sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

EDITORIAL: O COMÉRCIO DE RUA EM GUERRA (2)

(Foto de Márcio Ramos)




Estamos em Dezembro de 2017. Em Coimbra, alguns comerciantes com estabelecimento na Baixa, insatisfeitos com o rumo que a actividade está a tomar, decidiram realizar uma manifestação em frente à Câmara Municipal de Coimbra. É bom lembrar que, resultado de um desgaste continuado e sem o apoio do consumidor que lhe deixou de ser fiel, o exército mercantil, outrora respeitado pela sua pujança económica e respeitabilidade de elite social, está hoje desorganizado, sem meios, sem generais, e, no geral, transformado num corpo de mercenários que, visando somente o “salve-se quem puder”, sem valores e princípios que deveriam nortear a existência humana, apenas procuram a sobrevivência. Fruto de medidas simplex em que qualquer um, sem bases de credibilidade, pode ser vendedor profissional, escasseia a moral e a ética e sobram sentimentos manhosos e maldosos para os vizinhos do lado, que estão na mesma situação de vulnerabilidade. Como é normal em todas as guerras, vêm ao de cima o fel, o pior que os humanos transportam no fundo de si mesmo.
O comércio de rua, dito tradicional ou de proximidade, caiu no meio de dois dramas. Por um lado da fatalidade, pela iliteracia, pela ignorância disfuncional, pelo desinteresse em conhecer as leis que regem o sector, pelo comodismo endémico de olhar apenas para o seu umbigo espelhado na incapacidade em se associar, o comerciante médio, individualmente, sentindo-se perdido e desorientado, não sabe o que reivindicar à classe política para regenerar os centros históricos. Para além de apoplético, irritado com tudo e todos e recorrendo a fármacos para aguentar o stresse, sabe apenas, pressente, que está a percorrer um caminho que lhe foi aberto deliberadamente para o conduzir a um fim pré-anunciado: a miséria. Impotente, sem armas para lutar, sem apoio institucional, quer dos consumidores, que, viciados em saldos e promoções, apenas visam o proveito imediato, quer dos governantes, que, pela sua impreparação para estadistas, passam como folha seca caída no Outono, sente-se um David a digladiar contra um Golias. O desespero invadiu o velho lobo do comerciar.
No outro lado da tragédia está uma classe política pouco interessada em resolver os problemas de desertificação acelerada de cidades, vilas e aldeias. Desconhecendo completamente o que se passa no interior de um estabelecimento comercial e o estado apático e de debilidade em que se encontra a classe mercantil, que constitui o motor de revivificação dos lugares habitados, assobia para o lado o Vira do Minho. Sem querer saber da desventura dos homens e mulheres da compra e venda, aproveitando-se da fragilidade crescente, esta franja de políticos emergentes que temos e elegemos nas últimas décadas, locais e nacionais, é oportunista e apenas se lembra do comerciante em altura de eleições, que sem escrúpulos usa e abusa de promessas que não tenciona cumprir. Insensível, inconsciente, olhando para os pequenos mercadores como um grupo excedentário e filhos bastardos de um tempo que passou, que, por se apresentar insolvente, não faz falta ao futuro, perdendo a obrigação de zelar pela obrigatória regulação do Estado no equilíbrio de uma equidade social, sabem que a solução para a aplicação de justiça passa por si. Prescientes, sabem bem que só a política, enquanto magistério mediador de interesses negociados, harmonizados e bem distribuídos colectivamente, constitui a tábua de salvação de um destino que se apresenta assombrado e que os vindouros vão pagar caro. A sua ignorância tendenciosa é simplesmente confrangedora e de bradar aos céus.

UM EXORCISMO PRECISA-SE

Embora a dispersão seja a minha praia, o que interessa verdadeiramente aqui é saber que factores, sócio-económicos e políticos, contribuíram para gerar este descontentamento. No anterior texto que escrevi sobre este tema e com o título “O comércio de rua em guerra (1)”, dentro da minha natural ignorância, tentei elencar as externalidades, efeitos prejudiciais mais importantes que, vindos de fora, concorreram para afundar o comércio de rua. 
Nesta crónica, agora, sempre a divergir, tento mostrar as fragilidades que vieram de dentro. De exemplo em exemplo, fui mostrando que a elevada quantidade de lojas encerradas e com os andares superiores também vazios foi uma consequência de um tempo e não um modelo estudado para ser efeito. A razão para acontecer assim foi o facto de, nas décadas de 1970, 80 e 90 os espaços na Baixa serem excessivamente caros -até um pequeno armazém arrendado era onerado com trespasse. O caminho escolhido, mais fácil porque mais barato, foi ocupar verticalmente todo o edifício. No rés-do-chão estava a loja e por cima o armazém de apoio ao negócio. Como nunca sofreram obras de conservação, por não ser obrigatoriamente necessário, encontravam-se muito degradados quando foram apanhados pelo ciclone da crise. Este “desleixo” estendia-se ao prédio todo acima do nível dos olhos. Só o estabelecimento é que tinha de estar bonito e atractivo para o cliente entrar. Enquanto o ponto de venda, no rés-do-chão, funcionou com eficiência, gerando lucro e riqueza para o dono, o problema dos pisos superiores nunca se colocou. A dificuldade, para alguns comerciantes -e para a Baixa- começou quando o motor principal, a loja, começou a falhar. Para o negociante-proprietário, com os andares por cima dos estabelecimentos impróprios para arrendar e sem dinheiro para melhorias imediatas, sem o planear com antecedência, acabaram por ser um peso-morto, sem gerar riqueza e sem utilidade, que, sem apelo nem agravo, arrastou muitos deles para a insolvência.
Para a Baixa, juntando o facto de haver vários prédios, com várias lojas, pertença do mesmo insolvente, o problema foi sempre a triplicar e, estando à espera de decisão judicial, pouco fácil de resolver no imediato.

LOJA SAGRADA QUE HÁ-DE ACOMPANHAR ATÉ À TUMBA

Na actualidade assistimos a dois tipos de comportamento. De um lado está o ex-comerciante mais velho. Uns, poucos, adquiriram as suas próprias instalações comerciais e, quando atravessaram anos dourados, souberam apostar no imobiliário. Hoje vive de rendas. Curiosamente não tem contemplações por quem vem de novo.
Por outro, está um mercador que outrora viveu muito bem e hoje, devido a políticas continuadas de empobrecimento e com uma fé cega no amanhã, atravessa sérias dificuldades financeiras. Para permanecer sem descolar, conta muito o facto de, desde criança, sempre ter passado a sua vida no comércio. Apesar de ter noção que a tempestade que atravessa pode conduzi-lo à insolvência, custa a desligar-se e quer acabar os seus dias agarrado ao balcão. Neste grupo de fragilizados estão os novos comerciantes que, pela facilidade de ser patrão de si mesmo e com uma enorme ilusão de que para mudar as coisas vale somente a sua vontade, sem estrutura de apoio financeiro na rectaguarda, apostaram cegamente em serem empresários. O problema é que as margens de comercialização nas poucas vendas estão a conduzir todos à descapitalização e no final à falência. Sem meios para repor stokes, sentem-se como nómada sem água a atravessar o deserto. Com custos fixos sempre aumentar, estão prisioneiros de um sistema que dificilmente libertará as suas grilhetas.

SANTO ONOFRE ME VALHA NESTA AFLIÇÃO

É este pequeno empresário que suporta o IVA a 23 por cento sem o poder cobrar ao cliente por impossibilidade que lhe será fatal. Perante as vendas agressivas das grandes áreas, ele sabe que só consegue vender se pouco ganhar ou nada. É este pequeno comerciante que, para não aumentar os seus custos, se vê obrigado, à noite, a desligar a electricidade que ilumina a sua montra. É este pequeno mercador que num consumo de água de 5 euros vê ser-lhe apresentada uma conta de 15, entre taxas e alcavalas. É este pequeno balconista profissional que, sem poder fugir, tem de pagar mais de 150 euros de TSU. É este pequeno empreendedor que, se não liquidar o IVA dentro do prazo, vê ser-lhe aplicado um juro de 30 por cento -o governo de Passos Coelho passou de 20 para 30- e mais uma coima. Ou seja, se quem não paga por não poder, vê ser-lhe aumentado desmesuradamente a dívida. É este pequeno negociante que, no seu dia-a-dia, se vê atrofiado por todos os lados. Como se o que se enumera fosse pouco, agora, até por parte dos fornecedores, para fazer o fornecimento de bens, se estabelece um plafond, um teto, mínimo de compras para entrega -em muitos casos de 500 euros. É aquele negociante sofredor, com tão poucos a dar valor à sua entrega e à sua contribuição para o desenvolvimento colectivo, que num esforço titânico, contando os dias para o fim-do-mês, luta para sobreviver.
O Estado, a bem de uma equidade nacional, não pode continuar a fechar os olhos ao extermínio do comércio tradicional.


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