sábado, 29 de setembro de 2007

O QUE TENS NOBRE ANIMAL?



Porque olhas para mim cãozinho,
com esse olhar ternurento,
queres uma festa no focinho,
para não ficares macilento?
Porque estás tão esquálido,
pareces até magrito,
a verdade é que estás pálido,
apetece dar um grito;
Sofres de solidão?
Não. Isso compete ao humano,
mas tu também tens coração,
não és nenhum marciano;
Tens fomita se calhar,
ou alguém te abandonou,
poucos sabem o que é amar,
um ser que alguém desprezou;
Há gente má que nem consigo,
entender o porquê de maltratar
esquecem que és um amigo,
Que se deve estimar;
vai cãozinho leva esta festa,
é tudo o que posso dar,
vou dormir uma sesta,
nisso, não quero pensar.

POSSO LER A TUA SINA, ALBERTINA?

Dá-me a tua mão Albertina,
Para ver a linha da vida,
Deixa-me ler a tua sina,
Vou contar-te a tua lida;
Persegues uma paixão,
Se aparecer tu dás um berro,
Amarraste o coração,
Com grilhetas de anéis de ferro;
Mas é bom nunca mostrar,
quem muito gosta de ti,
se mostrar vais desprezar,
por ele pensar assim;
Se não te deram amor,
na tua marcante infância,
como podes dar valor,
e ligar-lhe importância?;
Construíste uma armadura,
que usas como semântica,
poucos sabem que não és dura,
tens uma alma romântica;
Quem entrar no teu olhar,
vai ver outra tão diferente,
até parecer adivinhar,
do que inferes ele sente;
Abre o coração Albertina,
escancara as tuas portadas,
mostra ao mundo a outra Tina,
que sonha e vive acanhada;
Fazes crer que és tão forte,
mas sofres de solidão,
basta atentar no teu porte,
para ler a tua mão.

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

ASSALTOS NA BAIXA DE COIMBRA: O ESCÂNDALO

(FOTO DE BRAGA PINHEIRO)


 Dona Graça chora desalmadamente. Apoia o seu queixo redondo no braço esquerdo sobre o balcão do seu estabelecimento. As lágrimas correm copiosamente no seu rosto de menina que o tempo, pela força de 16 horas diárias de trabalho, ao longo de várias décadas, foi deixando marcas de impregnada e indisfarçável dureza. É um dó ver esta mulher, naquela expressão máxima de sofrimento, modelo de uma Madalena, a soluçar de dor, de olhar sofrido, vazio , procurando algo ou alguém a quem o possa amarrar e fazer dele, por momentos, um porto de abrigo, e nele poder, em catarse, despejar toda a revolta que lhe vai na alma.
Graça foi assaltada esta noite, de 27 para 28 de Setembro, pela quarta vez durante este mês. Nesta noite, de maiores consequências que as anteriores, o seu estabelecimento, com grades de ferro, foi arrombado e vandalizado. Foram roubados, além de várias centenas de euros em dinheiro, vários quilos de chouriços, vinhos finos, licores e várias cervejas. Ao seu lado, Lurdes, com sapataria ali ao lado, nesta mesma manhã, teve a pior surpresa da sua vida: do seu armazém foram roubados cerca de 50 pares de botas, de colecção de Inverno que recebera há menos de uma semana. Este montante, ainda não pago ao fornecedor, ascenderá a cerca de 4000 euros. De olhos húmidos, doridos e encovados, quando lhe pergunto como se sente, fixa-me e responde: “ódio, frustração e incapacidade de nada poder fazer. Como é que vou aguentar esta vida?”.
Há comerciantes a dormirem dentro das lojas de caçadeira engatilhada, há espera do primeiro que se aventure. Quando morrer gente, que, no limite, poderão ser inocentes, será nessa altura que as instituições vão reagir? E quando falo em instituições, falo no Governo Civil, na Câmara Municipal e no Comando da Polícia de Segurança Pública.
O senhor Governador Civil entende que o Presidente da Câmara deve abrir concurso para guardas nocturnos. Carlos Encarnação, o presidente da autarquia, rejeita responsabilidades na segurança da urbe e, peremptoriamente, afasta a hipótese desta solução e remete o problema para o Comando da PSP. Para o Comissário Rui Moura “a Baixa é policiada todos os dias e este corpo de polícia tenta rentabilizar ao máximo os recursos de que dispõe. Sobre meia dúzia de estabelecimentos no fim de semana, e de acordo com os dados de que dispunha, não havia referência de que tivessem alarmes”. (Sic) –in Diário de Coimbra de 12 de Setembro último.
Ou seja, se atentarmos, todos passam a bola ou para o parceiro do lado ou, no caso do Comissário, passa o ónus para os homens do comércio. Neste driblar de bola, os desgraçados dos comerciantes, sem ordenado, sem direito a aposentação, a sofrerem diariamente assaltos e a insensibilidade de quem deveria ter a responsabilidade pela sua segurança, são o mexilhão deste mar revolto de marinheiros sem “gana” para conduzirem a bom porto esta nau da Taprobana. Sofram comerciantes. Talvez para o ano, depois de milhentas reuniões e quando vocês não tiverem nada para roubar, então sim, irão ter mais policiamento. Não se enervem. Vamos com calma, sim? Não façam ondas.

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

O OUTONO... E AS NOSSAS VIDAS

Depois de dias longos, plenos de luz e cor, prenhes de temperaturas quentes, vitalidade de mais um verão, que, pelo bem ou pelo mal, por uma recordação qualquer, ficou preso na nossa memória, pé-ante–pé, com sapatinhos de algodão, eis que, devagarinho, vai conquistando o seu território. Começa por cortar no “espaço” dos dias, tornando-os mais pequenos, mostrando-nos que tudo o que é longo, inevitavelmente, tornar-se-á pequeno. Depois, vai impondo um progressivo calor tépido e mais frio, como a sensibilizar-nos para a necessidade de tomar atenção de que os calores não são eternos, e a seguir a um período “caliente”, inexoravelmente, virá um frio de rachar.
Aí está o Outono. Depois de um revestimento de verde, como plumas a cobrir uma ave exótica, as árvores do nosso encantamento vão ficar despidas. Iremos, quase sem querer, numa qualquer avenida, chocar com uma folha amarelecida, que, antes de outras que se lhes irão seguir, tendo-se desprendido dum qualquer ramo, de um qualquer plátano, esvoaça ao vento, ziguezagueando, por entre transeuntes, uns mais apressados, que irão pontapeá-la ou pura e simplesmente ignorá-la, e nós, feitos poetas de ocasião, segui-la-emos, e nela, prendendo o nosso olhar, gostávamos de se deixar ir, ao sabor do vento e de um tempo impreciso e ocasional. As andorinhas, feitas viajantes pela força da natureza, começarão a fazer as “malas” e, sem desgostos ou frustrados desenganos, abandonarão os seus beirais, que durante escassos meses, foram os seus lares e ali assistiram ao nascimento dos seus filhos. Nestes ninhos deixarão mil recordações, mas mesmo assim, com o mesmo chilrear, com a mesma alegria, aceitando esta partida como natural, como uma partilha que irão levar aos povos do norte de África. Para a próxima primavera, sem lamentos, aí estarão elas, novamente, pujantes de força, e refarão os berços dos seus novos filhos e comporão as suas vidas.
Assim é a nossa vida. Tão cheia de calor como um verão, teremos, inevitavelmente, períodos frios, mas, como na natureza, as temperaturas quentes retornarão. E, se por motivos imponderáveis, nos tornámos andorinhas, aceitemo-lo, com a mesma naturalidade com que estas acolhem o seu destino fatalista. Não tenhamos medo de voar em frente. Quem sabe se no norte não estará um outro futuro sorridente. Porque haveremos, acomodados, de ter medo do desconhecido e de abandonar o nosso beiral? Serão apenas as recordações que nos prendem? Valerá a pena continuarmos no aconchego cómodo do ninho, mesmo não nos sentindo amados e pouco reconhecidos, só porque tememos os ventos desconhecidos do incerto? Porque não voarmos até ao norte? Se não nos dermos bem, com a mesma certeza de que amanhã será outro dia, no próximo ano haverá outra primavera e, certamente, como as andorinhas, começaremos de palha em palha a construir um outro ninho.
A natureza é tão pródiga nos ensinamentos e nós, como folha que esvoaça ao vento, sem se preocupar onde vai cair e sem olhar em redor, como invisual que vê mas não quer ver…não vemos.

FALA COMIGO DORA!

Boa tarde menina Dora,
tenho prazer em falar,
sei que não vai ser agora,
que se vai pronunciar;
Esse seu medo fatal,
deste ciber desconhecido,
pode crer, não faz bem, nem faz mal,
tem um valor acrescido;
Não fala porque sou feio?
serei casado, talvez?
realmente isto é um meio,
que tanto faz como fez;
Mas eu só quero conversar,
até porque você é casada,
não a quero molestar,
de si, não pretendo nada;
Você é linda, bem sei,
e não liga a qualquer um,
mas eu até sei que serei,
mais igual do que nenhum;
Gosto desse seu ar terno,
olhos de sofredora,
posso ser um sepiterno,
mas na alegria você é amadora;
Era capaz de a descrever,
contar tudo em pormenor,
pois ficaria a saber,
de tudo ao seu redor;
Essa tristeza a vai matar,
se não encontrar um ombro amigo,
o melhor é partilhar,
essa dor que tem consigo;
O que a fará desconfiar,
será que sou um malfeitor?
Ou querei ajudar,
a dirimir essa dor?;
Quem serei eu? Interroga surdamente,
Sou um viajante virtual,
que lhe quero bem, evidentemente,
nada me move de mal;
Essa sua tristeza me atrai,
como se eu fosse presciente doutor,
acredite, um dia cai,
você vai ter um grande amor.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

"MAMÃ...ESTES HOMENS SÃO UNS PARVOS!"

“Somos três mulheres quarentonas, uma casada, uma divorciada e outra ainda solteira. Trabalhamos num serviço público, ali na zona centro, do país. Por brincadeira, resolvemos inscrevermo-nos, cada uma com seu nique, num chat de encontros amorosos. Desde cedo, começámos a notar uma grande afluência de homens, pedindo para falarem connosco. Quando atendíamos, talvez em mais de 90% destes homo sapiens, era sempre: “olá…queres ir para a cama comigo?”. No princípio ficámos sem reacção. Como era possível que uma tão grande maioria do género masculino fosse tão abstruso? Que diabo, se ao menos começassem por ter uma conversa decente, como gente normal e, depois, no seguimento da conversa, pudessem descambar para o sexo, nem nos escandalizaria tanto. Afinal nós sabemos como são os homens; parecem ter uma vagina na cabeça de cima e um pénis na de baixo, que sem “cabeça”, atira em todas as direcções, desde que seja mulher . Mas sempre acreditámos que haveria, por parte destes alguma sensibilidade. Que diabo, quem pensam eles que somos? Algumas prostitutas de esquina? Claro que lhes poderíamos dizer que enganar uma mulher é a coisa mais fácil do mundo, desde que nos conquistem. Se derrubarem a porta do coração, se conquistarem a nossa alma, recebem um prémio suplementar, ou seja, dois em um: tomam a nossa alma, e como prémio, recebem o nosso corpo. Mas eles não sabem. Escravos da sua líbido, fazem o contrário primeiro querem o corpo e só depois vão à alma. Mas, porque estou eu aqui a lamentar-me? Nem vale a pena. É perda de tempo. Vamos mas é à história.
Como a lenga-lenga era sempre a mesma começámos a idealizar a melhor forma de retirarmos gozo disto. Afinal o que nos movia, às três, era apenas a brincadeira pura e simples. Uma estava bem casada, outra muito bem divorciada e outra ainda, voluntariamente, solteira por opção. Vai daí, combinámos as três, sempre que nos caísse um engatatão destes, e que entrasse a matar, responderíamos na mesma forma.
Começámos por comprar um número de telemóvel apenas para aquele efeito. Sempre que nos calhasse em sorte um destes malacuecos, haveríamos de os fazer pagar bem caro a ousadia de nos considerarem de “fáceis”. Sim pagar, mas a dinheiro, em chamadas de telemóveis. Em brincadeira, inventámos um novo serviço de chamada, não de valor acrescentado, mas a custo normal. Estes homens que não se preocupassem que cada gemido fingido nosso seria bem pago à operadora do telefone móvel. Então era só pedir-lhes para eles ligarem para o número indicado. E, naturalmente, como sedento vai ao pote da água, eles ligavam.
Os diálogos seriam sempre partilhadas pelas três. Ou seja, tornámos isto num quadriálogo. Durante a mesma conversa íamos trocando. Para nossa surpresa os mastronsos nunca notaram que estavam a falar, durante a mesma conversa, com três mulheres diferentes e com vozes de timbre completamente desigual.
A história repete-se imensas vezes. O recalcado sexual liga para o chat, lá vem o convite, e nós pimba: ele diz “mata”, a gente “esfola”. É só pedir-lhe para ele ligar para o número tal, e aí temos nós divertimento à fartazana, como quem diz, riso a cair para o lado. Já tem acontecido a impossibilidade de conter o nosso gozo hilariante e os risos serem audíveis e nem assim eles se apercebem.
Às vezes chegam a estar uma hora a falar. E nós, como perdidas, partimo-nos todas a rir. Por exemplo, temos um “cliente” do norte que, há cerca de um ano, nos liga todos os dias, quatro e cinco vezes . De vez em quando fala de nos encontrarmos, mas, evidentemente que para nós ainda não é possível. Arranjamos sempre uma desculpa. Depois, se ele é do norte nós somos do Algarve, se ele é do sul, nós somos do norte.
Como nós temos três niques diferentes, já aconteceu marcarmos encontro com o mesmo homem, no mesmo dia, em horas diferenciadas. E no mesmo local. Para o gozo ser completo, ele terá de vir de muito longe, quanto mais longe melhor. Algumas vezes, sem que ele saiba , estamos as três a observá-lo. A medir a sua ansiedade. Vamos intervalando com umas mensagens e o desgraçado espera...e desespera.
Já aconteceu aparecermos as três juntas ao encontro . Os apaniguados nem sabem onde se meter. Deveriam ficar agradecidos pela grande lição, mas nós sabemos que continuarão a fazer igual. É pena não é? E às vezes até nem são maus de todo. Mas que mulher pode aproveitar um mostrengo destes?
Ai mamã…bem tinhas razão quando, em criança, me avisavas que os homens não são confiáveis e prestam para muito pouco…”

(HISTÓRIA VERÍDICA)

UM ANJO DE OLHOS VERDES

(IMAGEM DA WEB)




Olhos verdes são traição,
diz o povo sempre assim,
mas, se eu fizer uma oração,
talvez Deus te cole a mim;
Se eu pudesse te prender,
amarraria o teu olhar,
enrolava-me nos teus olhos,
para nunca mais me soltar;
Bem sei que me tentas evitar,
escondes-te numa tina,
podes te esfumar ou levitar,
não podes fugir à tua sina;
Recebe estas flores,
são rosas do meu jardim,
por mais longe que tu corras,
jamais te esquecerás de mim;
A primeira vez que te vi,
prendeste-me o coração,
tanto lá como aqui,
num amor de perdição;
Podes achar que sou louco,
só um louco procede assim,
pode até te parecer pouco,
querer-te bem e junto a mim.

POEMA PARA UMA ROSA CONTEMPLATIVA

Bom dia Rosa do vento,
cercadura do meu olhar,
esquecer-te eu bem tento,
acabarei por te amar;
Tu tens um espinho no peito,
ardendo como uma frágua,
o teu coração palpita,
tentando expurgar a mágua;
Olhas além vês o mar,
essa visão que te acalma,
recebes esse bem estar,
invadindo a tua alma;
Lá longe tu antevês,
naquelas ondas salgadas,
bem no fundo tu bem crês,
que um dia vais ser beijada;
Da bruma do nevoeiro,
pressagias um navio,
esperas um marinheiro,
que reacenda o teu pavio;
Queres ser pegada ao colo,
como se fosses menina,
gostavas de estar no solo,
voltares a ser pequenina.

UM POEMA PARA TI

Esses teus olhos castanhos,
são fogo no meu inverno,
são mil oceanos tamanhos,
é a porta do inferno;
Se eu olhar o teu olhar,
entro nele sem o sentir,
começo a amaldiçoar,
o meu "colar" e não sair;
Esse teu sorriso louco,
atormenta-me e faz tremer,
sinto que faço pouco,
para me compreender;
É um relâmpago na noite escura,
é uma onda na praia grande,
é uma gota de água na secura,
é um milagre que Deus mande;
Por estranho que pareça,
lá se foi meu ideal,
pode ser que aconteça,
que este amor não faça mal;
curioso como somos,
os modelos que sonhamos,
pomos fora tudo o que fomos,
só com o presente contamos;
tantos sonhos corridos em água,
tantas noites sem dormir,
tantos anos numa mágua,
para os perder sem sentir;
O que importa é o teu sorrir,
dá-me calma e tranquilidade,
pareço nem querer sair,
do teu mundo transcendental;
Essa tua voz timbrada,
ecoa nos ouvidos,
é música de arpa tocada,
um apelo aos meus sentidos;
Passamos horas a falar,
perdidos num espaço banal,
o tempo parece não importar,
quando a conversa é natural.

sábado, 22 de setembro de 2007

OLÁ BEM-ME-QUER

Bom dia, minha flor,
pérola do meu jardim,
sei que queres um amor,
será que me queres a mim?;
Está bem, sei que sou feio,
mas é linda a minha alma,
é como se fosse centeio,
num campo de imensa calma;
Porque ris, é de mim?
Ou é cara de surpresa?
Será que és sempre assim,
dona de tão grande beleza?!;
Sei que não me ligas, pois sei,
quero só o teu olhar,
dar-te uma flor que não dei,
e um poema ao luar;
Vou-me embora, vou partir,
vou deixar-te este ensejo,
estou cansado, tenho de ir,
vou deixar-te um longo beijo.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DE SER COMERCIANTE

(FOTO DE BRAGA PINHEIRO)


 Anastácio tem 55 anos; alto, de olhar baço, ofuscado, sem brilho, esquálido, de um macilento escanzelado que faz impressão –no último ano perdeu 15 quilos. Este homem, outrora garboso, é hoje uma sombra errante, de uma imagem perdida, que o espelho guarda na memória mas que não voltará a reflectir.
Anastácio é comerciante na Baixa de Coimbra. Numa daquelas ruas estreitas por onde passaram, Camões, Eça, António Nobre e tantos outros poetas anónimos, cujos desabafos literários não passaram de uma gaveta de madeira carcomida pelo tempo. Aquele homem, se o vendassem, seria capaz de descrever cada edifício, cada recanto, cada ruela, e até cada pedrinha da calçada. Pelo cheiros e pelo ruídos, à força de uma rotina continuada, conseguiria identificar qualquer largo mais recôndito. Este é o universo deste homem, a sua alma, a sua força anímica, um amor sentimental, sem explicação racional, que só quem ama entende, só quem quer bem, consegue explicar.
Anastácio começou a trabalhar no comércio de rua, mal terminou a então escola primária. Corria o ano de 1962, lembra-se, foi o ano em que os Beatles lançaram o seu primeiro trabalho discográfico: “Please, Please me”. Como se, hipoteticamente ou não, fosse uma chamada de atenção para ele, a verdade é que ele pouco ligou à profética frase, até porque tinha absoluta necessidade de trabalhar.
Em 1977, ano do maior acidente aéreo da história -583 pessoas mortas, envolvendo os aviões da Pan Am e KLM, em Tenerife, nas Ilhas Canárias- premonitoriamente ou não, ele não sabe, a verdade é que mudou para um novo patrão. O comércio, dito agora tradicional, corria veloz como navio de velas desfraldadas, tocado por ventos de feição, saídos da Revolução de Abril. Tudo se vendia, o preço pouco importava. Entrava-se na obsessão materialista, onde o que contava era o ter e o parecer, em detrimento do ser. Poucos ou nenhuns adivinhariam que décadas mais tarde, para curar esta dependência obsessiva, numa catarse, em psicanálise continuada, o país, psicologicamente, entraria em crise profunda. E, naturalmente, Anastácio, que não é presciente, legitimamente, sonhava em ser dono do seu destino, queria ser comerciante. Ser dono do seu espaço e aplicar o seu empírico conhecimento em proveito de si próprio.
Em 1996, toma de arrendamento, em cessão de exploração, a loja onde trabalhava. Começou a pagar 400contos, hoje 2000euros. Até 2002 tudo correu sobre rodas, como quem diz , a coluna do “Haver” era superior à do “Deve”.
Dois anos depois da passagem do milénio, a partir do “discurso da tanga”, a coluna do “Deve” entra em vermelho-rubro acelerado. Fala com o seu antigo patrão, tentando sensibilizá-lo para o declive económico que se inicia, para que este abaixe a renda. Ele até é um bom católico, vai todos os domingos à missa, e, afinal de contas, ele nem despendeu nenhuma verba com indemnização de duas décadas de trabalho dedicado. Além de mais, já recebeu em 10 anos qualquer coisa como 50mil contos de rendas. Mas, o homem, bom católico-praticante, não foi sensível. Religião, religião, negócios à parte. Dos três funcionários existentes, faz acordos indemnizatórios com dois e fica apenas com uma empregada. É impossível recuar mais. Os fornecedores começam a fazer marcação cerrada. Há três anos, Anastácio recorre à banca e contrai um empréstimo de 100mil euros e hipoteca a sua casa, fruto de trinta anos de trabalho. Paga aos fornecedores e novamente o “caixa” fica insolvente.
Hoje, têm vários meses de rendas em atraso e não paga os impostos há mais de um ano. O seu dia-a-dia, no seu estabelecimento, é passado em constante sobressalto. Sempre que entra uma cara estranha ele pensa: “é agora! É este que me vai fechar a loja…é das Finanças, de certeza”. Com a espada de Dâmocles suspensa sobre a sua cabeça, sente-se encurralado, não tem para onde fugir. Já não dorme mais de duas horas por noite, e, isto, se tomar, o “Xanax” diário.
Anastácio não sabe o que fazer quanto ao futuro. Com 55 anos é demasiado novo para a reforma e velho de mais para aceder a um emprego. Apesar de descontar 24,5%, mensalmente, para a Segurança Social e a sua empregada 10%, esta vai ter direito a subsídio de desemprego, ele não. Sim, sublinho, ele não terá direito a subsídio de desemprego. Porquê? Perguntarão? Eu respondo por ele: porque as associações de Comerciantes do país, em vez de se preocuparem com a sobrevivência futura dos seus associados, solicitando a inconstitucionalidade sucessiva da norma que exclui os comerciantes do acesso a uma pensão minimamente digna de sobrevivência, continuam, politicamente, a apregoarem a revitalização comercial, como se fossem ouvidos por alguém. Deveriam ter vergonha do mau serviço que prestam aos comerciantes. Estão à espera de quê para o fazer? Estarão à espera que Anastácio mande um tiro na cabeça e, amanhã, seja, pela primeira vez, título de caixa-alta de um qualquer jornal? Endemicamente, muito mal vai um país que maltrata assim os seus filhos.


(HISTÓRIA VERÍDICA)

ELEGIA A UM ANJO MEU

Eu posso ser o teu olhar ,
o poiso-feliz da tua alma,
o porta-aviões para aterrares,
o jardim da tua calma;
Posso até ser a tua Lua,
o mar da tranquilidade,
quem sabe, ser a alma tua,
a recordação da saudade?!
Posso ser o que tu quiseres,
o teu sonho, o teu demónio,
posso ir onde estiveres,
ser citadino ou campónio;
Sei que um dia muito sofreste,
deixa partilhar contigo a tua dor,
afinal, estás viva, não morreste
deixa-me ser o teu amor;
Encosta-te a mim,
deixa-me ser o teu confessor,
quero fazer tudo por ti,
imagina-me o teu salvador;
Sei que sei pouco,
e nem leio o teu olhar,
posso até parecer-te louco,
certamente, estranho, se calhar;
Posso até ser um vadio de amor,
um pedinte, entendendo a mão,
não quero bens, quero calor,
perguntas: o que queres tu então?
Quero pegar na tua alma ao colo,
ser o dono do teu corpo,
posso rastejar no solo,
sei que pensas que sou lorpo;
Mas eu sei que não sou não,
sou apenas sonhador,
o que serei eu então?!
Quero apenas ser o teu amor.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

A CANÇÂO DO BANDIDO



 Encontrei-a há cerca de 30 dias. Não a via há mais de um ano. A Francelina é mãe de um rapaz amigo do meu filho e com os mesmos problemas deste. Aquele, tem 24 anos, extremamente sensível, talentoso para as artes, letras e música. Senhores duma dialéctica invejável, clarividentes e de uma inteligência acima do comum. Muito achacados à depressão, desde os 16 anos que a sua vida é vivida entre o isolamento do seu quarto, psiquiatras e psicólogos. Já por várias vezes estiveram empregados, mas o máximo que conseguiram permanecer nesse trabalho foram 6 meses. A média andará nos 60 dias de permanência. A cada despedimento corresponde uma profunda crise de identidade e afirmação, e, subsequentemente, mais uns anti-depressivos, mais uns ansiolíticos e mais uma caixa de “xanax”. Como a sua autodisciplina é quase zero, abandonam-se nos braços de morfeu e, como se andassem em círculo, dormem para esquecer, e, quanto mais dormem, cada vez mais vão aumentando a sua carga depressiva de isolamento e solidão. E assim é a suas vidas. Divididas entre a bipolaridade de dois dias completamente capazes de abraçar o mundo e cinco de profunda modorra anémica. Completamente perdidos numa apoplexia de falta de vontade e incapazes até de cuidarem da sua própria higiene pessoal. Devido à sua elevada inteligência, são profundamente manipuladores, conseguindo manobrar as mães como se fossem marionetas de santo Aleixo.
Depois de mais de um ano sem nos vermos, achei a Francelina muito apagada psicologicamente, como se carregasse o mundo às costas. Estava vestida de uma forma pesada, tendo em conta a sua imanente feminilidade. Ela tem 50 anos, talvez 1,60 de altura, o chamado tipo “mignon”, pequenina. Um rosto bem desenhado, num corpo bem torneado, um cabelo louro oxigenado, olhos verdes de grande ingenuidade.
Perguntei-lhe então como ia a família e as coisas lá em casa, nomeadamente com o seu filho João. “Tudo mal senhor Luís!”-exclamou em tom profundo.
“Tudo mal, como?”-interroguei com grande curiosidade e apreensão.
“O meu marido morreu, quase há um ano com um cancro. O meu João, desde essa altura, fechou-se dentro de casa, mal sai. Diz que “morreu” também com o pai que partiu. Agride-me continuamente. Olhe que há dias, cheguei a casa, abri a porta do quarto e deparou-se-me o João completamente com o cabelo rapado como o pai nos últimos dias da sua agonia. Ele é tão parecido com o meu marido que quando o vi assim, comecei a gritar desalmadamente. Parecia que estava a ver o meu marido. Ele fez aquilo para me ferir. Magoa-me muito. Vai ao ponto de dizer que não presto, que sou má mãe. Que não me quer. Só quando me pede dinheiro é que o seu tratamento para comigo muda. Ando muito infeliz senhor Luís! A minha vida resume-se a trabalhar durante o dia; à noite faço o jantar para mim e para ele, lavo a louça, tomo um comprimido para dormir e é esta a minha diária. Nem televisão me apetece ver”.
Apanhado neste turbilhão de infelizes notícias, meio a balbuciar, quase sem saber o que dizer, tentei animá-la com palavras de estímulo: “a Francelina não se pode deixar abater. O João está a viver uma profunda depressão devido ao desaparecimento do pai, num luto continuado que aumenta o seu sofrimento. Depois, duma forma calculada, projecta em si a dor da sua perda. Mas isso vai passar, vai ver. Tente retirar-lhe do quarto tudo o que o faça lembrar-lhe o seu marido: fotos e outros objectos.
Quanto a si, faça por sair de casa, passei, vá ao cinema. A francelina é uma mulher muito bonita, largue as recordações, dando-lhe apenas uma importância relativa e viva a vida. Arranje um companheiro. Comece a pensar nisso. Saia de casa, não se enterre nela como uma tumba”. Deixei-lhe o meu telefone para o caso de precisar de alguma coisa. Despedi-me, e a Francelina foi à sua vida e eu fui à minha e não mais pensei no assunto.
Ontem ligou-me: “senhor Luís posso falar consigo pessoalmente?”
“Claro, quando quiser”, respondi. Veio então tomar café comigo. Era outra Francelina que nada tinha a ver com a que estivera a falar um mês antes. Vinha toda aperaltada; cabelos louros atados, um rímel em volta dos seus bonitos olhos que brilhavam como um sol da meia-noite no Pólo Norte, um prometedor decote e uma saia justa, ligeiramente abaixo dos joelhos. Confesso que tive de disfarçar algum incómodo perante esta bela mulher.
Quando começou a falar, as palavras saíam-lhe em catadupa, numa ansiedade mal contida:
-Ó senhor Luís fiz o que me disse…estou tão feliz…
-Desculpe, Francelina, mas o que lhe disse eu?...Digo tantos disparates! –retorqui, meio a rir, sem me lembrar minimamente do que dissera há um mês atrás.
-Então você não me disse, há um mês, para eu arranjar alguém?! Então, há oito dias respondi a um anúncio no Diário de Coimbra, de um senhor divorciado que procurava uma companheira. Liguei e respondeu-me um homem de voz calma, envolvente. Um cavalheiro. As suas palavras pareciam uma brisa suave numa noite cálida de verão. Combinámos e encontrámo-nos no dia seguinte para beber um café.
Ai senhor Luís, fiquei derretida perante aquele homem charmoso. O seu porte atlético, as suas maneiras doces –começou logo por me perguntar se me podia tratar por querida…era um tratamento cerimonioso, juntamente com o de “você”, referiu. 
O seu fato, Don Giovani –que eu vi logo, quando ele tirou o casaco e pôs a etiqueta à vista. As suas calças bem vincadas, a terminar num sapato de verniz. E o seu perfume?! –a mulher parecia em êxtase, no entanto, para não pensar que eu não estava a tomar atenção, fiz uma pergunta:
-E o carro como era? Era novo? Intuí antecipadamente a resposta.
-Era, senhor Luís, um carrão, tipo Opel. –respondeu. 
Na segunda vez que nos encontrámos convidou-me para irmos até ao Luso. E fomos! Durante o caminho, as músicas que ele escolheu eram as minhas preferidas: Roberto Carlos, Ivete Sangalo, Madredeus. Ai, até estou arrepiada! Como é que ele sabia que eram as minhas músicas preferidas?
-Então e o que faz ele profissionalmente? –interroguei, embora também soubesse, mais ou menos, o que iria sair.
-É inspector da Segurança Social. Ganha muito bem. Claro que está a ajudar a ex-mulher e uma filha que está a acabar o curso. Coitado! Ainda ajuda a mãe que mora ali para os lados da Conchada. Disse-me que não é nada materialista. Ele só quer viver o dia-a-dia. O dinheiro não lhe interessa.
Se você visse como ele me trata: todos os dias me liga, logo de manhã e à noite. O seu cumprimento, numa voz pousada, é sempre: “como está o meu docinho, o meu bijuzinho, o meu anjo que Deus proteja na sua glória? À noite, liga-me sempre: “durma com Deus minha querida, que os anjos velem por si”.
Ai senhor Luís este homem é o meu delírio. Durante o dia só penso nele e à noite, durante o sono, ocupa todo o meu espaço de sonho.
Quando lhe perguntei se bebia, disse que não. Nem socialmente. Fumar, muito raramente. Já viu? Até nisso ele é como o meu falecido marido. Ai este homem não existe, é uma aparição! Veja bem, disse-me que tem 100 pares de sapatos e um armário cheio de camisas. Que amanhã irá para o Alentejo, resolver uns problemas acerca de umas herdades que são da mãe. Para a semana vai para Tenerife. –Remata em jeito de conclusão e como se não admitisse réplica.
-Uma coisa, que não entendo, Francelina, porque me está a contar isso tudo? –Tento indagar na bruma dos meus pensamentos interrogativos.
-Ó senhor Luís, estou numa terrível dúvida que me consome a alma. Este homem é demasiado perfeito. É demais para mim. Tenho medo de me enganar. Ajude-me senhor Luís. –Refere em apelo quase místico, fixando em mim os seus lindos olhos verdes de prado sedutor.
-Bom, Francelina, eu posso dizer-lhe o que penso, isso posso, mas o que lhe diz a sua intuição feminina? –inquiro-a.
-Que algo não bate certo, é demasiado perfeito para ser real. É como se ele soubesse tudo o que eu gosto. Como se estivesse dentro de mim. Sinto como se nos conhecêssemos há décadas. É isto que me mete medo.
-Então vou dizer-lhe o que penso, mas alerto-a que é mera intuição, posso enganar-me.
A Francelina está a ser enganada!
-Como?! –Ela desatou num choro compulsivo.
-Repare, há aí uma série de contradições. Por exemplo, vou apenas referir-lhe duas; se ele se diz não-materialista, como explica que ele tenha 100 pares de sapatos? E você acredita nisso? Olhe outra questão que ressalta; sendo ele tão bem apresentado e vivido, precisa de recorrer a um anúncio de jornal? Sabe, diz-nos o senso comum, que só recorre a um jornal, procurando uma conquista amorosa, uma pessoa, com pouco relacionamento social, tímida e introspecta. Ora, não é o caso desse seu conquistador barato. Segundo conta, todo ele é charme e à vontade no campo feminino.
Não gostaria de desapontá-la, no entanto, ele é o típico modelo de D.Juan, rasco, retirado dum velho filme, da década de 80, passado nos nossos ecrãs: “O CAPITÃO ROBY”.
-Mas..mas, como é que ele adivinhou tudo o que eu gosto? –procura ela entender por entre um choro desbragado e umas frases titubeantes.
-Olhe, Francelina, estes travestidos gentlemans têm uma intuição fora do comum. Eles têm vários perfis desenhados, de anteriores mulheres que conheceram. Então este quando olhou para si, bastou-lhe, mentalmente, aplicar a chapa correspondente. Acredite que é muito fácil.
Mas faça o seguinte: quando ele lhe voltar telefonar pergunte-lhe o nome completo. –nem de propósito o telemóvel da senhora toca. Era o cavalheiro. Ela perguntou-lhe o nome, ele a muito custo lá lho deu.
-Ai, sabe uma coisa? -Questiona-me a minha amiga. Eu notei que ele ficou muito atrapalhado. E mais; já nem se despediu com a habitual frase “até amanhã meu doce e adorado anjo”.


Hoje, liguei para a Segurança Social e, naqueles serviços, não existe nenhum inspector com o nome indicado.
Ao comunicar o facto à minha amiga Francelina, ela ficou de rastos e por entre lágrimas sofridas de desilusão interrogava: “porquê eu?”.


(HISTÓRIA VERÍDICA)

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

SAUDADE...

Ela vinha vestida de negro. De passo ondulante, entrou no café e todos os homens presentes levantaram os olhos, como se, o seu andar flutuante e libidinoso, de pé-ante-pé, fosse um ambulante rasgado apelo aos sentidos masculinos.
Porque nos conhecemos, quando me viu, poisou em mim os seus belos olhos castanhos rasgados e veio ter comigo à mesa. No meio de tantos olhares masculinos senti-me um eleito. Um porta-aviões que recebe o protótipo sulcador dos ares e admirado por todos. Conheço esta mulher há uns 3 anos. A Lena tem 45 anos, marcados no calendário do tempo, mas quem olhar para ela não lhe dará mais de 40. Intelectualmente não é muito esperta, meio dividida entre o conhecimento adquirido ao longo da vida, a revista Maria e umas fugazes leituras no jornal diário da cidade. Mas, a verdade, é que às vezes surpreende-me com frases tiradas do fundo de uma alma que parece não ser a sua. A natureza foi pródiga com esta desejada viçosa mulher. Um metro e setenta e poucos, uma cara redonda, cabelos pretos, cor de azeviche, compridos muito bem distribuídos num corpo de ninfa; provavelmente, se vivesse no tempo de Rafael (1483-1520) teria sido, pela certa, um dos modelos que teria posado para uma das suas três graças.
Eu sabia que o seu actual companheiro e último, desde há cerca de dois anos estava muito doente. Ao vê-la de luto, intuí imediatamente o que tinha acontecido. Mesmo assim, arrisquei uma pergunta de resposta conhecida antecipadamente:
-Porque andas de luto Lena? –interroguei, tentando disfarçar a minha intuição presciente.
-Então não sabes?!...O meu António partiu há duas semanas. Deixou-me. Eu sei que está bem! Respondeu, ensimesmada, dividida entre a interrogação e a constatação.
-Os meus pêsames, Lena. Ainda tão novo: tinha há volta de 55 anos, não era? Mas que se há-de fazer? Todos iremos um dia. Afinal a vida é apenas as férias da morte. É bom que todos aproveitemos bem estas “vacances”. Podem acabar a qualquer momento.
Como sabes que está bem? -olho para ela com ar de redobrada admiração.
-Olha, há dias estava a dormir no sofá e, em sonho, vi-o na ombreira da porta da sala. Sorria para mim tranquilamente. O seu rosto estava envolto numa forte luz. Os seus olhos, que conheci tão bem, pareciam de porcelana, brilhavam muito. Todo o seu corpo estava envolto numa luz amarela, parecia os faróis de um carro. Pela forma embevecida como olhava para mim, sei que está bem. No dia da missa do sétimo dia eu “senti” que ele estava ali. Foi uma missa tão linda…
-Vocês eram muito amigos não eram? –interpelei.
-Nós éramos muito mais do que tudo o que se possa imaginar. Ele era o meu companheiro das horas vazias, aquele que estava sempre presente. Era o amante certo, nas horas incertas, sem nunca o ser em tempo algum. –Novamente a Lena pareceu cair numa divagação etérea.
-Explica isso, Lena, “o amante certo, nas horas incertas, sem nunca o ser”? –Interpelei.
-Sim! Sabes que ele tinha um “pacemaker”, de modo que o médico, logo que nos juntámos, avisou que ele não poderia fazer amor comigo. Se o fizesse, poder-se-ia ficar a qualquer momento. E, fogo, já viste, o risco que ele corria? E até para mim, se me acontecesse tal coisa…era um trauma para toda a vida, um homem exalar o último suspiro em cima de mim? Por isso nunca arrisquei a vida dele. Mas também não fez falta nenhuma –soletrou, com aquele seu ar de menina.
O que contava era o seu telefonema a meio da manhã: “então como está o meu anjo?”.
Era o chegar à noite, depois do trabalho, e ter o jantar feito. O que contava eram as suas carícias, embevecidas, nos meus cabelos e no rosto, acompanhadas de palavras embrulhadas em mel:”adoro-te meu amor. És a mulher da minha vida…casa comigo Lena". As saudades que tenho de acordar com ele abraçado ao meu pescoço.
Como hei-de curar esta saudade?...As saudades que tenho dele…-estas palavras foram interrompidas por um desbragado mar de lágrimas…

(HISTÓRIA VERÍDICA)

OLÁ, ROSA!

Bom dia rosa sentida,
mais um dia para vencer,
continuas a ser querida,
um amor te há-de querer;
Afogas-te em labor,
como uma profilaxia,
pareces não querer amor,
mas ele é para ti uma mania;
Tantos sonhos arrumados,
no baú das recordações,
são velhos mas não esfumados,
estão juntos de mil paixões;
Quando olhas o presente,
e pensas não ter futuro,
olhas para tanta gente,
esperas, um dia, ter um furo;
fechas-te na tua couraça,
pareces um caracol,
às vezes ris de chalaça,
por teu amor estar em formol;
Estás usada mas não antiga,
serás uma bela mulher,
corres, corres como formiga,
só te leva quem souber.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

POEMA A UMA FUGITIVA

Se eu pudesse te falar,
da mesma forma que sonho,
quem sabe não te iria amar,
como este poema componho;
Porque foges tu de mim,
meu anjo azul e branco,
corres como uma sombra assim,
vagueias no espaço franco;
Afinal de que tens medo?
Confessa e conta no meu ouvido,
se tudo faço e estou quedo;
Fugires fará sentido?
posso não ser o teu Deus,
nem sequer o teu ideal,
olha só em olhos meus,
para não me sentir mal;
Se eu pudesse ser poeta,
ou talvez um trovador,
gostava de ser a meta,
desse teu louco amor;
Se és tão linda de morrer,
porque estás só meu querubim,
deixa-me ao menos prometer,
que te sigo sempre assim;
Porque me olhas assim,
se pareces não me querer,
és uma tentação para mim,
jamais vou te esquecer;
Podes viver toda esta vida,
e na morte não me querer,
para mim serás sempre sentida,
como o espírito-alento do meu ser.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

O GENOCÍDIO DO ENTUSIASMO DE VIVER

Os leitores de jornais diários, há cerca de cinco anos para cá, são surpreendidos, quase todos os dias, por suicídios. Até há bem pouco tempo era o Alentejo que, nas estatísticas fatídicas, detinha o infeliz recorde de maiores desistências de viver. Por razões sociológicas, já estudadas que terão a ver com o abandono da terra no após 25 de Abril e também pela introspecção anímica e elevada sensibilidade destas simpáticas gentes, que, um pouco por todos nós, têm sido, ao longo do tempo, alvo de jocosas anedotas. Mas se tivermos em conta que apenas se parodia o original e o diferente, logo se compreenderá este permanente olhar trocista e generalista, como se, através de um, fosse possível catalogar o todo.
Há cerca de dois meses, fomos todos surpreendidos pelo massacre colectivo de uma família inteira no Montijo. O homem, chefe de família, em profunda agonia financeira e subsequente depressão eliminou completamente a família e pondo, em seguida, termo à sua própria vida. Deixou espalhado na sala, a cobrir os corpos, cerca de 150 mil euros em notas. Como que a dizer-nos que pela conquista do dinheiro se vive desenfreadamente e por ele, quando nos falta para cumprir compromissos ou satisfazer vícios, de um estilo de vida anteriormente alcançado, se claudica, desistindo, preferindo morrer, sem apelo nem agravo, do que passar pela vergonha da necessidade sofrida.
Ontem, em Viseu, uma mulher de 40 anos matou os dois filhos e seguidamente pôs fim à sua própria vida. Atente-se nos requintes de crueldade e na forma primária como executou os filhos: um menino de oito anos, estrangulou-o; à filha de onze, cortou-lhe o pescoço com uma serra eléctrica de cozinha. Vale a pena pararmos um pouco aqui para reflectir. Uma mãe que extermina de modo sádico, selvático, animalesco e frio, entes que saíram do seu corpo, que eram carne da sua carne, respirar do seu respirar, tinha que estar no limite, no precipício, sabia que andar para trás não podia e a única forma de evitar um sofrimento continuado aos seus pequenos amores era levá-los consigo, e, pondo de lado a sua dor, lançou-se, juntamente com eles, no abismo profundo do desespero. Dizer, depois da acção, que o fez porque estava em profunda depressão, é pouco, é como se todos nós, tentando lavar as mãos da nossa responsabilização, passássemos a culpa para a depressão, porque esta tem as costas largas e assim todos poderemos dormir descansados.
Então, depois da apresentação destes dois casos como modelo, vamos todos tentar dissecar e analisar as razões objectivas que levarão estas pessoas a cometer estes actos tresloucados. Começaria pela observação antropológica do homem: o suicídio será um sentimento primário intrínseco, imanente à existência humana, como é o furto, a violência, o assassínio. Quem de nós, num determinado momento amargo da vida não pensou nisso que ponha o dedo no ar. Claro que, como nuvem negra em movimento e passageira, imediatamente é empurrada para os confins da mente e logo um pensamento positivo advém, assim com o a castração e auto condenação de nos termos, mesmo por segundos, deixado tocar pela desistência da vida. Não será por acaso que a religião católica-romana condena o suicídio, assim como as várias formas de aborto ou obstaculação de práticas que levem à limitação de gerar vidas. Ainda que nos custe a entender esta radicalização, parecendo que esta religião parou no tempo, a verdade, temos de constatar, é que a sua linha é pró activa da vida, em contraste absoluto com o desprendimento da pessoa humana seguido na ortodoxia Islâmica e muçulmana.
Depois desta análise antropológica passemos à política e social. A partir de 1986, ano da adesão de Portugal à então CEE, pelos imensos milhões em forma de subsídios, todos nós, mesmo sem o querermos, mudámos de um comboio periclitante e paupérrimo, de pouco consumo interno, para um trem de luxo em que nos habituámos a todas as mordomias e, pela abastança vinda de fora, a adquirir tudo o que nos desse na real gana. Uns chamaram a este comboio o trem do progresso e felicidade, outros, poucos, chamaram-lhe a longa marcha da utopia, ilusão de óptica ou quimera materialista. Os políticos partidários, embevecidos e apenas preocupados na sua eleição, todos empurravam o comboio. Na porta deste, era vê-los, de sorrisos rasgados, a convidarem o “Zé pagode” a entrar na viagem até ao oásis dourado. É claro que, como todos sabemos, não há almoços grátis, e hoje, duma forma cínica, fria e selvagem, são esses mesmos políticos, com cara de pau –para não dizer cara de cu, porque parece mal- que vêm pedir restrições e sacrifícios, quando, durante esses anos de purpurina dourada e rasca, gastaram à tripa fora e incentivaram o endividamento colectivo das famílias.
Julgá-los na urna do voto popular é pouco. Deveria ser criado um tribunal plenário, com processo sumário, para julgar estes malfeitores, deste genocídio colectivo, da alegria, do bom-viver e da felicidade. Se pensarmos nestas ofensas económicas e de gestão danosa de um país começamos a entender melhor as causas deste aumento assustador de suicídios. E, estou convencido, que não é maior porque o valor “honra” perdeu terreno a favor do “laissez-faire-laissez-passez”. Que não se culpe mais a desgraçada depressão, caso contrário, esta, no cúmulo, pode entrar em estado depressivo e…suicidar-se.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

ELEGIA A UMA ONDA

Ó minha onda salgada,
dá-me a força do teu querer,
deixa-me entrar e mais nada,
que depois posso morrer;
Quero ser imperador,
desse reino de encantar,
quero sentir o amor,
dentro do peito a pulsar;
Quero beber do teu sal,
dessa vida, pois então,
nunca me leves a mal,
por eu ter esta paixão;
Se um dia não me amares,
diz-me ao menos a razão,
vou procurar nos altares,
promessas de solidão;
Se tu és tão infinita,
vais-me querer sempre a teu lado,
para mim, serás sempre bendita,
sem a tua luz fico apagado;
Ó minha onda ateia,
não acreditas em nada,
sabes que bates na areia,
e danças como uma fada.

A INSEGURANÇA NA BAIXA DE COIMBRA

No dia 5 de Junho passado, decorreu na Câmara Municipal, com a presença do presidente Carlos Encarnação, uma sessão, no salão nobre, sobre o tema: “A baixa de Coimbra: que futuro? Estratégias de revitalização comercial”. Neste debate, a determinado momento, foi aflorado o problema da insegurança, quer dos transeuntes à noite, quer dos estabelecimentos comerciais. Claro que, porque é politicamente correcto, logo saltaram alguns defensores para calarem tamanha afronta: “que disparate, a Baixa não tinha problemas de insegurança”. O facto de –na altura- acontecerem demasiados pequenos furtos, -através da técnica do arame, que consiste na introdução de um fino fio metálico por entre portas ou montras e, com ele, surripiar, desde ouro a uma bela camisola- tal demanda não seria, nem preocupante, nem indiciadora de que a segurança iria descambar. Apesar de alguns comerciantes presentes mostrarem preocupação por tal anomalia, tal inquietação não teria razão de ser. Seria pura especulação. Até porque eram poucas as queixas chegadas à PSP. Acontece que, infelizmente, os profissionais do comércio estavam certos: hoje, a Baixa, durante a noite, está transformada num território sem ordem, onde impera a lei do arrombamento, o roubo e do pequeno furto qualificado. Nestes últimos 3 meses largas dezenas de lojas foram assaltadas com recurso a violação de portas e arrombamento de grades de protecção. Esta mesma noite última, de 9 para 10 de Setembro, cinco casas comerciais foram violentadas. É rara a manhã em que alguns comerciantes não sejam presenteados com esta realidade dolorosa. Ser assaltado passou a ser uma espécie de roleta russa: apenas se espera que não seja em breve, mas intui-se que, pelo andar da carruagem, tal inevitabilidade é fatal como o destino da única bala sair disparada.
Há duas semanas, numa destas ruas do centro histórico, durante amanhã, em pleno horário comercial, uma jovem, filha da proprietária do estabelecimento, foi abordada por um indivíduo, que, com o maior à vontade, a apalpou e tentou beijar. Talvez porque ela tivesse resistido ao estupro e começasse a gritar, o individuo, com a maior descontracção abandonou o estabelecimento e a vítima. Passados menos de trinta minutos, como se estivesse no seu território e agisse impunemente, voltou novamente à loja, arrastou a rapariga para uma zona pouco vísivel e novamente tentou forçá-la a manter com ele relações sexuais forçadas. Novamente valeu o sangue-frio da menina que, quase já seminua, lhe aplicou uma joelhada no “calcanhar de Aquiles” do homem, ou seja, entre pernas. Apesar da queixa na polícia, o meliante passeia-se calmamente nas ruas da baixa e vai ao desplante –pasme-se- de mandar beijos, gestualmente, à violentada.
Em jeito de balanço, tentando chegar a uma conclusão, acerca desta anormalidade, começarei por atribuir aos comerciantes muita responsabilidade, sobretudo ao serem negligentes e pensarem que o facto de terem grades de ferro no estabelecimento, bastará esse artefacto de segurança para dormirem descansados –e refiro-me, nomeadamente, também a mim, porque também senti na pele o ter sido visitado pelos amigos do alheio…porque não liguei o alarme. Há também muitos comerciantes –vá-se lá saber porquê- que não denunciam os furtos, nem admitem que se fale dessa ocorrência anómala passada com o seu estabelecimento
Depois e, sem cair na demagógica tese de atribuir culpas à PSP, a verdade é que durante a noite a zona histórica não é policiada por esta polícia. Desde que o comando desta polícia de segurança pública foi transferida para a Solum é notório a falta de efectivos para prevenir a delinquência e fazer face à criminalidade cada vez mais notória, quer seja de dia ou de noite.
Uma coisa é certa: tudo indica que o recurso ao pequeno furto, ao arrombamento e ao roubo qualificado irá aumentar. Basta atentar no cenário económico, na conflituosidade nacional, ao nível do desemprego. Bem pode o ministro da Administração interna continuar a pregar a confiança…aos peixes.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

UM CORDEIRO NO MEIO DOS LOBOS

Foi por acaso que fui dar à sua página, no Netlog, aqui na Internet. Quando me apercebi pelo retrato, em que aparece de vestes eclesiásticas, a minha curiosidade, como mola comprimida, saltou imediatamente em direcção à satisfação do meu desejo de ver, in loco, o que escrevia este mensageiro de Cristo. Numa primeira impressão, poderemos facilmente interrogar-nos acerca do que faz um sacerdote num site onde predomina a conquista amorosa. Porém, seguidamente, se tivermos em conta que os chats da net, hoje, são a única janela de pequenos cubículos difusos, sem luz, de gente só, em profunda solidão, que se abre para o mundo, então, facilmente entendemos a razão de ser e de estar deste pároco pertencente à diocese de Aveiro. E, sem discurso encomiástico, naturalmente subjectivo, posso afirmar que este inato comunicador o faz de uma forma extraordinariamente simples e de linguagem acessível e compreensível por todos os extractos sociais que viajam na Internet.
Com o seu vídeo semanal no YouTube, este sacerdote e professor de Religião e Moral, disserta sobre casos que lhe tropeçam no dia-a-dia. Com uma linguagem simples, a sua comunicação, acompanhada gestualmente, chega facilmente ao receptor. Sem a habitual carga moral, normalmente associada na mensagem católica-romana, mas apelando a uma introspecção reflexiva, estes vídeos são facilmente aceites como recados para pensar. A racionalidade deste padre, a meu ver, contrasta com uma profunda ortodoxia existente demasiadamente vincada na Igreja Católica. Confessando não entender, mas aceitar temas emergentes, como a homossexualidade, o pregar ao “desbarato” pelas praias, em tempo de férias, da religião cristã e o livre arbítrio de Deus nas coisas terrenas, nomeadamente na amputação de um membro inferior de uma linda jovem, o padre Júlio Grangeia, sem pregar intencionalmente os dogmas da fé, dá um bom testemunho e convida a aceitar-se, sem discussão, essa mesma fé.
Ao abrir os seus temas sempre com o vocativo, e várias vezes intercalado no meio da conversa: “amigo cibernauta” e a terminar, inevitavelmente, com o vocábulo:”já agora e porque não?...Até para a semana.” , facilmente, por analogia, poderíamos entender estas suas brilhantes extrapolações como a parábola de Júlio aos fariseus, considerando que quem viaja na Internet, não é naturalmente membro de nenhuma seita religiosa, nem cumpre estritamente a sua ortodoxia, mas, pelo contrário, embora não sendo necessariamente falso ou hipócrita, também não estará muito aberto a questões religiosas. Mas, essa é a verdade, e talvez a lição, a forma ligeira, despretensiosa, deste homem capta a atenção. É como se pescasse à linha, com uma cana rudimentar, num oceano industrializado e materialista, onde grassa a pesca de grande calado e de ponta.
Parabéns padre. Oxalá assim seja entendido pela hierarquia da Igreja. Um grande abraço de profunda admiração.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

O ABROLHOS E A EDUCAÇÂO

Como o tempo voa, já estamos em Setembro, parece que ainda ontem foi o Natal. Daqui a dias vamos ter aí o Outono, com todas as folhas secas a esvoaçarem ao vento. As pessoas voltaram quase todas de férias. Como não tenho nada para fazer, vagueio lentamente por estas ruas estreitas da cidade velha de Aeminium. Vou observando os rostos, todos de tez morena, vê-se bem que passaram uns diazitos na praia. Observo cada um e vejo alguma serenidade, como se cada cara transportasse uma contemplação etérea. Não vejo sorrisos rasgados. Daqueles sorrisos que nos prendem, que apetece roubá-los e torná-los nossos. E tanto faz que seja uma pessoa nova ou mais idosa. Não importa que seja muito gorda ou um manequim, ali o que importa é aquele sorriso, parecido com a imanência brilhante saída de um Cristo apaziguador desenhado nos velhos catecismos do Estado Novo.
Lembrei-me disto, não porque tivesse visto hoje um destes sorrisos, antes pelo contrário, porque vi ali um rosto que –meu Deus- parecia carregar toda a infelicidade do mundo. Quase senti vontade de me meter com a mulher e perguntar-lhe se podia ajudar nalguma coisa. Palavra de honra. Era impressionante. A senhora deveria ter há volta de 45 anos. Quase que, olhando aquela solidão extremosa, aposto que foi maltratada ou foi preterida em relação a algum irmão, na infância pelos pais. Esta mulher deveria ter nascido no princípio da década de sessenta. Os primogenitores das décadas de 50 e 60, provavelmente, nunca tomarão consciência do quanto foram responsáveis pela infelicidade que estas gerações carregam no rosto e sentem no dia-a-dia. Sabemos que os seus actos anti-educacionais foram herdados dos seus pais; eles também filhos de um deus menor resultado de tempos de fome e, sobretudo de carência de afectividade – vale a pena estudar rostos, através de fotografias, de finais do século XIX e princípios do último. Neles é comum apercebermo-nos de semblantes hirtos, fechados e tristes. Também eles resultados de uma educação pretoriana, assente no mais profundo autoritarismo patriarcal ou matriarcal. Para eles a criança nascia livre até ao momento em que exalava o primeiro grito. Mesmo este, quantas vezes, já era resultado de uma redundante bofetada no rabo. A partir daí, estas crianças seriam moldadas à força de pancada e de mãos agressivas, em vez de servirem para afagarem e darem amor. Entendia-se que, embora a criança nascesse livre, era através de uma educação austera que ela seria moldada opressivamente, à custa de muita violência física e verbal, para se inserir nos costumes e respeito valorativo da sociedade destas épocas. Não eram questões novas, elas foram trazidas para a luz filosófica através de Hobbes e Rosseau, nos finais do século XVIII e introduzidas no espírito da Revolução Francesa de 1789. Um defendia que o homem nascia livre e era a sociedade que o conspurcava, tornando-o mau, insensível e moldado no sistema. Outro defendia o contrário: que o homem nascia selvagem, sem sensibilidade; amoral e que seria a sociedade, através de uma educação indutiva, que o levaria a alcançar a perfeição e a reintroduzi-lo em normas societárias convencionadas.
Bolas! No meio das minhas conjecturas filosóficas, até me esqueci que ia beber um café com o Almerindo Abrolhos ao Café Santa Cruz. Já vos falei dele não já? Acho que sim. Eu não faço outra vida. Creio que toda a gente o conhece. Não paro de falar dele. Adoro este homem pela sua originalidade. Que querem? Desculpem, sei que deveria ser mais contido. È um tipo bacano. Não acreditam? Ai não?! Então espreitem, vejam daqui: é aquele personagem pessoano que está ali sentado na esplanada. Reparem naquele porte e classe. Aqueles gestos cuidados, quase como se estivesse sempre a representar. Vejam como se apresenta: calça vincada, pólo Lacoste e pullover sobre as costas atado no pescoço. Vejam bem o penteado: cabelo negro todo penteado para trás, ao estilo de Errol Flynn. Só lhe falta o bigodinho. Sempre bem perfumado. É um gosto estar com ele. Vou falar-lhe.
-Boa tarde, Abrolhos, há quanto tempo?! ...Dá cá um abraço. Por onde tens andado que já não converso contigo há uma semana? –amando-me, para cima dele, com os meu braços abertos e aperto-o contra mim.
- Ó “meu” que é isto? Já te disse que não gosto dessa tua forma de me abraçares. “tas-te” a passar ó quê?. Será que não vês que podes pôr em rico a minha reputação? Eu sou muito homem, ouviste “meu”? Que mania! Ó “meu” apertas-me a mão e chega . –irrompe o Almerindo, bastante irritado. Bolas tenho mesmo de ser mais comedido.
-Ok! Ó pá desculpa, não voltará acontecer. Não sabia que tinhas complexos desses. Está bem! Vamos mas é ao que interessa. Que novidades me contas? Queres falar de educação? -Interroguei o Almerindo porque ele está a ler o jornal “Público” e tem plasmado na primeira página que cerca de 45 mil professores não foram colocados.
-Ó “meu” eu falo do que quiseres. Sabes bem que para conversar estou por aqui. Eu sei tudo o que se passa aqui à volta e tenho uma cultura acima da média. -responde o Abrolhos, fingindo uma grande modéstia, vocábulo que ele nem conhecerá, tal é o estado normal do seu ego.
-Ó pá, claro que sei. Por isso gosto de conversar contigo. Tu és um poço de cultura. –penso para mim que às vezes apetece-me mandar o Abrolhos para o outro lado. Chego a irritar-me com tanta prosápia. Mas, como não me posso enervar com ele, mentalmente exclamo: está bem…abelha!
-Ah …assim está bem! Isso é outra conversa. Falemos de educação. Puxa aí “meu”…
-Ó pá estava a ler esse título dos professores no jornal. Hoje deve ser muito difícil ensinar. Com a falta de autoridade que os professores têm na sala de aula. Já viste que desde o 25 de Abril tem-se vindo a assistir a um crescendo de desautorização contínua, a um esvaziamento de poder formativo necessário e hierárquico na sociedade? Como por exemplo, os professores, os polícias, os juízes e até os próprios pais? Verifica que estes nem uma palmadinha no momento certo a podem dar. Se o menino se queixa ao SOS criança, temos aí um grande problema. Parece quase que houve uma intencionalidade de transmutar todo o poder –tornando-o vazio e balofo- concentrando-o na classe dirigente política e económica de topo? Interrogo, com ar de grande cultura.
-Ó “meu”, vamos esclarecer uma coisa: a autoridade conquista-se, não se impõe. Ou seja, ela tem de sair de dentro para fora e nunca de fora para dentro. Toda a autoridade imposta, mais tarde ou mais cedo ruirá. Porém, depois desta ressalva, tenho de dizer-te que concordo contigo. –responde-me o Almerindo com o habitual espírito de frade conventual.
-Concordas comigo? Ó pá estou admirado, o que é que vai sair daí? -levanto queixo e fixo os olhos no Abrolhos.
- Ó “meu”, passámos do oito para o oitenta. Enquanto no passado era tudo à força de cinto, hoje é tudo à força de beijinhos e abraços e mais prendinhas para o menino e para a menina que os paizinhos têm de os compensar de alguma forma pela falta de tempo que têm para lhes dispensar. Então enchem-nos de bens materiais. Os criadores de falsas necessidades agradecem. Depois lá estão os professores para aturarem os monstroszinhos. –Refere o Almerindo com grande solenidade e começando a levantar-se.
-Ó pá, tem calma! Já vais? –interrogo.
-Olha “meu” desculpa lá, mas vi ali passar o professor do meu neto, e tenho umas coisas para lhe dizer, não pense ele que o miúdo lá por não ter o pai presente –que é um gandulo!- que lhe pode puxar as orelhas à vontade ou pô-lo a varrer o pátio da escola. Isso é que era bom!
Como sempre, fiquei sem palavras. A (in)coerência deste homem deixa-me sempre a pensar.

sábado, 1 de setembro de 2007

UM ABRAÇO SOLIDÁRIO

Nesta hora de torpor,
balanceia a recordação,
soçobram lágrimas em dor,
pensamentos em solidão;
Tristeza por ver partir,
da minha carne, meu irmão,
a frustração de sentir,
chorar o meu coração;
Lembrar aquele tão grande abraço,
tão fraterno companheiro,
aquelas tropelias do laço,
fazias rir o mundo inteiro:
Só quem sofre se sente só,
abandonado e tristonho,
mesmo sabendo que somos pó,
custa ver acabar o sonho;
Mas se da terra nós nascemos,
filhos de um Deus de crer,
se sabemos que morremos,
porque estranhamos morrer?