segunda-feira, 30 de julho de 2007

A CULPA SERÀ DO MAU OLHADO?

O telemóvel retiniu, eram oito horas da manhã. Do outro lado uma voz angustiada de mulher. Chorava e estava tão inquieta, quase em pânico, que impressionava: “tio, tem de me ajudar! Cá em casa tudo corre mal. O meu pai está muito mal. A minha mãe mal se pode mexer. A minha filha zangou-se com o namorado, tratou-a mal e ele saiu de casa. Ela tem andado intratável, hoje foi ter com ele. O meu marido anda a maltratar-me. Tem de ajudar-me, tio…tenho de “sair”…tenho de ir a “qualquer lado”-apelava com sofreguidão.
Depressa verifiquei que não era o tio daquela mulher. Por compreensão, e talvez alguma curiosidade mórbida à mistura, continuei a ouvi-la e interroguei-a onde queria ela ir, afinal? “A uma mulher, dessas que tiram o mau olhado, tio, cá em casa anda coisa”. Vamos com calma, tentei confortar, o teu pai o que tem? “Está muito doente, tem a barriga muito inchada”. Calculei que o homem já devia ter muita idade e atirei: “sabes a idade não perdoa, de qualquer modo porque não o levas ao hospital? Quanto ao teu marido, tenta suavizar as coisas, é evidente que ele anda enervado com a vida da tua filha. Quanto à tua filha, não ligues, deixa-os arranharem-se, eles depressa esquecem a dor e vão novamente um para junto do outro, como está a acontecer. Tu estás fragilizada. Não te deixes levar nessas mulheres que dizem expurgar o mal de inveja. Elas apenas querem dinheiro. Deixa correr as coisas a natureza encarregar-se-á de refazer o equilíbrio”.
“Acha tio? Não devo fazer nada?” –Nada mesmo, repliquei. “Obrigado tio, vou fazer isso!”. Durante mais de cinco minutos eu fora, sem a mulher saber, um tio omnipresente, moral, de apoio psicológico, criado à pressão, na justa medida da sua necessidade. Não sei se se apercebeu que eu não era o tal tio, irmão da mãe ou do pai dela, mas um outro tio qualquer. O que importou ali é que a mensagem passou, e ela, pelas minhas palavras sugestionáveis ou não, ficou melhor. Não precisou de ir “à tal mulher” e amanhã, certamente, tudo vai normalizar-se, ou não. As vidas de cada um seguirão o seu rumo. Os velhos melhorarão ou piorarão, é inevitável. O marido da mulher, acalmará a sua ira, ou não. Os namorados irão recompor-se ou separar-se-ão. Tudo isto, nas sua inevitabilidade, é a vida, é a lei da natureza na sua dinâmica natural.
Quem compreender esta fatalidade inexorável, pode facilmente passar por adivinho.
Não entrarei aqui num outro mundo ainda pouco conhecido e chamado à colação em meados do século XIX, por Allan Kardec, pseudónimo de Hippolyte Rivail, iniciador e fundador da doutrina espírita, assente nas ciências e na filosofia, e mais conhecida como parapsicologia. Esse mundo, ainda pouco conhecido, apenas será comum no que toca ao desconhecido e nunca terá nada a ver com quem, aproveitando-se da fragilidade e ignorância das pessoas, extorque umas centenas de euros aos incautos crédulos.
Os olhares são simplesmente, isso mesmo… olhares. Dentro de uma panóplia diversificada, podem ser melosos de amor, famélicos de atenção, furibundos de raiva, ou luxuriosos de desejo. Mas a sua acção nunca será pragmática. Do tipo do super-homem, com a sua visão de raios x. Um olhar venenoso apenas o será se o receptor o aceitar como tal, e, nesse caso, o mau olhado será eficaz.

domingo, 29 de julho de 2007

A PRIMEIRA NOITE DA MINHA NOVA VIDA





 Ontem, um sábado deste mês de Julho, de canícula ternurenta, a fugir para modorra pachorrenta, pouco própria dum verão incerto, indeciso e com falta de afirmação, cheguei a casa cerca das 20 horas.
Eu sabia ao que ia. Não esperava mantos de prantos nem gritos desesperados de “não me abandones”, como se estivesse a viver um filme de terceira série. A verdade é que o epílogo, ou o começo de um novo capítulo, já se começara a delinear há muito. Ambos, antecipadamente, começáramos a traçar planos há muitos meses atrás. Este final infeliz ou começo feliz –o tempo o dirá- fora pensado e cuidadosamente planeado com cenários hipotéticos, ensaiados mentalmente, como tentando prevenir fenómenos marginais. Esta peça teatral perdeu o seu prazo de validade. Estava obsoleta. Nada dizia aos mais novos. O público assistencial diário à representação resumia-se a quatro pessoas. Nós dois, actores, e dois filhos. Que, precisamente pela ligação platónica, assistiam na plateia, sem disfarçar enfado, entre um bocejo e um dormitar, a uma cada vez mais medíocre representação. Eram constantes as discussões. A culpa do insucesso da peça, ora era meu, ora era dela. Dependia dos dias.
Estávamos a encarnar, nesta trama, os papéis principais de actores pouco reconhecidos publicamente. Afinal este fora o nosso único papel em que entrámos juntos e saímos separados. Nunca teve muito público. Quando começou, há 30 anos anos, a ser exibida, foi um sucesso de bilheteira. Não que a história da peça fosse muito original ou diferente do que qualquer outra. Dois jovens que casam cedo, quase na puberdade, sem qualquer experiência de vida, fugindo ao controlo cerrado dos pais dela. Ambos sem nada, nem dinheiro para comprar fosse o que fosse. Ele, pé descalço assumido, querendo construir algo material, que lhe permitisse um dia a ele e a toda a sua família levarem uma vida melhor do que ele levara até aí. Para que os seu filhos não tivessem de sentir vergonha de um qualquer grupo e se sentissem integrados, não tendo que se autoexcluir pelos seus imensos complexos de inferioridade por serem muito pobres. Como se depreende uma “estória” corriqueira, tão própria daquela geração, sonhadora, fatalista e construtora, dos nascidos na década de 1950.
Lembro-me, do dia da estreia, toda a família assistiu. Vieram imensos amigos e até aqueles que depois desse dia nunca mais voltámos a ver. Uns morreram na nossa memória, outros procuraram naturalmente, sem que déssemos por isso, outras vidas, ou outro mundo periférico. Hoje o que resta deles é pouco mais do que um laivo de recordação nas nossas mentes. A mim batiam-me nas costas e entre o “dá cá um abraço pá”, um aperto de mãos de “parabéns e que sejam muito felizes” e a entrega, quase envergonhada, de um envelope com uma nota de mil escudos, ou então o apontar de mais uma peça de louça repetida até à exaustão. À minha comparte ofereciam rosas brancas, camélias amarelas e um beijinho de felicidade, sempre acompanhado de uma recomendação: “que a alegria deste dia se repita por muitos e longos anos”.
Era compreensível, por falta de público, carência de entendimento, ou talvez falta de entrosamento entre os actores, este final. Ontem encerrámos o teatro de produção independente. Aquela peça “finish”, “ce fini”, acabou. Acabou mesmo? Ou encerrou-se temporariamente com carácter definitivo? Não sei. Será que fizemos tudo para manter a peça em cena? Não deveríamos mudar os cenários? O problema é que entre um conservadorismo inamovível, mexilhão de posições agarradas à pedra filosofal e entre um pensamento liberal, levitante, prosador das rimas poéticas do sonho libidinoso, o resultado é o encerramento do Teatro. Aqueles cenários vão manter-se na nossa memória e mesmo quando partirmos para outras representações, aquelas cadeiras de madeira, os velhos lustres, os reposteiros que custaram tanto a adquirir –foram pagos a prestações- e até aquele sorriso desbragado, no meio daquela cena patética, onde era suposto haver rios de lágrimas tumultuosas, mas que não fora possível conter, tudo isso vai manter-se no futuro das nossas vidas, como um velho cicerone que à frente leva a candeia acesa ao vento, a balouçar, pelo meio de um caminho comparativo, “entre o que sou”, “o que fui”, “como eras” “e o que tenho agora”. Um balanço existencial que nos acompanhará para o resto da nossa vida.
A mala estava feita. As mulheres nunca perdem a simbologia de um momento. Mesmo que estejam a desfazer-se em lágrimas, a imagem será sempre a de uma guerrilheira de face dura, insensível, como a mostrar que a fragilidade e a diferença de género já foi. Hoje, tal como o velho aforismo de que um homem nunca chora, a mulher, como princípio de afirmação, segue-lhe as pisadas e, sabendo nós que depois do ribombar do bater da porta, os olhos vão liquefazer-se em mil prantos, à frente do homem... nunca chora.
Peguei na mala e, naqueles poucos metros, entre a porta e o carro, olhei para tudo à volta, como um pouco da minha alma que ali fica. Aquele foi o meu teatro durante 30 anos. Ali amei, ali consertei, ali planeei, ali escrevi, ali idealizei. Uma lágrima teimosa mostrou que afinal os homens também choram.

sexta-feira, 27 de julho de 2007

O FRATICIDA

Vasco tem 17 anos. Desferindo várias facadas, acabou de tirar a vida a seu irmão de 12 anos. Preso em prisão preventiva, no Estabelecimento Prisional de Leiria, na sua cela, sentado no pequeno catre, como um pensador, que Rodin tão bem soube personalizar através duma imagem apologética, o rapaz, de rosto fechado, hermético de sensações, de cabeça inclinada, braço direito cruzado sobre o estômago e braço esquerdo a apoiar o queixo, faz a retrospectiva do que o levou a cometer tão hediondo crime.
Tudo começou quando nasceu o seu irmão mais novo, tinha então cinco anos. Lembra-se que até aí era o centro de atenções dos seus pais. A vinda do seu germano mais novo veio invadir um espaço que, até aí, era só seu. Não sabe se por descuido dos seus pais ou por egoísmo exacerbado, a verdade é que a vinda do rebento veio fazê-lo sentir-se menos amado do que até aí. Ressentido e sentindo-se excluído na envolvência familiar, nunca mais recuperou e nem o tempo, que deveria ter feito a harmonização de interesses, veio curar essa mágoa, como ferida dilacerante que nunca cicatrizara. Cada brinquedo que era dado ao seu irmão mais novo, Vasco, sentia no corpo o mesmo efeito agressivo da picada de uma seta enviada de local desconhecido, mas prenha de azedume, violência e ódio. Aos poucos, sem o demonstrar foi desenvolvendo um sentimento de inveja, ciúme e complexos de inferioridade. A rivalidade era uma constante e nunca se estabelecera uma verdadeira relação de afectividade entre ambos.
Por ser o benjamim ou não, a verdade é que, aos olhos de Vasco, os progenitores mimavam e valorizavam sempre mais qualquer média atitude ao miúdo, do que uma boa nota, dele, tirada a ferros naquele ponto de francês. Para ele, era sempre a mesma expressão de descontentamento dos seus pais: “só 3?...estudas muito pouco!”
Com a entrada na adolescência, Vasco, foi-se tornando cada vez mais reservado. Aos poucos, sem o sentir, foi canalizando na figura da mãe todo o ressabiamento que sentia em relação ao seu irmão mais novo. Era como se ela, hipoteticamente, fosse a causadora do corte umbilical que os deveria unir. A sua mãe era assim a projecção de um ódio recalcado, como se de um espelho se tratasse. O ressentimento, ao ser para si dirigido, era ampliado pela imagem de uma matriarca que se pretendendo equitativa se tornava duplamente injusta ao parecer gostar mais do seu filho mais novo.
Com o tempo este amor indisciplinado desta mãe-galinha pelo herdeiro mais novo veio a ser um pomo diário de conflito entre marido e mulher. Apercebendo-se do exagerado mimo e do facilitismo com que a esposa dava tudo ao filho, o chefe de família cedo intuiu que a educação do benjamim iria descambar. As discussões sucediam-se. Ele dizia que se o filho mais novo pretendia determinada consola teria de a conquistar e não dava. A mulher ia por trás, à sorrelfa, e na primeira oportunidade, ou imediatamente a seguir, como que a hostilizar o marido, e dava de presente ao seu menino, coitadinho, que ninguém compreendia…só ela...porque o pariu e era mãe –atirava de chofre ao marido, na presença dos dois filhos.
Como mós de um moinho, gastas pela erosão do tempo, as relações dos cônjuges assim se foram desgastando até ficarem lisas e já não provocarem qualquer sensação de amor ou desamor. Inevitavelmente, em Dezembro último, deu-se o desenlace previsto e separaram-se. Como seria de calcular o mais novo ficou com a mãe e, Vasco, o mais velho, com o pai.
O pai de Vasco praticava motocross. Há pouco tempo, aquando de uma férias do Benjamin em sua casa, reparou na extrema habilidade do puto em conduzir motos. Ficou tão babado e contente, vendo ali o seu seguidor das lides desportivas, que foi o mais depressa possível comprar uma mota ao miúdo. Esqueceu que a dádiva de presentes gratuitos fora o motivo da sua separação. A mãe, para não ficar atrás do ex-marido, ofereceu-lhe um telemóvel “ultima geração”.
Nem um nem outro se lembrou que o Vasco existia e remoía no seu interior toda esta plêiade de agressões psicológicas à sua autoestima, há muito perdida pelos interstícios da vida conflituosa de um adolescente. Esta era a gota de ódio que precisava para fazer transbordar o copo mais que cheio de desgosto e reserva em relação a um mundo que detestava.
Três facadas, no pescoço, no peito e no abdómen, foi o epílogo duma história de final anunciado que Vasco desferiu no seu irmão mais novo. Como que, com esse acto, quisesse demonstrar o simbolismo da exterminação dos pais, sobretudo a sua mãe, e também um mundo em que se sentia deslocado e desenraizado.
Quando foi preso, fez um telefonema para a mãe que não pôde atender. À pessoa com quem falou mandou o recado: “DÍGA-LHE QUE MATEI O SEU FILHO QUERIDO”.
Quando lhe perguntaram o porquê de tal atitude primária, respondeu: "POR MUITAS RAZÕES".

(HISTÓRIA FICCIONADA PELO AUTOR. BASEADA EM NOTÍCIA DO DIÁRIO DE NOTÍCIAS DE 27 DE JULHO DE 2007)

ELEGIA A UMA CORREDORA DE FUNDO

Sempre a correr,
como água, dum rio, em direcção ao mar,
corres sem entender,
porque corres? Se ninguém te quer amar;
Há quem queira, mas tu recusas,
queres aquele modelo idealizado,
mesmo inferindo dessa tua dificuldade,
sabendo que já não é fabricado,
não abdicas dessa tua bondade,
pouco te importa que esteja desactualizado;
Não alinhas nos novos modelos,
“são vazios”, dizes, “não têm valor”,
preferes os antigos, ainda que adelos,
são mais quentes, têm mais ardor,
são cartas manuscritas com o velho selo,
são mensagens do carteiro com muito amor;
Detestas a superficialidade,
o manto diáfano e a aparência da mentira,
procuras a transparência como causalidade,
como notas musicais, vibrantes, de uma Lira,
entregas-te toda, apaixonadamente, à sinceridade.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

HÉLDER, O PÁRIA MAL-AMADO

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)

 Ele está à minha frente. Bom aspecto, cabelo bem penteado para trás, calça de ganga, limpa e t-shirt vermelha, com a mensagem quase irónica: O FUTURO COMEÇA HOJE. Não fosse o extremo esforço que ele faz para se manter na vertical, como eucalipto esguio em dia de forte ventania, e dir-se-ia um homem de trinta e três anos igual a tantos de muitos que qualquer de nós conhece.
Mas o Hélder não é igual à maioria. Infelizmente para ele. Conheço muito bem o seu mal-amanhado percurso de vida. Desde criança. O pai, falecido há cerca de dezoito anos, era arrumador de carros ali para os lados da Sé velha, em Coimbra. Conheci muito bem o senhor António. Homem de cerca de quarenta anos, cordato, de confiança e profundamente respeitador. Nessa altura, em que ainda não se falava em parquímetros ou parcómetros, o senhor António era o depositário das chaves dos muitos carros deixados estacionados no Largo da Sé. Ele se encarregava de arrumar, ou desarrumar, se tal fosse necessário. Toda a gente gostava dele. Um dia disse-me: “durante uns tempos -curtos, espero- vou faltar aqui. Vou ser operado ao apêndice no Hospital dos Covões”.
Foi operado, fui vê-lo a sua casa, pareceu-me muito bem. Conversámos e disse-me que estaria só uns dias de convalescença e rapidamente voltaria à Sé Velha. Saí de junto dele com a certeza de que iria ser mesmo assim. Mas o senhor António não voltou. Passados dois dias, como flecha rasante e célere em direcção ao alvo, a notícia correu rápida e caiu na minha cara: "o senhor António morreu!". Morreu…como?! Interroguei na altura. Seria possível morrer de uma operação ao apêndice? Mas, por essa causa ou outra, ele finou-se mesmo.
O senhor António era muito poupado. Os seus únicos vícios conhecidos era o cigarrito e o café. Ele ganhava muito bem a arrumar carros. Era muito mais do que o arrumador que conhecemos hoje. Este homem afeiçoado e respeitado, tinha licença para arrumar carros e usava boné que legitimava o seu "metier". Era portanto um profissional reconhecido e uma pessoa muito querida por todos. Estava separado da esposa, que me dizia, em segredo, "não ser grande espingarda, como quem diz, nem para matar presta".
Quando o fui visitar a sua casa, para minha surpresa, estava acompanhado da mulher. Ela cuidava dele. Aceitara-a com todos os seus defeitos, pois não estava em condições de negar tão providencial ajuda, disse-me deitado na sua cama, quando ela se ausentara para ir à cozinha.
Passados dois dias o senhor António morreu. O que aconteceu? Ninguém saberá jamais. Ainda fui ao hospital falar com o médico que o tinha operado e perguntei-lhe se era plausível ele ter morrido de complicações pós-operatórias a uma intervenção tão simples. Respondeu-me o operador que para morrer…bastaria estar vivo. E nessa dúvida me fiquei. Dividido em vários cenários. Não foi autopsiado. Lembro-me de na altura me sentir fortemente inclinado a ir à Judiciária e denunciar as suspeitas que sentia e pedir a autópsia. Mas e se eu estivesse enganado? Eu nem sequer era familiar. Era simplesmente um amigo que gostava muito dele. Acabei por me ficar nas dúvidas que ainda hoje me acompanham e morrerão comigo.
O Hélder , então adolescente, sofreu forte com a perda do pai que idolatrava e começou a entrar pelo cano e foi deslizando, deslizando, sem nunca mais parar. Começou a namorar o haxixe, passou à branquinha heroína e acabou como amante confesso da cocaína. Do pequeno gamanço de pouca monta passa ao grande e assalta, em 2000, um Stand de automóveis. Foi preso e apanhou dois anos.
Da mãe, sabe que depois da morte do pai já lhe passaram pelo regaço vários homens. E pouco sabe mais. Há muitos anos que não se vêem. “Ela pensa que eu sou um bandido…senhor Luís, e você sabe que eu sou boa pessoa…sinto tanto a falta dela” –diz-me de pranto a correr pela cara avermelhada, fruto de um álcool delirante, talvez anestesiante para uma alma carecente de amor.
O Hélder visita-me quase todos os dias. Ele lá saberá porquê. Dorme num prédio abandonado ali para o Penedo da Saudade, juntamente com mais outras cinco almas perdidas como a dele, que vagueiam errantes pela cidade terrena que é a nossa.
Todos os dias, como religioso pagão, sobe a Celas e vai à Associação “Sol Nascente”, onde vai tomar os retrovirais necessários para se manter de pé. A sua amante, a cocaína, ferrou-lhe uma dentada para o resto da sua vida, num dia de chuva e pouca luz, quando apanhou a primeira seringa que encontrou mais à mão.
Diariamente, almoça na Cozinha Económica, por cerca de um Euro. “Ainda bem que existem estas Instituições, a não ser assim o que seria de mim? Mas eu sinto-me muito triste, sinto-me lixo…um dia destes (passa o indicador no pescoço, como se fosse uma faca)…o que é que faço aqui?...”-a frase foi entrecortada, à força de tanto lutar contra a lei da gravidade, em manter-se de pé, acabou por estatelar-se e arrastar consigo alguns objectos…


(Escrevi este texto em 2007. Hoje, dia 30 de Maio de 2011, passei novamente por esta história e relembrei o Hélder, que deixei de ver há mais de dois anos. Provavelmente morreu numa qualquer casa abandonada vítima de overdose. Deixo o texto como uma pequena homenagem a alguém, ao Hélder, que, pela vida, se arrastou como ninguém)

segunda-feira, 23 de julho de 2007

REQUIEM POR UM AMIGO

Tu eras meu amigo e eu teu, António,
ouvíamo-nos no teu sonhar de utopia,
nessa tua consumissão e expurgar de demónio,
a rotina era um bicho parasita, eu sabia,
a linha da megalomania era o teu plutónio;
Porque partiste sem avisar?
podias, ao menos, prevenir,
que a tua saúde estava a periclitar,
que te sentias, sem forças, a ir,
porque não telefonaste para eu contar?;
Quiseste guardar segredo dessa viagem,
talvez para eu não a contestar,
porque me fizeste essa sacanagem,
sabias que não iria gostar;
Discutias tudo comigo, pedias opinião,
ouvias, pouco falavas, fazias-me importante,
aprontaste tudo, nem um pio ou palavrão,
não me mostraste a rota, ter-te-ia dado um sextante,
planeaste o fim e partiste sem direcção;
Onde quer que estejas, estarás resguardado,
já te estou a ver a observar e a pedir opinião,
mesmo que não queiras tu serás notado,
por essa irrequietude, essa insatisfação,
sinto que vais mexer e alterar esse mundo acabado.

ATÉ AMANHÃ...MEU AMIGO CERVEIRA

 Tomava o café, e ia desfolhando o jornal, quando me deparei com a notícia do teu desaparecimento. Aquele pequeno rectângulo de 6x9, tão igual a tantos outros, caiu-me no estômago como um murro desferido, sem contar, pelo destino.
Habituei-me a olhar para ti como uma árvore cansada, pelo peso das tuas quase oito décadas, mas sempre, sempre com a força anímica e sonhadora de um adolescente traquina. Tu eras duas pessoas numa só. Uma, o António, apaziguador, assertivo, calmo como uma enseada sem ondas. Sempre a ouvir e a pouco falar. E quando falavas, com aquela tua voz mansa, era sempre a voz do sábio, experiente, que se exprimia. Tu eras um especulador observativo, sempre moral, equidistante, e cumpridor. Quase irritavas pelo teu sussurrar. Era preciso estar atento para te ouvir. Mas era um gosto falar contigo António.
O outro personagem que convivia contigo, e que tu, como psiquiatra, certamente entendias, como se fosse o teu alter-ego, heterónimo, doublepersonalis, ou outro nome qualquer, era o José. Este, a metade do teu todo, era o oceano tumultuoso, o conflito entre o dever e o devir. O sonho personificado, aquele que nunca se abate, o nefelibata que vivia nas nuvens, olhando para baixo, sempre com ideias utópicas e megalómanas. Viajar contigo no carrossel da tua montanha russa da utopia era um gosto. E quantas vezes eu viajei contigo…meu amigo. O ênfase que punhas na explanação das tuas ideias, sem nada te demover. As dificuldades não te metiam medo. Contrariamente ao António, chegavas a ser amoral e revoltado contra a inépcia de quem governa esta cidade. Chegava a irritar-te a burocracia existencial de certos personagens que, como moscas em volta de um torrão de açúcar, parecem lamber o exterior sem lhes importar o âmago e a profundidade das coisas.
Habituei-me a olhar para ti como se olha para água corrente de uma fonte, que pensamos nunca secar. Pensava que eras eterno. Que essa força imanente que brotava do teu interior jamais te pregaria uma rasteira. Jamais apagaria essa chama de vida, que te consumia, como uma insatisfação crónica, uma fome que só um caminheiro sente quando percorre veredas e sendas plenas de escolhos, mas, mesmo assim, inexplicavelmente, continua a caminhar.
A Baixa está de luto, perdeu um grande amigo. Com a tua partida, sem aviso-prévio, levas contigo um pouco da sua alma que tanto amavas. Muitos de poucos te conheciam como eu. Para os muitos tu eras mais um. Para mim tu eras o paradigma do inconformismo, o lutador, o Centurião Romano, aquele que deixa um rasto por onde passa, mas só poucos se apercebem do sulco. Ainda só agora inicias a viagem e já sinto a tua falta. Tu eras especial. A Rua do Corvo já não será a mesma sem ti. O Corvo que, com tanto gosto, puseste na frontaria do Centrum Corvo deve estar triste. Perdeu um amigo. Todos perdemos um amigo. Até amanhã Cerveira. Onde estiveres descansa em paz.

sábado, 21 de julho de 2007

UMA VIDA (ES)PARTILHADA QUE SE FOI

A senhora, de cerca de setenta e poucos anos, entrou na loja como se procurasse tudo e nada em especial. Os seus olhos macilentos, barrados a negro, por profundas olheiras, pareciam procurar nos objectos antigos algo a que se agarrar, como andorinha recém-saída do ninho, titubeante e insegura no voar. Vinha de negro carregado, como se essa manifestação no preto, pesado, carregasse toda a sua dor e, como bandeira, quisesse mostrar ao mundo de que era uma sofredora. Uma voluntária sofredora. Ali o luto, no seu corpo, era muito mais que a expressão da dor, era a autopenalização por não ter partido primeiro que o seu companheiro de vidas partilhadas de mais de meio século.
-Posso ajudá-la nalguma coisa? Interroguei com voz doce, como adivinhando que esta mulher não queria comprar nada. Se o pudesse fazer, com poder arbitrário, compraria o impossível de adquirir: a vida.
-Desculpe, não quero nada ou talvez quisesse, mas o que quero o senhor não me pode vender ou dar. Há tanto tempo que não venho à baixa!... Há cerca de cinco anos que não saio de casa… durante todos estes anos estive sempre ao lado do meu marido. Estava acamado. Partiu, há menos de trinta dias, para não mais voltar. Faz-me muita falta –remata a dama de negro.
-Entendo -replico, sabendo que a sua necessidade mais premente era ser ouvida-, certamente, era muito bom para a senhora, como pessoa e essas suas qualidades marcaram-na…
-Não, está enganado. –interrompe-me, abruptamente. Quando era novo, nunca cheguei para contentar o seu apetite voraz, teve sempre outras mulheres. Era muito ciumento, eu não podia conversar com ninguém e muito menos se fosse homem. Fazia-me a vida negra.
-Mas, sendo assim, –interrogo-, nunca pensou em separar-se? Certamente tratava-a mal…
-Separar? Casámo-nos em 1952…nessa altura o casamento era para toda a vida. Era um escândalo se alguém se separasse. Se eu o fizesse, era o bastante para o bairro inteiro deixar de me falar. Sim, chegou a bater-me várias vezes…-as lágrimas acabaram por rolar, eu olhava para os seus olhos e, esperava a todo o momento ver cair as gotas segregadas pelas glândulas lacrimais. Entre o cai, não cai, o pranto venceu a sua aparente lucidez de serenidade.
-Há cinco anos –prossegue no seu relato- teve um AVC (acidente vascular cerebral) e ficou acamado, nunca mais se levantou. Aí conheci o seu lado mais egoísta e cruel. Insultava-me de todos os nomes possíveis e imaginários. Se lhe faltasse um bocadinho que fosse gritava desalmadamente: “puta…andas a dá-la..não é?!...como não te posso valer…”
-Só era senhora de sair de casa para comprar os géneros alimentícios no supermercado ao lado. Estes cinco anos foram um martírio. Uma prisão voluntária.
-Pois entendo o que passou, imagino, -retorqui, franzindo o sobrolho- felizmente acabou, pode recomeçar a viver. Tente cortar com todas essas recordações que lhe causam tanta dor. Expulse tudo que lhe avive a memória. Corte o mais depressa que puder com o luto, tente não o perpetuar.
-Isso é fácil de dizer. Sabe que tenho saudades dos seus gritos ecoando por toda a casa? Sinto a casa vazia…sinto a falta dele –e mais uma vez o pranto se soltou nos seus olhos como uma Maria Madalena.

(HISTÓRIA VERÍDICA)

UM DAQUELES DIAS...

Hoje, para mim, é um daqueles dias em que não apetece fazer nada…mesmo nada. Nem escrever. E se nem isso me apetece –sendo um dos meus vícios- é porque não devo estar bem. É daqueles dias em que só nos apetece estar onde não estamos. Quereria poder dividir-me em dois seres: Uma andorinha esvoaçante e um homem rasante.
Como pássaro voador, corredor de fundo dos cinco Continentes, gostaria de parar lá em cima, do céu, abarcando o espaço ocupado pelo meu ser terreno, e, despretensiosamente, olhar para baixo e ver o que faz a outra metade humana, perdida na amálgama de gente, como uma espiga de trigo envolvida nas longas searas dos campos que se perdem no horizonte.
E o que vê a andorinha, satélite da minha curiosidade? Vê um homem a percorrer os caminhos que sempre percorreu ao longo da vida, igual a outros terráqueos, preso a hábitos que o tornam esclavagista, escravo das teias que ele próprio teceu, como aranha sempre a tecelar para não mais se libertar.
Vê um homem que tem noção da sua própria alienação que, sentindo-se preso, quer libertar-se mas não sabe como. Como autómato calcorreante, percorre, diariamente, as linhas societárias em busca de uma felicidade desejada mas utópica. Porque sabe que essa felicidade não depende apenas de si mas do meio envolvente e, nomeadamente, daqueles que estão mais próximos de si. Trava um conflito permanente entre o que quer e o que pode conseguir, uma vez que o seu querer depende sempre da harmonização de interesses entre ele e os outros. Procura não ceder ao desejo carnal animalesco e primário. Cujas consequências, se não forem sublimadas e calculadas, podem magoar seriamente terceiros.
A andorinha lá de cima continua a concentrar-se no espécime humano e vê um homem triste que lhe apetece escrever poemas de amor nas pedras da calçada, para que todos os transeuntes, ao pisá-los, os leiam e os sintam como mensagens de ardor, de alento e de amor. Ou talvez musicar os raios solares, com cada um, trazendo no seu calor, na sua imanência, uma música maluca que recorde um momento feliz.
Se este homem pudesse conceptuar um desejo, certamente, formularia que todos os dias fossem do riso. Que quem estivesse triste fosse multado com a pena de ter de sorrir. Que o mendigo, em vez de mostrar a tristeza espelhada no rosto, fosse obrigado a mendigar sorrindo. E que o óbulo, em vez de moedas, pudesse ser pago com um…sorriso.
Que deveria ser criado um tribunal sumário para julgar todos aqueles que contribuem para espalhar a angústia e a tristeza. E que a sua pena fosse terem de rir desalmadamente, vagueando pelas ruas da cidade, com um cartaz nas costas, escrito em letras garrafais: EU FUI O CAUSADOR DE MUITA TRISTEZA…DESPREZE-ME COM UM SORRISO.

sábado, 14 de julho de 2007

UM PASSARINHO CANTOU

Eu tinha um passarinho,
há muito, tanto ano…
era tão lindo e bonitinho
que pensar noutro era profano;
Um dia o passarinho picou-me,
fiquei ferido, tão magoado,
quase tivera outros, isso tocou-me,
nunca trocara o meu passarinho amado;
Ora ele ao picar-me arriscou,
sabia que me podia perder,
conhece-me e sabe que sou,
amante da natureza de todo o ser;
fui para o campo e a picar uma cereja,
vi um passarinho, tão queridinho,
tão bem parecido, tão lindo, uma beleza,
estava carente, estava mesmo sozinho;
Sem pensar muito, apalpei-o com a mão,
envolvio-o entre os meus braços, ele gostou,
as suas penas eriçaram-se como um trovão,
senti que nunca fora amado ou amou;
foi então que o meu passarinho amado acordou,
sentiu-se ameaçado e na vida reflectiu,
então, na sua gaiola dourada, questionou,
estando preso, era tão livre que sentiu;
Que às vezes as amarras são dissabores,
é um ressabiamento, uma afirmação,
são tempestades no deserto, são amores,
é uma aragem fresca que refresca o coração.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

O CAIR DA MÁSCARA

Quando deixaste cair a máscara,
não conheci aquela cara cheia de ódio,
a clamar e a pregar por vingança,
não reconheci a mulher que amei,
eu tinha-te num pedestal, num pódio,
ao ver esse esgar, perdi a esperança;
Às vezes, interrogo, se conheço alguém,
mesmo até, se me conheço a mim,
se, melhor, não serei apenas, só, um filho da mãe,
terei consciência ou moral para te condenar a ti,
não terei, igualmente, enfiado a máscara também;
Penso, se no fundo, não seremos todos uma fera amestrada,
tentando ser a imagem, perfeita, reflectida no espelho,
não aquela que sentimos ser, mas aquele que é desejada,
todos fingimos, neste palco que é a vida, como actores,
duma peça, escrita por alguém, encenando, ora dama amada,
ora vilão, como proxeneta, explorando, vivendo de favores;
Todos falamos em verdade, como se só houvesse uma,
mas em verdade, a que vemos é sempre a nossa, a mais sincera,
a dos outros, é falsa, só a nossa é verdade e mais nenhuma,
vai-te embora ó verdade, prefiro a mentira, mesmo sendo quimera,
prefiro assumir que sou fraco, insensível, sem franqueza alguma,
um simples mortal, errante, como qualquer outro aprouvera.

sábado, 7 de julho de 2007

DAR UM ABRAÇO

UM ABRAÇO É A ALMA DO VIVER,
O SENTIMENTO DOCE DESTA ESTRADA,
O FLUIDO IMANENTE QUE NÃO SE QUER ESQUECER,
É O UNIVERSO VAZIO, TÃO CHEIO DE NADA;
MESMO QUE NÃO SE ABRACE NINGUÉM,
E SE FAÇA UM SIMPLES GESTO,
É ENGRAÇADO IMAGINAR ALGUÉM,
O CONFORTO QUE SE SENTE, É UM PRESTO;
MANDAR UM ABRAÇO COM CALOR,
É ENVIAR UMA MENSAGEM REVIGORANTE,
MESMO QUE ESSE ALGUÉM TENHA AMOR,
É UM ABRAÇO DE SAUDADE, DE ALGUÉM DISTANTE;
UM ABRAÇO PODE SER DE AMIZADE, AMOR, OU TANTO FAZ;
DE RESPEITO, EM SAUDAÇÃO, POR UM INIMIGO VENCIDO,
PODE SER UMA DOUTRINA PAGÃ, UMA RELIGIÃO DE PAZ,
SER A CHAVE QUE ABRE TODO O CORAÇÃO, MESMO O MAIS EMPEDERNIDO.

Ó ...MAR INFINITO

Olho para ti...ó mar,
tão imenso, ao longe a onda serena,
aqui perto pareces arrojar,
como a querer demonstrar,
seres sentinela, alerta, sempre em cena;
Vigilante e adormecido,
um gigante, bom pastor,
como um sonho perdido,
no infinito do amor;
Olho para ti...ó mar...
e procuro o horizonte,
apetece-me saltar,
fazer da praia uma ponte;
Que mistério tu encerras,
para eu ter esta atracção,
quantos sonhos tu enterras,
na areia, quase, como maldição;
Olho para ti...ó mar,
vejo o teu vigor e a força da lida,
és tão forte a carregar,
as amarguras da vida;
O teu azul, puro e esbranquiçado,
o teu descarado namoro ao sol é guloso,
gostava de ser como tu, esperançado,
nunca desistir de ser feliz...ser teimoso

CORAÇÃO PARTIDO

Quando penso em ti,
Com o teu sorriso de graça,
A forma como parti,
Não me honra, morro na praça;
Quando penso em ti,
Sinto-me desfalecer,
Com as mãos erguidas no ar,
Perdendo as forças, quase a morrer,
Como se fosses andorinha a emigrar;
Quando penso em ti,
Imagino-te a chorar,
As lágrimas, como setas, tocam em mim,
Ferem-me a alma, fazem-na sangrar;
Quando penso em ti,
Imagino-te nos meus abraços,
Encolhida, enroscada toda em mim,
Como se fosses um embrulho e eu o laço;
Quando penso em ti,
Vejo duas pessoas a correr,
Uma para lá outra para aqui,
Em sentidos opostos, sem saber,
Que um dia se encontrarão… assim;
Quando penso em ti,
Imagino-te um rio sempre a correr,
À procura de um destino incerto, de per si,
mesmo sabendo que ao mar vai morrer.

sexta-feira, 6 de julho de 2007

MAFALDA A CONTESTATÁRIA

Contrariamente ao que se possa pensar, não vou falar da menina de sete anos, nascida e, presumivelmente, vivente em Buenos Aires, na Argentina, no início da década de setenta. Esta personagem de ficção criada por Quino (Joaquín Salvador Lavado) é uma menina que, apesar da sua tenra idade, percepciona situações de injustiça e até de racismo e, de uma forma algo para o desconcertante, questiona os adultos com perguntas embaraçantes. Tão lógicas para ela mas dificeis de entender e compreender pelos adultos.
A Mafalda de que irei falar, tem oitenta anos e mora ali para os lados da Solum, em Coimbra. Cronologicamente, esta minha heroína, chamada aqui à colação, poderia ser, imaginariamente, a mãe da pequena insurrecta criação de Quino. Pelo menos no génio, no inconformismo. Quem diz que a idade torna as pessoas conformadas? Não conhecem esta minha amiga. Se a conhecessem alteravam o resultado das suas análises antropológicas e veriam, em contraposição, que a excepção não confirma a regra. Antes pelo contrário, demarca-se dela, dessa falsa regra e faz-nos acreditar que no meio da turba há sempre alguém que resiste e, sobretudo, que é diferente. Embora sendo da mesma massa humana, reage contrariamente ao esperado
A minha Mafalda, roída pelo tempo, marcadamente vincada no rosto por dezenas de rugas –poderiam ser oitenta, se cada uma corresponder a um ano de vida- é uma mulher esguia, muito magra, e muito ágil de corpo. Curiosamente, a sua mente é lesta no pensar como suporte do agir. Para além de ser saudavelmente contestatária –como gosta de o mostrar, como se esta forma de estar, este conflituoso ser, fizesse parte de um cartão de identidade e, quando é preciso, puxa dele quase com arrogância, como se, essa forma de reivindicação fosse um pulsar de vida. Como se no meio de uma imensa multidão levantasse os braços, juntamente com um grande cartaz e dissesse: “EU EXISTO... EU ESTOU AQUI E TENHO UMA PALAVRA A DIZER”.
No dia 4 de Janeiro, deste ano, Mafalda, como já fizera outras vezes, entrou no elevador dos HUC, Hospitais da Universidade de Coimbra, subiu até à Fisioterapia e bateu na porta do seu “amigo” médico fisioterapeuta.
Há vinte anos que conhecia este mestre em tratamento de doenças por métodos naturais. Desde que fora seu vizinho lá próximo do Dolce Vita. De vez em quando ia visitá-lo aos HUC e da última vez até lhe dera uma pequena prenda.
Eram, então, cerca das nove horas da manhã, desse dia quatro de Janeiro, quando bateu na porta do consultório do seu conhecido. Como este não respondesse, tornou a bater e insistiu novamente. De repente, abre-se a porta e lá de dentro sai uma besta, com a cara do seu amigo médico, com a mesma velocidade dum PitBull Terrier, lança-lhe as mãos ao pescoço, aperta até Mafalda ficar sem ar e, esta, pensar que vai morrer, exactamente, onde pensava estar numa casa de sobrevivência e nunca de morte provocada. Como animal irracional, abandona a presa, depois de a considerar dominada e entra para o seu covil, batendo a porta com estrondo.
Atarantada, pergunta, ao primeiro que aparece, onde pode falar com o Director do serviço de Fisioterapia. “É no rés-do-chão”, dizem-lhe. Mafalda foi lá. Foi muito bem recebida por este chefe de serviço. Este, apercebendo-se dos ferimentos mais anímicos que físicos da senhora, ouviu, com atenção e prontificou-se imediatamente a ajudar. Afirmou que iria falar com aquele médico de ímpetos animalescos. Nem por um momento referiu a Mafalda que esta poderia utilizar o Livro Amarelo de Reclamações.
Mafalda saiu meia vencida, mas não convencida. Do seu âmago saía um grito de revolta a clamar por justiça. Cá fora, perguntou a uma funcionária como poderia fazer para reclamar. Esta, respondendo, disse-lhe que fosse para casa e transferisse para uma folha de papel tudo o que acontecera. Também não lhe falou no livro de reclamações.
Mas se estas pessoas pensavam que, com aquele ar frágil de cana abanada pelo vento no canavial, Mafalda iria desistir, enganaram-se redondamente. No dia seguinte entregou a sua exposição escrita e foi falar, novamente, com o director de serviços. Quando este soube que Mafalda tinha prescrito o seu sentir de revolta para o papel, não conseguindo disfarçar algum incómodo, exclamou: “a senhora reclamou…?”.
Agora, em processo de inquérito, Mafalda aguarda. Com o seu ar de gozo antecipado e nariz arrebitado, remata para mim: “eles pensavam que eu era uma frágil mulher… esqueceram-se que me chamo Mafalda…a contestatária…”
Aquelas rugas no rosto estenderam-se num largo sorriso aberto, como se me dissesse, duma forma hábil e sibilina: “APRENDE COMIGO”.

quinta-feira, 5 de julho de 2007

A CAIXA DOS SONHOS VIRTUAIS

Amélia é uma mulher endiabrada. Para os colegas, com quem convive diariamente, esta mulher é um ícone. Quando se apercebe de um sombrio rosto, espectado nalgum ou alguma camarada sua, Amélia, com a sua vivacidade e graça natural, consegue espantar, ainda que por tempo escasso, essas terríveis nuvens negras da tristeza que, pelo cinzento palpável, anunciam turbulentas tempestades. Tem sempre uma palavra amiga, uma anedota ou até uma “estória” inventada”. No serviço público onde presta trabalho como telefonista, esta mulher, quarentona, de beleza marcante no seu rosto de olhos negros, é mais conhecida do que o presidente dessa instituição. Quase se poderia dizer, por representação simbólica, que as bases daquele edifício público não assentam no enrocamento submergidos no interior da terra. Amélia é a alma, os alicerces daquele prédio, o sustentáculo espiritual de várias dezenas de pessoas. Qualquer assunto menos ortodoxo, que se imagina mas ninguém sabe, é comum ouvir-se: “perguntem à Amélia!”. Como o seu trabalho é na entrada do edifício se, eventualmente, ela faltou umas horas para ir ao médico, a sua falta é notada naquele concentrado de pessoas, como onda de calor absorvente, de baixo para cima, e, de passa-a-palavra, é normal ouvir entre os trabalhadores: “viste a Amélia?...Hoje não veio?...Que lhe terá acontecido?”. Aquela mulher, sem o saber, tornou-se para os seus companheiros, um dicionário, uma lista telefónica, um detective, um muro das lamentações, uma super mulher que nunca se abate, que nunca cai, feita de uma matéria desconhecida, provavelmente vinda de um planeta distante. Aos olhos deles, esta mulher nunca será afectada por essa terrível doença, deste promissor século epicurista, que, como cancro social, se vai apoderando um pouco de todos nós: a solidão.
Amélia, vista pelos olhos dos seus amigos, é muito mais do que pessoa física, é um espírito de alegria imanente. Nesta percepção ilusória, fruto amadurecido de muitos anos, todos esqueceram que ela é simplesmente humana e, nessa enganosa ambiguidade, sofre de fragilidades como todos os outros. Não é difícil de adivinhar que ninguém se apercebeu da tristeza latente e continuada daquela mulher, símbolo da fortaleza existencial que todos ambicionamos ter. Mas Amélia sofre, a bom sofrer. Só um bom observador, talvez deslocado daquele universo, olhando na profundidade dos olhos negros e tristes de Amélia, pensaria estar na presença da musa inspiradora da canção de Carlos Mendes, na década de oitenta.
Mas que razão terá esta mulher para, contra todas as previsões, andar continuadamente triste? Casada há um quarto de século com um homem que a ama. Dois filhos excelentes, já arrumados na vida, isto é, casados, e um deles até já tem encomendado um netinho que já está em gestação. Profissionalmente, tudo corre sobre rodas. Cada um a viver independente na sua casa adquirida havia poucos anos.
Então não dá para perceber. Será que são problemas entre ela e o Albino, o seu marido? Mas ele gosta tanto dela. È certo que ele, resultado da atmosfera de fábrica, onde trabalha, já andou amantizado com o álcool e proporcionou muito mau ambiente em casa. Mas há três anos que não bebe. Amélia encostou-o à parede e, em forma de ultimato, sentenciou que ele só podia viver com um amor: ou a escolhia a ela ou ao álcool. E albino, ponderada e acertadamente optou por Amélia. Mais uma razão para não se entender a solidão dela. Será que é pela ignorância displicente e objectivada de Albino? Pode ser. Enquanto Amélia sempre leu a revista Maria e pelo menos um jornal diário da cidade e sempre viu muita televisão, sobretudo telenovelas, Albino canalizou toda a sua literacia para o jornal desportivo Record e nada mais. Televisão nem pensar. Mal se senta no sofá e já se ouvem uns roncos misturados com assobios e grunhidos espaçados com tremores demolidores que abanam todo o sofá. Cinema, nem pensar. A última vez que Amélia se lembra de ter ido ver um filme foi o clássico “música no coração”, com Julie Andrews, em que guarda na sua memória o extraordinário desempenho daquela belíssima artista a dançar pelas colinas de sonho com duas malas e um guarda-chuva. Lá em casa, ao fim de semana, o único a ter licença de dispensa é Albino para ir ao futebol. E a Amélia?! Imaginemos alguém a interrogá-lo. “A Amélia?!...Essa é boa…as mulheres querem-se em casa…há sempre coisas para fazer: limpezas, lavar roupas, passar a ferro, regar as plantas”, responderia, pela certa, o aficcionado do futebol.
Albino parou no tempo. É um modelo antigo de comboio a vapor. Ao mesmo lado, na mesma casa, onde predomina uma Amélia que poderia ser, homologicamente, comparada a um TGV, um comboio de alta velocidade. O problema maior é que Albino sente que, por comodismo, não consegue acompanhar a sua esposa e, então em vez de se esforçar e redobrar o vapor da sua máquina, pelo contrário tenta refrear o ímpeto do TGV-Amélia. Resultado: naquela casa vivem duas pessoas juntas, mas separadas, anacronicamente, no tempo, por mais de um século.
Para piorar as coisas, para os lados do Albino, a administração da instituição patronal de Amélia, tendo em conta os seus serviços relevantes e vendo a sua vontade de evolução, no ano passado proporcionou-lhe um curso intensivo de informática e colocou, junto à central telefónica, no seu pequeno habitáculo, um computador para que este modelo de funcionária pudesse, mais eficazmente, responder às solicitações várias, quer de utentes, quer de restantes funcionários daquele serviço público.
Amélia, com a televisão, a pequena caixa que revolucionou o mundo, já tinha passado a sua primeira insurreição dos seus horizontes, agora, com a Internet, está a viver intensamente o seu segundo movimento de transformação cultural, educacional e social.
Ao manusear, como quem diz teclar, esta pequena caixa, esta mulher voa no tempo, levita no espaço e sonha acordada. Se assim é, porque não está Amélia mais feliz? Realmente não faz sentido. Deveria estar.
Imaginariamente, se fizéssemos esta pergunta em abstracto, certamente, como fantasma materializado, alguém responderia que o conhecimento das coisas, conduz a uma obsessão em cadeia, na procura de respostas para perguntas nunca até aí imaginadas e, agora, cada vez mais prementes, onde ressalta o “porquê disto, o porquê daquilo”. Esta interrogação leva, inevitavelmente, a uma dúvida existencial que se alimenta de mais respostas e estas, por sua vez, de mais dúvidas que vão conduzir a uma insatisfação entre o que se pensa ser e o que realmente é. Para concluir, afirmaria alguém, em trejeito meio sarcástico: “felizes só os ignorantes”.
E, comparando com o mundo de Amélia, a verdade é que esta caixa de múltiplas respostas, não lhe trouxe mais felicidade ao seu universo. Antes pelo contrário. Até entrar neste reino virtual, Amélia era feliz com o seu Albino. Nunca se questionara, por exemplo, da razão de ele, quando faziam sexo, se servir dela. Sim, hoje Amélia sabe, graças à caixinha de realidades virtuais, que ele ao longo de mais de vinte anos, sempre se serviu dela. Ela nunca provara o gosto do seu gozo sexual. Nunca soubera o que era um clímax e, também, a verdade se diga, nunca ouvira falar em tal palavrão. Ele punha-se em cima dela, como se estivesse a montar para cima da burra do Zé Pileca, dava dois trotes na criatura, e, quando esta começava a ganhar gosto na corrida, mandava um grito, entre um Tarzan e um sofrido choro, acabando ali o que, nesta metáfora, nem chegara a começar para a Amélia. Na Net, ela viu que havia muito mais mundo do que aquele que imaginava, olhando, de olhar perdido, as manchas da pintura do seu quarto, enquanto fazia o frete ao seu marido, e a cama, como compincha dum ser egoísta, apenas rangia para ele, nunca para satisfação dela.
Nos primeiros dias, após tomar contacto com esta realidade, ainda tentou, com bastante tacto, alertar o seu marido para as insuficiências carnais de que sofria há mais de vinte anos. Mas este, como ameaçado, reagiu com brusquidão e Amélia nunca mais lhe pode falar em nada. Para descompensar ele cada vez mais se torna controleiro do seu espaço e mais restritivo e fechado à luz do seu conhecimento.
Hoje, nos chats, Amélia, dos olhos negros, tristes e embaciados, procura o seu príncipe que lhe proporcione o seu almejado desejo de ser feliz e, como religião pagã, possa ter o seu Carpe Diem, o gozar o dia, indo ao encontro das suas necessidades carnais e ideal de felicidade. Mas Amélia não tem tido sorte, até agora só lhe apareceram montadores iguais ao que tem em casa, habituados a montar a burra do Zé Pileca. Ela quer muito mais, quer romance e propostas de um futuro certo e menos virtual do que lhe propõem.
Hoje, mais triste do que nunca, acompanhada de amigos virtuais, mas muito mais só, em balanço de aferição, interroga-se: esta caixa extraordinária, viajante supersónica por entre continentes, contribuiu alguma coisa para a sua felicidade? Duvida.

segunda-feira, 2 de julho de 2007

O VENDEDOR DE INDULGÊNCIAS

O rapaz, de cerca de vinte anos, com umas fotocópias na mão, corria como um corisco, por entre os carros. De olhos esverdeados e face alongada, deveria ser da Europa de leste. Mal caiu o sinal vermelho, sabendo que o tempo escasseava e estava cronometrado, saltou do passeio, como foguete em direcção ao céu. Por debaixo do braço esquerdo, na junção com o tronco, uma canadiana a fazer de conta de que se apoiava nela, por impossibilidade física. Mas pela desenvoltura -quem se apoiava em quem?- estou certo, era a canadiana que se apoiava nele. O rapaz, estranhamente, nem disfarçava, como se não tivesse necessidade de se esforçar nada. E, pelo que vou contar a seguir, realmente não tinha mesmo. E sendo assim, terá pensado para si mesmo: “para quê esforçar-me, se esta cambada de estúpidos me paga o mesmo? Não estarão minimamente interessados no meu trabalho cénico, mas sim em descarregar as suas consciências pesadas e olham, apenas, para o que julgam que eu seja e jamais para aquilo que eu sou. Até seria uma afronta eu estar a esforçar-me” –terá pensado o rapaz.
E, como se este pensamento fosse real, nos dois carros à minha frente, curiosamente senhoras, uma deu uma moeda, presumo que terá sido um euro. No imediatamente a seguir a mim, um Opel vermelho, talvez com mais de vinte anos, a pedir uma urgente troca por um mais jovem, a condutora, certamente nos “intas e muitos”, deu ao falso pedinte uma nota de cinco euros. Este, embora não surpreendido, como era acima da média, terá pensado que aquele “cliente” mereceria um tratamento extra e, pendurado na janela da senhora com o braço solto, vendendo uma cantilena já gasta pelo tempo, nem sequer me deu atenção e nos minutos de paragem, enquanto durou o sinal vermelho, como prémio pela generosidade da senhora, ele não distribuiu lamúrias a mais ninguém. Durante aquele curto tempo a senhora foi a sua rainha, a destinatária de uma história inventada e muito bem contada, presumo. Até consigo imaginar o rosto da senhora, tenso e pesaroso e, sem o evitar, uma lágrima a soltar-se. Logo a seguir à passagem do sinal verde, arrancámos e a senhora, certamente, já a bom chorar, deu largas à sua dor e, com um pensamento a martelar-lhe a mente:”coitadinho…este mundo é muito cruel e injusto!”
Nem por instantes se terá lembrado que acabara de ser burlada e que o seu generoso gesto, mais não era do que a expressão da sua tristeza, o retrato da sua vulnerabilidade, talvez aquela fraqueza de espírito, ainda que fruto de um episódio recente, ou a piedade de que falava Nietzch.
Porque, sem me querer armar em sociólogo, o acto de dar, não reside apenas nesta fraqueza de espírito, momentânea ou não, onde a moeda é doada com uma (in)consciência perfeita de que se está a praticar o bem, mas, também, no calculismo rasteiro, onde o exercício de dar esmola é uma espécie de expiação dos pecados terrenos, um acto de contrição, e, ao mesmo tempo, ser uma garantia de um bom lugar no céu, aliás também referida pelo filósofo alemão. Existe uma outra faceta, talvez menos estudada, nalguns “praticantes do bem”, esta menos representativa mas não menos referenciável. Dentro de cada um de nós, existe uma ponta de sadismo implícito, onde a moeda doada simboliza e fere com a mesma atrocidade dum chicote, como se com esse gesto se castigasse os inadaptados da sociedade. Mesmo sabendo, à partida, serem falsos-cromos. Como se, perante aqueles, nos estivéssemos, psicologicamente, a autoelevarmo-nos. Como a dizer: “eu sou superior a ti…não pertenço à tua classe… indigente”.
Como todos sabemos a mendicidade não é proibida. Seria bom que quem ler este texto pensasse que há casos e casos e, antes de dar, reflectisse e pensasse que o acto de dar esmola não pode ser encarado de ânimo leve, pelo menos olhe-se os olhos de quem pede e repare-se em pormenores indiciadores que podem dizer muito. A darmos a moeda como se, no fundo quiséssemos dizer:”toma, desampara-me a loja e não me chateies”. Assim a continuar, estamos a ajudar a multiplicar uma prática demasiadamente lucrativa, incomodativa e de censura social. Ao direito legítimo de, em liberdade, dar, deve contrapor-se o direito intrínseco de não dar.

domingo, 1 de julho de 2007

UM SONHO

Quando eu te vi,
Naquela primeira vez,
Tinhas a luz,
De uma estrela que Deus fez;
No teu sorriso,
senti-me preso a ti,
Estava amarrado,
nunca me senti assim;
Quando nos teus olhos,
bem no fundo, eu olhei,
vi quem tu eras; um anjo,
sem dúvida, agora eu sei;
Quando peguei na tua mão,
nem calculava, nem tinha
lucidez e muito menos a razão,
que um dia serias minha;
Quando te amei, ao luar,
estavas insegura,
como psicanalista a avaliar,
senti a tua alma doce e pura;
Os teus beijos de paixão
eram a chama viva do calor,
como tição ardente apelavas,
abraça-me meu amor;
Tu pedias eu abraçava,
cada vez com mais ardor,
ora beijava, ora rogava;
abraça-me e beija-me…amor!

ABSTRACÇÃO

Ao partir,
eu olhei para essa estrada,
e senti,
que tudo não valeu nada;
Olho à volta,
uma rosa no cantinho,
que eu plantei,
com tanto amor e carinho;
Vou deixá-la,
como deixo tudo aqui,
deixo a alma,
e mais metade de mim;
Deixo sonhos,
até noites sem dormir,
olho à volta,
nem me apetece partir;
De olhos tristes,
o meu cão olha para mim,
adivinha…
a mágoa que sinto assim;
Encosta-se a mim,
como a querer partilhar,
não evito…
e uma lágrima vem rolar;
Mentalmente,
faço o balanço das vidas,
o passivo,
constitui as nossas feridas;
Os filhos e tantas recordações,
é o activo,
que pesa em nossos corações;
O silêncio, esse invasor entre nós,
é um vidro,
separador, implica estarmos sós;
Em verdade, não sei se quero estar contigo,
quero estar só, pensar com serenidade,
abstrair-me, quero ver se o consigo,
e decidir, em plena liberdade.