presidente da junta, o Carlos Clemente. O nosso casal de turistas, mal falando português, perceberam, pelos gestos, que, para além da timidez, é um homem de acção. Mesmo assim ainda conseguiram compreender uma ou outra frase, como por exemplo, “nós gostamos muito da Baixa”. Repararam, pela sonora efusão de palmas, que todos estavam de acordo. Quando o Clemente desceu do palco, como político em campanha e bom anfitrião, observaram que se dividia em dançar ora com a boazona turista brasileira, ora com a “menina” Etelvina que, pelas rugas, já perdeu a conta às primaveras que tem.
Era 1 hora da manhã quando encerrou o baile. O nosso casal de turistas, em despedida, foi ter com o Clemente e, juntando os gestos a um português “macarrónico”, disseram-lhe: “Continua. Nós gostar muito de tu festa, pá!”.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

O MEU LARGO





Vou falar de um recanto encantador,
desenhado no estreito de ruas pequenas
por arquitecto que sabia dar valor,
no coração da velha cidade Lusa Atenas,
descrevo-vos o meu largo com amor;
Ao fundo tem um café “popular”,
noutro lado, duas sapatarias,
em frente, tem um pronto-a-mudar,
tem uma loja de memórias, de velharias,
o meu largo tem alma, espírito de animar;
Aqui reina a paz e a concordata,
por entre a lamúria do ceguinho,
o apelo gemido da cigana timorata,
a lengalenga do aleijadinho,
aqui também há uma bela mulata;
No meu largo nunca se fala em demasia,
fala o Adelino, o camarada comunista,
contra tudo, contra a Social-democracia,
cala-se o “Manel” porque é centrista,
eu faço a ponte entre toda a ideologia;
Lá no canto, espreita o Sérgio, comodista,
conta os trocos, aponta os calotes,
olha para todos com olhar de artista,
fala sozinho, inventaria os dotes,
atura bêbados como malabarista;
É fenomenal esta praceta de antanho,
dizem que aqui morreu freira de alegria,
contam tanta coisa que nem estranho,
se disserem que Camões aqui escreveu com empenho,
é tão belo, entre os mais belos, o Largo da Freiria.

O PROFESSOR BAMBO EM COIMBRA



Segundo o Diário de Coimbra de hoje, em publicidade inserta na última página, o professor Bambo está em Coimbra.
No rectângulo de 1/9 de página, pode ler-se que o ilustríssimo (e ilustradíssimo) professor de ciências ocultas já ajudou milhares de pessoas com problemas. Para além disso, em currículo sucinto, pode ler-se que o mestre possui 28 anos de experiência a recuperar casamentos, amores, famílias, dinheiro, negócios, vítimas de trabalhos de magia, inveja, ciúme, maldade, etc.
Não lhe parece estranho a vinda, nesta altura, para Coimbra, do alto dignitário da cultura africana? Pois é, também a mim! Porque será, porque será…?
Hum!…deve ser coisa grande, comecei a pensar. E, de certeza absoluta, que deve ser algum casamento desfeito, falava eu, sozinho, com os meus botões. Certamente vocês já se viram numa coisa destas, ou seja, a gente está a ver a coisa, têm as premissas, arranha na cabeça, arranha, mas a conclusão não sai. Estão a ver, não estão? Pois é. É isso mesmo, é uma “ralação”, como diria a minha avó.
Vocês não me conhecem, mas eu, ainda que não pareça, sou igual aos outros, como quem diz, não gosto de perder nem a feijões. A talhe de foice, que me lembre, a única coisa que gostei de perder sabem o que foi? Pois é isso mesmo que estão a pensar. Vai daí, então, com uma ansiedade tremenda, fui para a rua investigar. Algo me dizia que a solução estava aqui na Baixa, e nestas coisas, passando a imodéstia, tenho boa intuição. Comecei por falar com a “menina” Lurdinhas –vocês não conhecem, mas, para já, ficam a saber que é uma velhota octogenária do “leva-e-traz”- que sabe tudo o que se passa por aqui. Quando a interroguei acerca da novidade, ficou atarantada e, como grafonola com disco riscado, só repetia: “o professor Bambo em Coimbra??!”
Resumindo, depois de uma hora perdida, acabei por vir sem nada. Fui então a casa da “menina” Ermelinda “Le future” (esteve muitos anos em Paris), que mora numa ruela estreita, aqui no centro histórico, rodeada de gatos esfaimados e uma cadela, a “Fifi”. Subi as escadas do 13, por entre o estalar da madeira decrépita, o miar de mais de uma dúzia de gatos, e o latir da “Fifi”, coitadinha. Bati à porta, veio a “menina” Ermelinda vestida com um robe estampado que já viu melhores dias. Mal abriu a porta, fui logo invadido por aquele fedor insuportável a gato, e, como se fosse pouco, levei logo com a gataria toda em cima. Comecei por lhe perguntar se sabia da novidade. “Qual novidade?”, interroga-me a menina Ermelinda.
Quando estava para responder, comecei a sentir um pé molhado. Olho para baixo e fiquei doido, então não é que o raio da cadela mijou-me no sapato? Fogo! Ai que vontade que tive de mandar um pontapé “à figo” no raio da “deslambida”. Mas vocês sabem, até os duros (como eu) se abatem. Engoli o sapo, como quem diz, fiquei com o pé molhado, fiz uma festa na cadela, apertei o nariz como se apertasse a borracha de uma corneta, e entrei na sala do aposento imundo da senhora “Le future”. O que uma pessoa sofre para chegar a uma informação.
Mandou-me sentar à volta da mesa redonda, onde estava a sua bola de cristal –eu já conhecia, já lá tinha estado-, concentrou-se, começou a rezar, entrou em êxtase, e numa voz gutural, saídas das profundezas da terra, interpelou-me: “o que queres meu irmão?”
Só queriam que vissem, os gatos começaram a miar assustados, em mil acordes desafinados, a cadela “Fifi”, tão sensível como é, não conseguindo aguentar as águas, coitadinha, mais uma vez se mijou toda. Vá lá que tive sorte, os meus sapatos estavam longe.
Eu, que até me julgo forte, nestas alturas, aqueles “instrumentos” que paradigmatizam os homens, caiem-me sempre ao chão, mas não me dei por achado e respondi que queria saber o motivo da vinda do professor Bambo para Coimbra. Foi então, para minha surpresa, naquele pequeno cubículo, senti-me um felizardo. Que me importava o fedor a gato, o ter um pé encharcado, perante a satisfação plena da minha curiosidade? Aquela voz cavernosa rugia assim: “O professor Bambo foi contratado pelo presidente da Câmara, Carlos Encarnação, para que aquele, com o seu intemporal poder dos búzios, tente consertar o “casamento” entre o chefe da autarquia e Horácio Pina Prata”.
Ainda perguntei ao espírito da senhora “Le future” se eles ainda se amavam mas fiquei sem resposta. Tinha acabado o transe e fiquei pendurado.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

A MEALHADA E O PEQUENO REINO DO BUTÃO





O Butão é um pequeno reino com uma monarquia constitucional, com cerca de seiscentos mil habitantes, com fortes tradições e assente em pilares históricos de regime feudal. Em 24 de Março de 2008, os butaneses, depois do rei Jygme Singye ter abdicado a favor do seu filho e anunciando a realização de eleições democráticas, através das urnas puseram fim a mais de um século de monarquia absoluta.
Esta pequena nação, localizada na Ásia, “encravada” entre dois gigantes, A China e a Índia, tem a sua economia essencialmente baseada na agricultura, extracção florestal e, nos nossos dias, com uma forte aposta no turismo. A agricultura, essencialmente de subsistência, e a criação animal, são os meios de vida para 90% da população. É uma das menores e menos desenvolvidas economias do globo. No entanto é um país rico, com um PIB (Produto Interno Bruto) per capita entre os mais altos do mundo.
A Mealhada é sede de município e consta no último censos de 2001 com 4043 habitantes. Foi elevada à categoria de cidade em 26 de Agosto de 2003. O actual presidente, Carlos Cabral, eleito nas listas do Partido Socialista, está na Câmara há mais de 18 anos.
Esta pequena cidade está localizada, como enclave, entre duas grandes cidades, Coimbra e Aveiro, a primeira, a maior da zona centro, embora estagnada, a segunda, uma urbe média, cheia de ambição, onde a proximidade do mar, com a sua ria e os seus canais, a transformam numa futura Veneza portuguesa.
A Mealhada tem a sua economia essencialmente baseada na agricultura, sobretudo no vinho, e na extracção florestal. Para além disso, o turismo, através do seu afamado leitão assado, constitui um dos seus maiores proveitos. Dentro do país, intelectualmente, será um dos municípios menos desenvolvido. Apesar disso, a autarquia, financeiramente, fruto de uma gestão criteriosa, é desafogada e rica. É das poucas autarquias sem défice. Pagando a fornecedores a curto-prazo. Para além disso, contrariando outras câmaras do país tem uma rede de saneamento básico praticamente a 100%.
Pergunta você, Leitor, qual a razão desta comparação? Calma, vá lendo que vai entender sem dificuldades.
Hoje, dia 11 de Setembro, era dia de reunião pública do executivo mealhadense, e porque apresentei nos primeiros dias de Junho um “Anteprojecto em forma de Ideia” para criação de um “Parque Expo de Mesteres Antigos da Mealhada –Artes & Ofícios Tradicionais”, em que, para além de plasmar a ideia em várias alíneas, me oferecia para ceder a termo e a título gratuito algum acervo de antiguidades, sobretudo relacionados com profissões em desaparecimento, para início de fundação de um museu, uma vez que a Mealhada não tem nenhum. Esta ideia surgiu depois de ter lido um editorial no Jornal da Mealhada. Acontece que passaram três meses e resposta da autarquia nem vê-la.
Nos últimos dias do pretérito Agosto, numa terça-feira, desloquei-me à Câmara e, à funcionária assessora do gabinete da presidência, contei ao que ia e que estranhava a falta de comunicação. Para além disso, como era natural do concelho e estava ali de férias nessa semana, pedi para ser recebido pelo presidente Carlos Cabral. A senhora, pedindo-me o número do telemóvel, comunicou-me que levaria o assunto ao presidente e que no dia seguinte me diria alguma coisa. Na quinta-feira seguinte, à tarde, recebi um telefonema da senhora funcionária informando-me “que o senhor presidente não tinha recebido nenhum Anteprojecto e, para além disso, não me poderia receber nessa semana, que quando houvesse possibilidade que me telefonaria”. Portanto, caso eu quisesse a apreciação do presidente teria de novamente apresentar uma segunda via.
Evidentemente, perante esta displicência, passei-me. Retorqui à senhora que outro documento nem pensar. Para além de mais, se o presidente me quisesse receber ou não, era com ele. Depois de pensar melhor, neste profundo acto desrespeitoso, no dia seguinte, de manhã, estava perante a funcionária a declinar ser recebido pelo chefe da autarquia. Responde a funcionária: “não quer mesmo que seja apreciado o seu Anteprojecto? É que afinal está cá!”
Logicamente que neguei tal intenção. E como “quem não sente não é filho de boa gente”, hoje, às 15 horas, estava presente na reunião pública do executivo para apresentar o meu protesto.
Perante o executivo, e diante dos três vereadores da oposição PSD, dirigindo-me ao presidente Carlos Cabral, reiterei o profundo desrespeito que sentia por parte da autarquia. Lembrei-lhe que para além de, legalmente, estar vinculado ao princípio de resposta em tempo útil, acima de tudo, para além da lei, há princípios éticos a cumprir, e que, neste caso, não o foram. Olhos-nos-olhos, disse-lhe que num tempo em que se apela constantemente à cidadania e à participação política é inadmissível que quando alguém tenta romper as barreiras claustrofóbicas existentes é ostracizado duma forma que raia a provocação. Infelizmente, nota-se que tal comportamento é há muito transversal ao país, independentemente das cores partidárias.
Carlos Cabral, como imperador ferido no seu amor-próprio, sem disfarçar o azedume, e com alguma rispidez, retorquiu: “em mais de 28 anos o senhor é a primeira pessoa a dizer-me que desrespeitei alguém e a acusar-me de falta de ética”. Trocando os pés pelas mãos, demonstrando não ter lido o documento, e utilizando alguma ironia, rematou asperamente: “proposta académica? Isso é o quê? Académica, só conheço a de Coimbra”. Pedi-lhe para contra-argumentar mas, irritado, com aspereza, negou: “o senhor já disse o que tinha a dizer”.
A segunda pessoa a intervir era um edil do PS e de uma junta de freguesia próxima –pela repulsa que me causou escuso-me a referir o seu nome e o lugar que representa. Começou com a seguinte introdução: “quero-lhe dizer senhor presidente, antes dos assuntos que me trouxeram aqui, que o senhor merece uma medalha de ouro do concelho”. Ou seja, num subserviente acto, esquecendo-se que um edil de uma freguesia perante o presidente da Câmara local deve exigir e não esmolar, estendeu a passadeira vermelha ao chefe, certamente, também, para mostrar que era um seu “cão de fila” e que estava ali para o defender com unhas e dentes.
Claro que o chefe do executivo, como ditador do Butão, perante tal encómio, derreteu-se todo e quando o tal edil perguntou se podiam entabular um diálogo, logo o chefe, sem delongas, anuiu: “claro, claro, esteja à vontade!”
Quanto à oposição, sinceramente leitor, nem lhe consigo dizer o que senti. É branda, duma moleza a fazer lembrar a manteiga, gentil, e dirige-se ao presidente da edilidade com “pezinhos de lã” e modos reverenciais.
Por seu lado, sem qualquer respeito, duma forma prepotente, Carlos Cabral quando se dirige aos vereadores da oposição é sempre com ironia, não disfarçando o seu tratamento de menoridade. Por parte dos vereadores do executivo, reparei que os bocejos eram constantes.
Durante as duas horas e meia que permaneci no Salão Nobre, a meu modo, analisei os seus gestos, os seus olhares, a forma de se exprimirem, e, sinceramente, a impressão que trouxe não podia ser mais negativa. Usando uma metáfora, aquele quadro parecia a branca de neve e os seis anões.
A Mealhada, a bem da democracia, tal como reino do Butão, precisa de uma revolução política que altere este situacionismo.
Já percebeu agora porque fiz a analogia com aquele pequeno reino?

11 DE SETEMBRO DE 2008

(AS TORRES GÊMEAS, ANTES DO ATENTADO, EM 2001, EM N.Y.)

Hoje, passados sete anos do grande atentado que abalou o mundo, talvez fosse bom pararmos por um momento e pensarmos o que foi feito, ao longo deste tempo, para melhorar as relações económicas entre o primeiro e o terceiro mundo.
Para além de medidas “securitárias” levadas ao extremo, quase a raiar a paranóia, o essencial, ou seja, as assimetrias entre o G8 e os restantes países continuam. Estou certo que não exagero se disser que aumentaram. A chamada prevenção, tomada pelos Estados tem servido para tudo, até para “tirar camisas”. Num fundamentalismo patológico, em nome da segurança, assistimos hoje às maiores invasões da vida privada.
Em Portugal, depois de sete anos, como já é habitual as ondas de choque chegaram passado todo este tempo. Parece que o 11 de Setembro, no país, foi este ano. Estamos a assistir a medidas que, se não fossem trágicas, dava vontade de rir. São invasões de bairros problemáticos com as televisões atrás; são rusgas em estabelecimentos nocturnos; são operações stop sem precedentes; e até, pasme-se, há dias numa feira foram apreendidas pistolas de brinquedo em plástico. É certo que a similitude com as verdadeiras era notória, mas mesmo assim. Hoje, segundo o Diário as Beiras, “a PSP de Aveiro anunciou, ontem a realização de uma operação de fiscalização, num estabelecimento comercial, tipo bazar, em Águeda, e que levou à apreensão de vários objectos. (…) foi identificado (…) o comerciante por ter à venda diversos sabres, sem ter requerido o respectivo alvará”. Aposto qualquer coisinha que este homem vai ser absolvido. Palavra que gostava de ver o auto de acusação e ler o artigo do Código Penal que foi inserido como moldura penal.
Ora, perante a notícia, avaliemos então o gravíssimo ilícito deste comerciante de bazar de brinquedos. Esta nota de imprensa é acompanhada de uma foto com os sabres apreendidos. Então, como conheço muito bem este material, vou descrevê-lo. São imitações de sabres japoneses, em resina, com lâminas sem corte, também em plástico, que, mesmo arremessadas contra uma pessoa, não provocam qualquer dano, a não ser o de contusão. Estas espadas são vendidas no país há várias décadas e, quase tenho a certeza, nunca provocaram qualquer ferimento em crianças.
Agora digam-me: isto não é paranóia? Será que as polícias vão invadir todos os bazares de brinquedos à procura de pistolas?
Quando é que estas pessoas se capacitam que quem quer matar mata de qualquer jeito e até uma pedra da calçada serve? A apreensão obsessiva de armas é apenas uma inversão de ónus de intenção.
Tenho a certeza que esta minha afirmação não será unânime, mas é o que penso. Se não concorda, faça o favor de recalcitrar. Faça isso. Gostava de ler o que pensa a este respeito.