sábado, 6 de agosto de 2016

EDITORIAL: "O MEU SONHO É TER UMA LOJINHA"





Começo com uma ressalva: já sou velho. Talvez mais velho do que pareço. Embora faça tudo para parecer modernaço, jovial e mais novo, sei que, de facto, sou velho. Não sou velho em função da idade -estou à beira dos sessenta-, mas sim pela intensidade como, na forma, vivi todos estes anos. Faço parte de uma geração de portugueses que começou a desbravar a vida muito cedo. Pela conjuntura do tempo, fui criança quando ainda deveria ser infante, fui homem quando ainda deveria ser adolescente, fui responsável, casando e sendo pai de filhos, quando ainda deveria andar a marear o caneco e a beijar as cachopas. Talvez este adiantado calcorrear nas fases de crescimento, estando sempre à frente, explique porque, intelectualmente, sou agora mais velho do que pareço. E “ser velho” é o quê? Ser derrotista, pessimista, um negativista militante? É isto, o mesmo que Camões simbolizava no “Velho do Restelo”, dos Lusíadas? Não senhor! Nada disso! Ser velho é, pelo caminho percorrido, pela experiência empírica, ser avisado, prudente, desconfiado em quantidade que baste. Não um irritante descrente que não confia em nada nem ninguém. Não é isso. É, perante uma boa-nova, uma notícia, pesando os prós e contras, conseguir antever imediatamente o reverso da medida. Ser velho é, pelas pedras pisadas e pelas mazelas marcadas na alma, passar a ser um optimista contido, um realista eloquente. No fundo, é ser um céptico espiritual, dividido entre o que parece ser e o que será no futuro, que através da sensibilidade adquirida tenta precaver-se, defendendo-se, e não escorregar facilmente na casca da banana. Em resumo, ser velho não significa que se duvida para existir, mas duvida-se para persistir, resistir, fazendo da incerteza um campo vasto de análise complexa, um filtro que em processo de eliminação conduz à verdade absoluta -de que falava Decarte na “Dúvida Metódica”. Para que, em caso de aparência desfeita, na hora da descoberta da mentira o impacto seja menor e cause o menor dano.
Iniciei este texto com este longo prólogo, em boa verdade, para me justificar. Trabalho há cerca de meio século -dezasseis como empregado e 34 por conta própria-, e escrevo há décadas sobre o comércio, enquanto actividade profissional, e também sobre o que se passa à minha volta, na Baixa da cidade. É óbvio que estas duas premissas não me dão ares de um especialista, nem coisa que o valha. Talvez no limite faça de mim um especulador, um observador, isto sim.
Volta e meia sou confrontado com pedidos de opinião sobre o que penso sobre a possibilidade de se abrir um determinado negócio. Normalmente são pessoas que, vindas de outras profissões, como professor, advogado e outras áreas profissionais, não têm qualquer experiência comercial. Ou porque se aposentaram, ou porque fizeram um bom negócio predial e querem investir o correspondente -já que os depósitos bancários não têm rentabilidade. Há uma frase comum a todos: “o meu sonho foi sempre ter uma lojinha!
Fico sempre embasbacado na resposta. Ou porque sinto a dificuldade de lhes refrear o ânimo, vindo de alguém que está profundamente cego e não mede as consequências, ou porque, se os desmotivar, sejam levados a pensar que os quero arredar do seu propósito. Sinto imensa contrariedade em transmitir-lhe que, nos nossos dias, abrir um negócio pode ser o pior passo na vida de qualquer um. O sonho pode facilmente transformar-se num pesadelo infernal. Já assisti a vários desastres nos últimos anos aqui na Baixa, sobretudo jovens -estes atiram-se de cabeça e nunca pedem opinião. Já escrevi sobre a “obrigação” prévia de qualquer um candidato que pretenda investir consultar, por exemplo, o Gabinete de Apoio ao Investidor, da Câmara Municipal de Coimbra.

O COMÉRCIO E O MITO

Até ao virar do milénio, 1999/2000, tinha-se ideia que, sem grandes conhecimentos técnicos, qualquer pessoa que quisesse enriquecer facilmente só precisava abrir um espaço comercial. Passou-se o mesmo na construção civil, mas aqui, neste metier, já obrigava a outros saberes mínimos -e com a derrocada do crédito barato este mito desapareceu. Hoje, comummente, aceita-se que não é uma boa decisão construir casas. Reconstruir, se o Governo levar a medida anunciada em frente, já poderá ser.
Como a indústria está em coma, a construção civil está em banho-maria, a hotelaria passou a ser sazonal, o comércio, exceptuando as grandes superfícies, sofre de raquitismo, os serviços, em prestação, são muito mal pagos, a agricultura é a falência precoce que se sabe, praticamente, poucos sectores continuam a gerar emprego. Então, numa espécie de Nossa Senhora dos Aflitos que acolhe todas as rogações, o que sobra é o silêncio da indecisão. De pouco mais, o que resta é criar a sua própria ocupação no comércio -os governos, anteriores e actual, dão uma mãozinha criando fortes incentivos no investimento jovem -com um único objectivo: baixar a taxa de desemprego a qualquer custo, nem que seja pela desgraça alheia. Os resultados, mesmo na destruição como meta, são sempre positivos para a máquina fiscal. Enquanto durar é sempre a facturar para o fisco. E quando acabar em insolvência o Estado, no caso a Segurança Social, não responde com subsídio de sobrevivência para quem perdeu tudo.
Repare-se que há muitos anos deixou de se designar “comerciante”, “industrial”. Pomposamente, passou a ser “empresário”. Esta mudança de estatuto não foi ao acaso. A máquina da propaganda dos governos sabem que tocar na vaidade humana é chegar-lhes à alma.
Ter uma empresa, um negócio, passou a ser o sonho existencial de qualquer um. Por isto mesmo, o mito do comércio continua e está para durar.

MAS TANTAS FALÊNCIAS? PORQUÊ?

Numa espécie de bê-à-bá de merceeiro, sabe-se que quando a oferta suplanta a procura o preço dos produtos desce, desce, até à “red line”, até à impossibilidade de poder manter o bem no mercado assegurando os custos de produção. Quando isto acontece, a solução é deslocalizar as empresas para outro país de mão-de-obra e obrigações, fiscais e regalias sociais, baratas e quase inexistentes.
No comércio passa-se o mesmo fenómeno. Como a procura continua a cair desde 2000, a solução é deixar cair os preços até à hecatombe final. Os que mais conseguirem adiar o tombo, naturalmente, vão adiando a queda -não é por acaso que paulatinamente assistimos a dois episódios marcantes na economia.
O primeiro, são as constantes promoções e baixa de preços nos shopping's. E porquê? Porque, para oferecerem o mais baixo, praticam uma oferta predadora internacional -correndo o mundo em busca do menor custo de produção- e destruidora da economia local. Claro que o que se publicita é que, contrariamente, incentivam a indústria nacional. A mais infame das mentiras condescendentes. Em abono da verdade, saliento que nem condeno por aí além. Se a lei permite, as grandes áreas limitam-se a usufruir da prerrogativa -se eu estivesse no lugar de um destes grandes administradores faria igual. O problema está nas directivas comunitárias, europeias, que, sabem bem, em nome de uma pseudo-transparência na concorrência entre estados-membros, estão a defender os países com maior possibilidade de produção intensiva, com baixos custos de produção através de subsídios estatais concedidos, e índice de exportação. E também para, através da Globalização, serem defendidos os interesses da Organização Mundial do Comércio.
O segundo episódio, na última década e meia assistimos, impávidos e serenos, à desbaratada Lei dos Saldos e Promoções, promulgadas pelos sucessivos governos nacionais. Não é preciso ser economista para ver que havendo constantemente promoções de produtos, sejam alimentares, sejam de vestuário, calçado, ou electrodomésticos, está-se, por um lado, a desviar os consumidores intencionalmente, servindo a lei como instrumento, por outro, está-se a concorrer para destruir os mais pequenos, como é evidente, os mais vulneráveis e débeis.

MAS A PEQUENA LOJA NÃO TÊM CUSTOS MENORES?

Repetindo, o mito do comércio como sendo Midas, em que tudo se transformava em ouro, persiste e gerando outros sub-mitos. Um deles é que a pequena loja de bairro tem custos associados de manutenção menores que as grandes áreas. Puro engano. Um pequeno espaço comercial tem custos de preservação brutais e incomportáveis para o estado actual em que se encontra a macro-economia. Por uma questão de não maçar, não vou nomeá-los. O que posso escrever é que um pequeno negócio é um micro-cosmo de ventos contrários. Enquanto anualmente sobem os custos, desde impostos e taxas, electricidade, água, seguros, alarmes, comunicações, rendas, os proveitos vão diminuindo pela continuada quebra da procura. Para piorar a questão, os obrigatórios serviços prestados às empresas, enquanto custos necessários, estão constantemente a deteriorar-se. Tudo passou a ser feito através de computador. Em caso de anomalia, as respostas são feitas por gravação.
Hoje, um lojista está transformado num actor mal pago num cenário de um teatro trágico. Concorre para a animação da cidade mas não é reconhecido como tal. Pelo contrário, pelo poder político -partidário, autárquico e governamental-, é desprezado exactamente pelas ideias feitas, pelo mito, de que sendo comerciante, logo é um aproveitador sem escrúpulos, é um grande capitalista. Os partidos identificados com a Direita, disfarçando mas apregoando a livre iniciativa privada e desintervenção do Estado na Economia, em nome de uma imparcialidade que não se sabe onde começa nem acaba, foram até agora os maiores inimigos dos criadores de riqueza. Os partidos ditos de Esquerda, sem disfarce, pelo histórico recalcamento marxista, já nem procuram a simulação. De uns e outros não se pode esperar nada. Ou, se calhar, que a reforma chegue depressa para mandar tudo às urtigas- para não dizer um palavrão.
Não é de admirar que no conjunto, entre jovens e aposentados sonhadores, uns e outros, continuem a sonhar e, sobretudo, a apontar culpas aos comerciantes estabelecidos pelo falhanço dos centros históricos, enquanto centros de comércio.
Venham para cá, invistam, para saber como o comércio morde!

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