sábado, 29 de março de 2008

COIMBRA: OS HOMENS DO GELO



A Tasquinha da D. Graça, na Rua Velha, na Baixa de Coimbra, é um dos poucos e últimos estabelecimentos emblemáticos, de outros tempos, que restam na cidade. Resultado do talento gastronómico da dona do pequeno estabelecimento, é uma maravilha celestial para o nosso estômago comer uma refeição a baixo preço, petiscar uma patanisca ou uma sardinha em molho de escabeche, e bem regado com um bom tinto robusto, escolhido pelo senhor Victor, marido e também proprietário deste maravilhoso recanto pantagruélico. É aqui, durante as tardes da semana, que vários aposentados, entre eles, o Lino, reformado dos Serviços Municipalizados, o Armando, o Antunes e até o Emídio, que foi arquitecto e hoje, conjuntamente com o trio, jogam uma “suecada”, intervalada por entre um copo de três e uma sardinha. Aqui, neste recanto da cidade, o tempo parece ter parado e, contra a corrente dos novos usos e costumes, mostra, a quem passa, que a memória não se apaga e, ali, como num museu interactivo, pode ser visto, ao vivo e a cores, o ambiente bucólico de outros tempos remotos que, infelizmente, desapareceram do quotidiano das cidades.
Há cerca de três anos, devido a obras no edifício contíguo -constantemente interrompidas ao longo deste tempo -propriedade da Câmara Municipal, a Rua velha e o estabelecimento da Graça foram entaipados, deixando a pequena taberna completamente escondida das vistas de quem passava na Rua dos Sapateiros. Apenas uma pequena nesga de cerca de oitenta centímetros servia de fronteira de acesso entre a rua principal e o pequeno café lá ao fundo da rua Velha.
Subitamente, no verão passado, a Baixa acordou num frenesim de assaltos a estabelecimentos. A Tasca da Graça, por estar entaipada, não foi excepção, antes pelo contrário. De Setembro até Outubro foi assaltada 5 vezes. Quatro durante a noite e uma durante o dia, logo de manhã, ao abrir, foi surpreendida por um energúmeno que lhe pôs as mãos ao pescoço. Naturalmente, em face destes atentados patrimoniais e contra a vida, Graça estava prestes a ter uma apoplexia.
No dia 5 de Outubro, feriado Nacional, sem razões explicáveis, o empreiteiro da obra, mais o seu pessoal, utilizando uma rebarbadora, preparava-se para estreitar a pequena passagem de acesso e reduzi-la para 60 centímetros. Por ser feriado não contava que Graça estivesse dentro do seu estabelecimento. Quando ela ouviu o barulho da máquina de cortar ferro e se apercebeu da intenção dos homens da obra, saiu espavorida e gritou que parassem imediatamente. O empreiteiro, lá para os seus botões, certamente, deveria ter pensado que era apenas uma mulher e continuou, impávido e sereno, como se nada fosse com ele. Graça, num ápice, como padeira de Aljubarrota a defender o que era seu, retira-lhe a rebarbadora das mãos, com ela ligada e em riste, grita-lhes: “ou param ou morrem”. E não é que os estafermos pararam mesmo?
Como sou amigo, vizinho, e frequentador da casa –e, além disso, já tinha escrito para o Diário de Coimbra a denunciar esta calamitosa situação-, o senhor Victor, ligando-me, em aflição, rogou-me: “por favor senhor Luís, ajude-me que a minha Graça está prestes a cometer uma desgraça”. Quando cheguei lá já os homens tinham reposto tudo no anterior estado e tinham desaparecido. D. Graça estava uma lástima e chorava desalmadamente.
No dia 8, desse mesmo mês de Outubro, no Executivo Municipal, no período de intervenção aberto ao público, denunciei, o que classifiquei na altura de abuso de direito, omissão e desrespeito pela obrigatória harmonização entre o interesse público e privado, por parte da administração pública. Estávamos perante um clamoroso caso de injustiça e falta de sensibilidade do executivo perante um seu cidadão. Reiterei também que a autarquia não estava a cumprir o seu próprio regulamento, uma vez que aos particulares eram exigidos andaimes aéreos. Porque não o fizera igualmente a Câmara numa sua obra? Além de mais sabendo que estava a penalizar fortemente um seu inquilino e munícipe? E mais: até foram ao exagero de construir, em chapa, uma retrete a dois metros da porta do pequeno café, e dentro dos tapumes que revestiam as vigas de ferro de suporte à fachada.
Carlos Encarnação, o presidente da autarquia, driblando a bola, tentou explicar que a constante inércia das obras, ao longo de mais de dois anos, se devia à necessidade de novo projecto, e ao IGESPAR. Depois de uma fífia passada a outros vereadores que o corroboraram, atirou para canto, para o Director do Centro Histórico de Coimbra, Sidónio Simões, que numa espantosa habilidade técnica, perante aquele público, afirmou que os tapumes eram obrigatórios por questões de segurança. Como eu, convictamente e logicamente, afirmava que a segurança residia no vigamento de ferro e não nos painéis, e que estes deveriam ser recuados, perante o meu contraditório, numa teimosia a raiar o patológico, este senhor continuou a afirmar que não poderia mandar retirar os painéis de chapa do sítio onde foram colocados.
O tempo foi passando e a D. Graça foi continuamente sendo assaltada. Ora eu escrevia mais um texto, ora enviava e-mails para as televisões, ora telefonava ao chefe de redacção do Diário de Coimbra (DC), Manuel de Sousa, a sensibilizá-lo para esta injustiça e para este escândalo. O Diário de Coimbra esteve muito bem, como deve estar um jornal regional, ou seja, ao lado de um qualquer munícipe, sempre que sofre atropelos de facto e de direito.
Em Janeiro, deste ano, a D. Graça já ia no 8º assalto, e, como Belarmino, o maior pugilista português, sempre de pé e sem perder a fé. Há uma semana sofreu o 11º assalto. Mais uma vez o DC noticiou, vieram outros jornais nacionais, vieram os quatro canais em peso. A nível nacional, pela infelicidade, D. Graça foi notícia.
Ontem, dia 28 de Março, finalmente, a Câmara Municipal de Coimbra mandou retirar os painéis para trás e deixou a tasca da Graça a ver-se e a Rua Velha desimpedida. Eu deveria estar contente? Pois, talvez! Mas não estou. Estou triste com a insensibilidade e o comportamento destas pessoas que nos governam. E se a D. Graça responsabilizasse civilmente o executivo autárquico e o Director do Centro Histórico? Talvez, se ela os demandar, faça “jurisprudência”, e, de uma vez por todas, eles aprendam. Serão estes os modelos de políticos que queremos para o século XXI? Esta pergunta, de retórica, não tem, subjectivamente, qualquer interesse político-partidário. O que precisamos é de homens a gerir a polis, vestidos de sensibilidade, prontos e disponíveis para ajudar o cidadão, e não criaturas tecnocratas revestidos de cores partidárias que se estão a marimbar para as aflições e desgraças de uma qualquer dona Graça.

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