terça-feira, 2 de abril de 2024

BARRÔ: AFINAL, A SUPOSTA CRUZ EM OURO ERA EM LATÃO

 





Planava eu, hoje pelo romper da aurora, serenamente no meu quarto ciclo de sono profundo quando a campainha do portão de entrada retiniu com insistência. Ou melhor, o toque era de raiva, uma fúria ressacada de alguém que precisava de despejar o saco das frustrações.

O relógio da capela do adro ensaiava os primeiros toques a lembrar que o ditado “vale mais quem Deus ajuda do que quem muito madruga” é falso.

Com um olho aberto e outro meio fechado, enfiando à pressa o primeiro robe que me veio à mão, corri para as escadas para acudir aquela aflição.

Era a dona Miquelina, a esposa do L. A., Laurindo Abrenúncio, sobre quem, ontem, contei a história da suposta cruz, em ouro, encontrada por ele na ribeira, junto ao Moinho Velho.

Bastou-me um olhar de relance, mesmo a meio-olho, pelo rosto contraído, para verificar que se adivinhavam ciclones e arruadas de chuva.

Antes de chegar próximo dela, guardando uma pequena distância de segurança, ensaiei o melhor sorriso e uma frase simpática de boas-vindas:

- Bom dia, dona Miquelina, bons olhos a vejam. Passou uma boa quadra da Páscoa?

-Deixe-se de lamechises, que eu não estou para brincadeiras. Está a ouvir, sua amostra de jornalista de caserna?

Respirei fundo. Estava em vias de uma discussão turbulenta. Optei pela ignorância. Fiz-me de sonso.

- Não estou a perceber, aconteceu alguma coisa de grave, que eu não saiba?

- Não sabe, o quê? Seu troca-tintas de uma figa… - respondeu em interrogação com brutalidade e simulando uma investida.

Não sabe o que escreveu ontem? Não adivinhou que, por ser o Dia das Mentiras do primeiro de Abril, era uma patacoada?

Respirei outra vez, enchendo o peito de ar, soerguendo a cabeça, e preparei-me para o pior.

E fui aparando os golpes com argumentação de xaxa.

- Vai desculpar, dona “Miquinhas” – utilizei o diminutivo intencionalmente para ver se adocicava a lábia turbulenta da mulher -, mas foi o Laurindo, o seu marido, que me contou tudo. Até gravei. Quer ouvir?

- Não quero ouvir nada. Ponto final. O meu homem é um tonto. E quem manda lá em casa sou eu. Está a ouvir sua besta?

Engoli em seco. O melhor era mesmo desvalorizar as expressões. Se fosse demasiado lisonjeiro, e, por exemplo, lhe oferecesse uma flor de um dos vasos que calcorreiam as escadas, poderia ser acusado de assédio. Se fosse demasiado agressivo, sei lá, ainda poderia ser acusado de violência "rual" – uma derivada da doméstica, mas perpetrada na via pública.

Uma mulher, hoje, tem mais poder territorial que o Papa Francisco. Basta o ser para fazer encolher o parecer do mais afoito dos homens.

Prossegui, tentando ganhar tempo com a calma que tanto me caracteriza:

- está a exagerar, dona Miquinhas…

- Pois, isso é que não estou, seu troglodita… E não me trate por “Miquinhas”. Isto é só para os meus amigos...

Intervalei com uma pergunta de retórica:

- Mas, afinal, o que a incomoda? Ainda não percebi…

-Ai não?!? Ai não?

Então, não sabe que a cruz, colocada junto ao moinho por uns engraçadinhos, era de latão? Alguém precisava de saber acerca disso?

Para além disso, ninguém precisa de saber o que se passa em minha casa. Entende, seu escritor de meia-tijela?

Ainda ensaiei uma última questão:

- E como é que está o Laurindo?

- Uma lástima… Com uma depressão, que nem a graça de todos os santos lhe valem. Como que acha que ele estará?

-Compreendo – rematei sem convicção.

- Não compreende nada. E muito menos a vergonha que ele está a passar.

Já se tinha convertido à Religião Católica, e mais, já se tinha inscrito como Juiz da Igreja Paroquial de Luso. E agora, assim, nada…

Já estava a ver o meu Laurindo com a opa vermelha vestida e a pegar no estandarte… Ai que saudade…

Quem paga o meu desapontamento?


segunda-feira, 1 de abril de 2024

BARRÔ: ENCONTRADO IMPORTANTE ACHADO ARQUEOLÓGICO


    



Foi no maior segredo para que a notícia não desse à luz. De tal maneira o assunto sigiloso foi tratado com pinças cirúrgicas que nem a carpideira nomeada do lugar soube de nada.

L. A. - que, como é óbvio, não podemos identificar mais do que as iniciais – acompanhado do seu inseparável detector de metais, no seu passatempo favorito, passeava alegremente na semana passada o seu instrumento à espera de um “bip, bip”.

Há muitos anos que a sorte não lhe sorri. O que apanha é o costume: recobertos por uns escassos palmos de terra, é encontrar cavilhas e pregos de ferro e até alguns cornos de boi ornamentados com tiras de prata, o que o levou a concluir que, mais que certo, os Vikings, ancestral povo escandinavo, não teriam sido somente excelentes navegadores dos oceanos, mas também teriam chegado à aldeia através da Ribeira do Salgueiral, leito de água há séculos provavelmente navegável que atravessa a terra fértil da povoação. Porventura, a ser assim, os nórdicos teriam desembarcado no cais e actual represa do moinho velho.

L. A. sem nunca desistir da sua intuição, já percorreu a zona de Barrô de lés-a-lés. Já esburacou a terra barrenta da Terra Nova e Gândara, outrora grandes jazidas da excelente argila que deu nome ao povoado, e que serviu de matéria-prima às duas desaparecidas fábricas de telha e tijolo, situadas no alto do Coito, na fronteira que divide Barrô e Vila Nova de Monsarros. Já andou pela Lapa-do-sino, paredes meias com terras opostas a Várzeas. Já calcorreou as leiras do Ribeiro, e até já chegou a Vale da Fé, passando pelo Vale da Formiga.

Nesta última semana, que, por acaso, até era Semana Santa, conta o próprio, o nosso pesquisador de metais raros, a remoer um tédio desgraçado, acompanhado da sua “mais que tudo”, com a “Marilu, a gata que se tornou bebé no doce-lar, no regaço, estava confortavelmente instalado na poltrona da sala a ver o programa da Júlia, na SIC, sobre a imperfeição dos homens. Foi então que, vá lá saber-se o porquê, sem nada que o fizesse prever, a mulher, “puxando a culatra” atrás da metralhadora verbal, deu em disparar contra o nosso herói. Respigava ela que o marido era um inútil, que já há vários anos não lhe oferecia flores, que nunca ajudava nos trabalhos de casa, que só tinha olhos para o detector de metais. E blá, blá, blá.

De tal modo foi o tiroteio que o nosso pobre homem se sentiu ferido na alma e no coração – que palpitava tanto, que até parecia ir dar-lhe um enfarte fatal, daqueles que amandam uma pessoa para o condomínio fechado de Vale da Ribeira.

L. A. não é crente, admite e tolera a fé dos semelhantes, mas acha que as religiões são uma balela intelectual, das mais bem orquestradas da Antiguidade até aos nossos dias. Mas isso é um problema de cada um, pensa para si em silêncio camoniano.

Atingido pela injustiça, como um autómato, subiu ao sótão, afagou o cabo da máquina prospectora de antiguidades e, em segundos que pareceram minutos, numa espécie de catarse, uma revisão mental de sentimentos, deu uma volta de 360 graus à sua vida simples e pacata. Num ápice, deu por si a apelar ao Criador que o ajudasse a encontrar o achado da sua vida. E que o catapultasse para o mar da riqueza e o retirasse de uma vida de modorra. Há décadas que sonhava que conduzia um Mercedes, para cima e para baixo, na rua principal do lugar. E que os vizinhos, cheios de inveja, com os olhos esbugalhados, assomavam à janelas num trejeito de rejeição.

Sem saber como lá chegou, calçado de botas de cano alto em borracha, estava no leito do rio, que, com um caudal significante, corria em direcção ao mar com aparente alegria, junto ao velho moinho movido a água.

Era um dia dos cinzentos e com chuva de molha-tolos e outros esgaziados. Mas, como milagre divino, as nuvens negras fizeram uma grande clareira azul e o Sol, como por indicação do Mestre, deu em brilhar como num Agosto soalheiro.

Sem explicação plausível, na margem descoberta do lado direito da ribeira, a máquina, sonora perante um metal, deu em fazer um chinfrim dos diabos. Era mais barulhenta que a sirene dos Bombeiros Voluntários da Mealhada.

Mas o que é isto? Queres ver que, depois da minha mulher a chatear, só me faltava esta?

Mas a descobridora de sonhos, quebradora de silêncios, insistia, insistia, e não deixava de fazer barulho.

Foi então que, como um raio de luz atingisse a sua frágil mioleira, o homem começou a pesar a mentira e a verdade. E se aquilo fosse uma epifania? E se ali andasse a “mãozinha invisível” do Criador?

Como um tolo, ou possuído pelo demónio, deu em escavar com as mãos no sítio exacto de onde provinha o som da glória.

Passou uma hora, passaram duas. O buraco cada vez mais fundo. Os dedos cheios de sangue, a fazer lembrar as chagas de Cristo. E da descoberta nem sinais. Mas L. A. não era dos que desistem à primeira contrariedade. E, olhando o céu em sinal de ajuda metafísica, continuou.

Foi então que aos oitenta e três centímetros e duas décimas um objecto reluzente começou a sobressair das entranhas da terra.

Era uma cruz em ouro. Antiga. Muito antiga.

Segundo o meu depoente, “o objecto foi entregue ao senhor padre da Paróquia, que já o enviou para ser avaliado em Lisboa”. E acrescenta, “tudo indica ser do tempo de Constantino, o primeiro imperador romano a converter-se ao cristianismo. Provavelmente, é mesmo a primeira cruz feita em ouro”.

E enfatiza: “quem diria que até os Romanos andaram por Barrô?


domingo, 31 de março de 2024

BARRÔ: NOTÍCIAS BREVES



BARRÔ: NOTÍCIAS BREVES


* A cargo da Junta de Freguesia de Luso, recentemente, foi substituído o velho e decrépito abrigo de paragem, onde desembocam os alunos que descem e ascendem ao autocarro escolar em direcção às freguesias e particulares que o desejem, por um outro mais moderno, mais aprazível esteticamente e com maior protecção para os utentes durante as intempéries.

Durante esta intervenção de substituição de mobiliário urbano, foram também removidos uns ferros de suporte aos contentores de lixo existentes na Rua do Carril e na altura transferidos para o Largo da Capela há cerca de um ano;


* Conforme foi noticiado aqui, em cumprimento de uma promessa eleitoral, que fazia parte do caderno de encargos do executivo PS liderado por Claudemiro Semedo, da Junta de Freguesia de Luso, em Setembro do ano passado, 2023, a capela de São Sebastião, situada no largo com o mesmo nome, foi requalificada, por dentro e por fora, incluindo a cobertura e sanitários, com uma pintura que a transformou mais bela ao olhar comum.

Acontece que no fim da reparação foram retirados dois assentos em forma de bancos de jardim, adquiridos há cerca de vinte anos com verbas angariadas em petição popular para arranjo geral da pequena ermida, colocados na frontaria do templo. Nos últimos anos, estes assentos foram poiso quase diário de vários moradores já falecidos. Ao cair da tarde, era quase obrigatório parar ali e desenrolar dois dedos de conversa em torno das recordações da aldeia.

Em interrogação a um responsável pela curadoria do santuário pelo destino das duas poltronas em madeira, foi afirmado por este elemento que os cadeirões tinham sido mandadas retirar pelo presidente da junta para serem arranjadas as travessas em madeira e pintadas de novo. No fim do processo regressariam ao seu lugar original. Mas acrescentou ainda: “se queres que te diga, nem fazem falta nenhuma. Aliás, até estorvam em dias de procissão”.

Em Dezembro, na última Assembleia de Freguesia, na parte concedida à intervenção do público, um freguês de Barrô inquiriu o chefe do executivo sobre o destino dos dois apoios, e para quando a sua devolução. Por Claudemiro Semedo foi dito que, de facto, os bancos foram retirados para serem reparados. E muito em breve regressariam ao lugar onde sempre estiveram.

De Setembro até agora passaram cerca de sete meses, e dos assentos só resta a memória. O que será preciso fazer para repor a legalidade? Um abaixo-assinado?


* Para quem se recorda, já se deu notícia aqui, com inscrição no Plano, Orçamento e Contas para o ano de 2024, na rubrica “Mealhada um concelho mais verde e hipo-carbónico – página 6/14”, está inscrita a criação das praias fluviais em Barrô, Ferraria e Santa Cristina.


* Nas últimas eleições autárquicas, por promessa eleitoral do executivo PS, liderado por Claudemiro Semedo, foi prometido um parque infantil para aldeia.

Como falta um ano e meio para o digníssimo representante autárquico se despedir do lugar – uma vez que, por cumprimento de três mandatos consecutivos, não se poder recandidatar – e, diz quem sabe, ocupar um lugar de vereador na Câmara Municipal, é só mesmo para lembrar.

É certo que a povoação, presentemente, não tem muitas crianças, mas sem um lugar de recreio para elas quem pode pensar em fazer bebés?


* Já passaram três meses depois da festa em honra de São Sebastião, que decorreu em 20 de Janeiro. Relembra-se que foi feita uma angariação de verbas entre os “barrosenses” e foi realizada uma bonita e tradicional procissão na efeméride do santo padroeiro.

Depois do tempo passado, era bom que as contas, receitas e despesas, da alegoria fossem mostradas publicamente na vitrine existente na parede da capela.

Deu prejuízo?

Deu lucro?

Se o saldo foi positivo, a quem, e de que forma, foram distribuídos os dividendos?


sábado, 30 de março de 2024

DIZEM QUE LOGO MUDA A HORA. ORA, ORA! UMA HORA CONTINUA A SER IGUAL.

 

(Imagem retirada da Web)




Quando damos por nós, olhamos o espelho
e já não reconhecemos a imagem que nos
aparece reflectida. Parece de alguém muito
chegado, mas só isso.”

Ao que tudo indica, logo à noite, vamos, todos, adiantar os ponteiros do relógio para uma hora à frente –a chamada hora de Verão. Será que valerá a pena cumprir esta tradição anualmente? Ou seja, os proventos serão de tal importância que valham o desarranjo que esta alteração nos provoca no ritmo biológico? O facto de passar a amanhecer mais cedo, e com o alegado de não haver desfasamento na luz solar, justifica o alterar a rotina dos marcadores e controladores do nosso tempo?

Em conformidade com a legislação, a hora legal em Portugal continental:
  • será adiantada de 60 minutos à 1 hora de tempo legal (1 hora UTC) do dia 25 de Março e atrasada de 60 minutos às 2 horas de tempo legal (1 hora UTC) do dia 28 de Outubro.” –retirado da página do Observatório Astronómico de Lisboa

Confesso que gostava de escrever sobre este tema algo sério, mas não sei se sou capaz. É que este costume, a meu ver, intrometido e reaccionário, começa por me dar uma tremenda vontade de rir –lá para o fim do texto dá vontade de chorar.
Não é por nada, mas alguém apresentou um estudo científico a provar a mais-valia para a economia deste dogma? Ao que me parece “tudo começou com Benjamin Franklin, o político e inventor do para-raios e das lentes bifocais. Em 1784, num artigo publicado num jornal francês, Franklin sugeria que a França adiantasse uma hora no Verão, alegando que Paris poderia poupar anualmente 32 mil toneladas de cera de vela. Só mais de um século depois é que a sugestão seria tida em conta, no contexto da Primeira Guerra Mundial, para economizar energia”.
O facto de amanhecer mais cedo e anoitecer mais tarde, à hora da ceia, legitima tudo isto? É que esta convenção, embora provisoriamente, começou em 1992, com o governo de Cavaco Silva, e definitivamente com o Decreto-lei número 17, de 8 de Março, em 1996, e dando cumprimento a uma directiva europeia. E aqui faço logo a primeira pergunta estúpida: se com esta mudança se enriqueceu a economia, como é que, passados 20 anos, estamos mais pobres do que anteriormente?
Como duvido sempre dos axiomas, as tais verdades sem contestação, ainda faço outra interrogação sem pés nem cabeça: como é que sem esta tão iluminada medida viveram os nossos pais? E mesmo alguns de nós, em crianças?
Será que neste afã do homem querer controlar tudo, até a luz solar, nos tornou mais felizes? 
Com a desculpa do aproveitar o máximo de luz, enquanto fonte de energia bio-rítmica, nos dias que correm haverá menos solidão, menos depressão, menos suicídio, isto comparando com épocas recuadas?
O curioso é que nesta tentativa vã de apanhar o tempo ficámos sem tempo para olhar as estrelas, a Lua, o magnífico nascer do Sol no horizonte, a leste, o extraordinário Pôr-do-sol a cair sobre o mar, o crepúsculo, e toda a manifestação de uma Natureza viva e magnificente.
Perdemos hábitos de leitura, de escrita, de falar com o vizinho. 
Como se perdêssemos o romantismo e ganhássemos o facebookismo, deixámos de ter uma necessária contemplação introspectiva do mundo à nossa volta.
Vivemos o tempo da necrologia, que é o olhar a página dos jornais diários a ver quem dos nossos amigos morreu –ou, especulando um pouco, para vermos se a nossa foto lá está, porque, bem no fundo, já nem os jornais se lêem como antigamente. É tudo a correr. "Não temos tempo", dizemos todos em coro. Os dias, as semanas, os meses, os anos, todos são iguais e passam num ápice. Quando damos por nós, olhamos o espelho e já não reconhecemos a imagem que nos aparece reflectida. Parece de alguém muito chegado, mas só isso.
Até mudaram a ortografia –estou a escrever e, volta e meia, lá me surge o sublinhado vermelho a indicar erro, ou seja, o computador a querer controlar a minha vontade. Fosca-se para estas mudanças! Porque é que não inventam uma máquina do tempo, onde, em turismo, pudéssemos ir fazer umas férias de longo curso?
Mas, afinal, o que é que se alterou? Se, igualmente, uma hora continua a ter sessenta minutos, mudou o quê?

BARRÔ: AMANHÃ CELEBRA-SE A PÁSCOA

 





Este ano, contrariamente aos antecedentes, com início no Domingo de Ramos e ao longo da Semana Santa, as portas principais das casas da aldeia quase não foram enfeitadas com a cruz envolvida num pano de cor púrpura – a cruz simboliza a crucificação de Cristo e o tecido roxo a tristeza, a dor e a penitência. Ou melhor, para ser mais correcto, exceptuando o átrio da capela, em cerca de sete dezenas de lares (com alguns vazios), apenas três habitações da mesma família, a propósito, mereceram o privilégio da atenção concedida.

A primeira pergunta que ocorre é a razão deste desligamento com a tradição cristã.

Porquê?

Será que a aldeia cortou relações com o Criador?

Não se sabe ao certo, mas é bem provável que assim seja.

Historicamente, os moradores do lugar nunca foram muito ligados à igreja. Tiveram sempre uma relação distante, parecida entre o padrinho e o afilhado. Em caso de extrema necessidade, os pedidos solicitados e as promessas, a cumprir em caso de deferimento tácito, foram sempre realizadas no maior segredo e aconchego do lar, doce lar.

Fosse por Barrô derivar de zona fértil em barro, em que a argila precisa de ser moldada, ou não, a verdade é que os nativos desta povoação foram sempre impregnados de uma introspectiva sombra facial, uma retraída e profunda tristeza, a dar vontade de lhes fazer um largo traço de sorriso ao longo da boca. Como se, seguindo a tradição pascal, o seu fim anunciado fosse a crucificação.

Ao longo dos últimos três quartos de século, a capela de São Sebastião somente era visitada nos funerais dos que iam caindo em combate e na festa anual da comemoração do Santo – neste 20 de Janeiro, a presença dos locais e outros da diáspora foi sempre uma obrigação individual para mostrar o bom fato de elegante corte e o ostentatório automóvel de marca cara, sobretudo, para que todos vissem bem a aura de sucesso de um filho da terra que partiu com uma mão atrás e outra à frente e agora parecia rico – mal saberá ele que entre-dentes da vizinhança, em surdina, se diz que saiu pobre e regressou rico porque andou a roubar na estrada.

Fosse por razões de ADN, ou simplesmente por questões de defesa pessoal em rosto fechado a fazer lembrar o “Incrível Hulk”, a verdade é que os actuais locatários mantêm esse peculiar traço hereditário de identidade a pender para o desdém e a tragédia iminente.

Pode acontecer com a maior naturalidade um chegado recente, vindo de fora, dar um abraço de afeição ao seu conterrâneo e procurar marcar um encontro mais tarde para colocar a conversa em dia e receber em resposta: “podes vir conversar, mas se é para pedir dinheiro não venhas”.

Depois das explicações ontológicas, da existência e do ser, a tentar justificar a falta de saudação pascal, temos que concordar que deve haver mesmo algumas razões materiais para as pessoas se comportarem de forma pouco amistosa para com o Filho de Deus.

E pensando bem, há carradas de motivos para mostrar um certa animosidade.

Há imensos exemplos de que Cristo, com a sua vetusta idade, se tornou desleixado com os seus discípulos. Lembremo-nos das enxurradas de chuva, vento e frio que tem assolado esta terra no último mês.

Recordemos que a alma das gentes do povoado anda negra como o chamiço. Consta-se que há várias separações e divórcios em perspectiva.

Só para citar, a menina Genoveva já plantou várias vezes batatas, couves e favas, e veio o temporal, e pumba. Foi tudo para o galheiro.

O Hermegildo, boémio e um doce de rapaz, tinha planos já traçados para trocar o seu BMW. Até tinha contactado já o stand. Subitamente, foi chamado ao escritório da grande empresa em que é colaborador e foi informado de que, por motivos de reorganização, vai ser dispensado. Coitado! Isto faz-se?

A Laurinda, que faz vestidos por medida, com longa clientela conseguida ao longo de meio-século, anda desolada. Os fregueses são cada vez menos. Culpa a “Primark”, uma marca de roupa barata e feita no Oriente, e os imigrantes chineses, com os seus espaços de venda a fazer lembrar estádios de futebol.

São Sebastião, o padroeiro da povoação, em face do clima de rebelião, está cada vez mais ensimesmado. Como se já lhe não bastassem as setas cravadas no peito e os bicos de papagaio. Com os olhos vazios e perdidos no além, olha para cima, para o Céu, em busca de uma resposta que tarde ou nunca virá. A sua maior preocupação são as manifestações do povo. E que, mais tarde ou mais cedo, em consequência do descontentamento popular, acabará por lhe caber em sorte.

Feliz Dia de Páscoa.


sábado, 9 de março de 2024

AMANHÃ É DIA DE ELEIÇÕES LEGISLATIVAS


 



Depois de uma campanha - para uns atribulada, para outros normalíssima, para outros ainda risível e pouco esclarecedora – onde, sobretudo, sobressaiu o apelo ao voto, chegámos à véspera do acto eleitoral, o chamado “Dia da Reflexão”. Este dia de meditação, em que não se pode fazer campanha, com apelo ao voto, e falar em partidos concorrentes às eleições, onde o atropelo é severamente sancionado pela Comissão Nacional de Eleições, trouxe, de novo mas com maior acutilância, à discussão pública da necessidade de manter este quebra-rotina, este interregno eleitoral.

Depois do voto antecipado se tornar uso para alguns milhares de portugueses, o argumento dos defensores da abolição do “período de nojo” começa a fazer sentido. Contudo, como neste tempo efémero de campanha, por ventura, nunca houve tanta indecisão, cerca de 20 por cento de eleitores, se calhar, continua a fazer sentido, nem que seja para abafar o ruído provocado pelos candidatos.

Ainda que o meu voto valha o que vale, somente uma unidade pessoal e intransmissível, talvez o único acto que no momento de colocar o “papel” na urna, de facto, não distingue classes, ricos, pobres e remediados, confesso que, desde sempre que votei, jamais me senti tão indeciso em a quem dar o meu voto. Ainda que isto pouco interesse, mas só ontem à noite tomei uma resolução. Para mim, salvo uma excepção partidária em que o eleitor é fiel, com maior relevância, contou menos a ideologia e mais o perfil dos candidatos.

Ainda que esta cruzada fosse classificada como os bons elegíveis, os menos eficientes no desempenho que se espera, e os maus a evitar como belzebu, onde, pelas poucas diferenças apresentadas pelos concursantes aos cidadãos, caíram as poucas barreiras que dividem a Esquerda e a Direita.

Hoje, o eleitor comum apenas está preocupado com os problemas que o assomam e preocupam no quotidiano. E tanto lhe faz que a solução resida num lado como noutro – para além de outros que, depois de cinquenta anos a votar sempre nos mesmos e as dificuldades básicas se manterem, como exemplo, a habitação, o ensino, a saúde e a deterioração dos serviços públicos, decidem romper com a tradição na agremiação que abraçaram desde novos.

Todos os partidos e candidatos, uns mais que outros, devem merecer o nosso respeito pela sua vontade de, com a nossa colaboração expressa no voto na urna, tornar Portugal um país melhor onde, jovens, cidadãos de meia-idade e idosos, se possa viver com dignidade, segurança e alguma felicidade, seja esta ciclónica, curta e faseada.

Nunca na minha longa vida aconselhei o voto seja em quem for – e detesto quem o faz ainda hoje com mensagens telefónica ou através das Redes Sociais. Por conseguinte, tal como em períodos eleitorais análogos, faço o apelo para que, amanhã, não deixe de exercer o seu direito/obrigação e, com desculpas esfarrapadas, “como estava a chover ou tive uma dor de barriga”, deixe de exercer a sua vontade, repito, a sua vontade, em quem deve vestir o fato da responsabilidade e governar o país nos próximos quatro anos.

Não deixe que, devido ao seu comodismo, outros decidam por si. Todos temos uma quota-parte de responsabilidade na “entronização” do próximo primeiro-ministro.

Vamos lá!


domingo, 11 de fevereiro de 2024

25 DE ABRIL, 50 ANOS DEPOIS

 

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)





Almerindo Oliveira, num daqueles dias em que tudo parece pardo e desvirtuado, sentiu-se nostálgico. Fosse pelo peso das suas 65 primaveras, e prestes a entrar na reforma, sem penalização. Fosse pela maldita barriga que, mesmo comendo pouco, teimava em não abater. Fosse pela enorme clareira que dividia a sua cabeça num campo de aviação para animais voadores e duas margens densas para nidificar a caspa, a verdade é que as constantes manifestações de classes profissionais ocorridas no último ano, tem-no deixado apreensivo.

Reivindica-se trabalhar menos horas e auferir maior ordenado; pede-se que o Governo acabe com o IMI, Imposto Municipal sobre Imóveis, e Imposto de Selo. Em contrapartida, que se construa mais largos milhares de habitações sociais, e passe a ser o pai espiritual de milhões de filhos de pai incógnito; reclama-se o aumento desenfreado para os aposentados com reformas baixas– mesmo para quem não descontou. Muitos contribuintes, jovens e menos novos, viram descer até ao gratuito o custo dos passes sociais e descidas nos escalões de IRS – mas é pouco e querem muito mais, como, exemplo, a gratuitidade de propinas universitárias. Requer-se a baixa de IVA para todos sectores da actividade económica.

O Serviço Nacional de Saúde (SNS), depois de classificado como excelente, bestial, durante a pandemia em 2020/2021/2022, de repente, num virar de página, como se uma nova pandemia social maléfica se instalasse, as denunciadas falta de médicos e filas para marcar uma consulta passam a constituir abertura de telejornais diariamente. Os professores, mesmo com a razão que lhes assiste, liderados – ou instrumentalizados - por vários sindicatos, contribuem para o caos. Com os tribunais atulhados de processos em atraso vergonhoso, os oficiais de justiça fazem greve a exigirem novos aumentos.

Com um Presidente da República mais interessado em concentrar o olhar nos índices de popularidade e o Ministério Público acutilante e actuante, transformado em Deus omnipresente e vingador, o Governo, com casos suspeitos e outros insuspeitos, caiu nas suas malhas e o Primeiro-ministro, António Costa, de um pedestal de estrela brilhante, caiu, resignou e passou a gestor de um executivo em coma de apagamento.

Alegadamente, assente num erro discriminatório no aumento de uma ramificação policial pelo Conselho de Ministros, os restantes responsáveis pelos vários ramos de segurança, PSP, GNR, Guardas Prisionais e Agentes da Polícia Municipal, mesmo sabendo que o Governo, em modos limitados de Gestão, não pode assumir compromissos para o futuro que onerem o país, fazem uso de baixas médicas fraudulentas para faltar a compromissos inadiáveis e tomam a rua como centro de anarquia, lançam o medo e a insegurança. Numa mimética comprometedora, os Bombeiros Sapadores entram no cortejo reivindicativo dos subsídios de risco.

Os agricultores, depois de décadas de exploração pelo grande comércio nacional e deixados pisar por normas concorrenciais ultrajantes exaradas pela Comunidade Europeia, perante o ruído devastador dos rurais franceses, decidem acordar agora, precisamente, quando o Governo pouco pode fazer.

Em casa onde não há pão, todos ralham e nenhum tem razão.

No próximo 10 de Março, perante 8 candidatos a primeiro-ministro sem cadastro, sem bússola ideológica onde o que conta é o assédio eleitoral sem limites, e sem provas dadas que garantam confiança governativa, vamos ter eleições legislativas.

Como se de um “complot” se tratasse, um plano cúmplice maquiavélico a conduzir em direcção à tragédia, parece tudo muito estranho.

A trabalhar desde criança, Almerindo, filho de pais humildes, não pode estudar em tempo útil, mas, mesmo assim, apanhando o comboio das letras de noite e trabalhando durante o dia, tirou o curso de TOC, Técnico Oficial de Contas. Subindo a pulso no escalão social, conseguiu entrar nos quadros da função pública e tornar-se “manga de alpaca”.

Desde que se lembra e até hoje, sempre teve dois empregos, um a servir o patrão Estado até meio da tarde e o restante, até altas horas, a fazer contabilidade em pequenas e médias empresas. O sacrifício familiar foi uma constante sem precedentes em toda a sua vida de marido, pai e avô.

Desde a modesta casa até ao mais que rodado velhinho Fiat Punto, de 1984, tudo fora adquirido a prestações. Numa graça sem limites, no meio de uma gargalhada, diz que a sua maior alegria é a liquidação da última prestação.

Como se numa catarse, uma libertação de sentimentos ou emoções reprimidas, tivesse necessidade de se embrenhar no passado distante, tão longe, por se esfumar nas trevas da memória, e tão perto, por o tempo, marcado a ferros e parecer que foi ontem, passar a correr.

50 anos depois de 1974, aceita sem rebuço que a vida quotidiana dos portugueses melhorou muito. Mas nunca chegará ao ponto de ser perfeita.

Contudo, não podemos esquecer que o Estado Social não dá nada sem que antecipadamente tenha recebido. Ou seja, numa justeza equilibrada, é um distribuidor que, com divisão coerente evita uma discrepância social entre os que mais têm e os menos bafejados pela sorte.

Embora compreenda que o dissenso social é o motor do desenvolvimento, Almerindo, perante a sua longa experiência de vida, trabalhosa e difícil, custa-lhe entender tanta exigência ao Estado. Se todos queremos legitimamente auspiciar uma vida melhor, naturalmente, devemos ser serventes do Estado Social.