terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

QUADROS VISTOS DO MEU BANCO DE AUTOCARRO






Durante cerca de quatro décadas fui amante do meu carro. Por volta de 1977, comecei por ter um mini –usado que me custou 25 contos, vinte e cinco mil escudos, hoje 125 euros. Outros minis usados e de outras marcas se seguiram dentro do mesmo preço e nunca excedendo os 50 contos. Em 1990 tive o privilégio de sentir o cheiro a novo de uma carrinha utilitária a estrear –é um odor inconfundível e marcante. É excepcional. Nunca mais passa da nossa memória.
Sempre a subir na escala do bem-estar, em 2000 comprei uma carrinha topo de gama –como quem diz com um custo acima da média. Enquanto a desgraçada viatura aguentou e esteve na minha posse fui afortunado com ela. Até que um dia, como um sonho que se apaga, partiu e com ela a certeza de que nunca mais iria ter uma igual. Desde que me deixou comecei a interiorizar que só nos faz falta o que temos, e mesmo com menos poderemos ser felizes. Apesar de ainda ter uma carrinha ronceira para questões de trabalho, comecei a virar-me para os transportes públicos. Como é óbvio, numa substituição inevitável, perdemos umas coisas para ganhar outras. Então, paulatinamente, fui conquistando uma liberdade que nunca tivera e desconhecia. Sobretudo em viagens de longo curso, tenho possibilidade de pensar, posso ler o meu jornal descansado, posso dormir, ou fazer algo que gosto muito: apreciar o comportamento das pessoas que viajam ao meu lado. Imagino que há muitas mulheres sozinhas por opção e o gato passou a ocupar o lugar do homem. Quando a lei obriga a respeitar o mais fraco é porque a sociedade está doente. Estamos no tempo da futilidade. Há muitos terramotos invisíveis. Somos um país dividido entre o religioso e o profano, numa justiça que tarda, e a várias velocidades.
Já vi um pouco de tudo e escrevi em postal ilustrado. Sou assim, temos pena. Já notei o quanto custa a caçança na Transdev de Coimbra. Já apreciei um gesto solidário de um motorista e o seu contrário. Já constatei que praticamente a leitura em papel dentro de um autocarro desapareceu. Perante a passividade de todos, já vi dar milho aos pombos dentro da gare de Coimbra e sem um reparo.
Já assisti a um diálogo quase impossível de reproduzir entre um casal de meia-idade, em que o homem, pela força do (mau) hábito e num quadro à portuguesa tão nosso conhecido de outrora -e novamente na actualidade-, por tudo e por nada, oferecia pancada à mulher em cada frase saída da sua boca. Era uma adjectivação de tratamento humano ao contrário. Em vez dele dizer “está bem, querida”, vociferava e retorquia: “tu és uma besta! Está mas é calada antes que leves um sopapo!”
Em mais uma viagem em direcção ao interior, há dias assisti a mais um quadro cada vez mais recorrente e que, sem oposição, invade a nossa esfera privada. Ainda o autocarro da Transdev não tinha o motor ligado e, no seu interior, já uma mulher de meia-idade falava ao telemóvel. Falava não é bem, gritava porque todos os passageiros gramavam a sua conversa. Durante mais de quarenta e cinco minutos, e num percurso maior que vinte quilómetros, a mulher debitou toda a sua vida. Só faltou mesmo referir as suas contas bancárias e as quecas que deu na semana anterior.
Com a viatura parcialmente cheia, notava-se que os passageiros faziam um esforço para não ouvir mas o metralhar era tão intenso que impedia, por exemplo, alguns de se concentrarem na leitura dos tablet’s e computadores portáteis. Escrevendo pelo que senti, tive de interromper a leitura do jornal porque, perante o ribombar da voz da mulher, não me conseguia reconcentrar. Aquilo começou a irritar-me profundamente. Comecei a imaginar um plano para lhe mostrar o ridículo a que se estava expor. E se eu ficcionasse uma conversa ao telemóvel e, como se falasse com alguém, retratasse o que se passava? Foi então que, como se a dama adivinhasse os meus pensamentos, subitamente a conversa acabou –presumo que por falta de bateria ou porque caísse a chamada. Como sou um grande cromo e nunca resisto a intervir, em face do silêncio sepulcral que caiu no espaço ambulante, atirei: já acabou? Não pode ser! Quero mais! Não me pode deixar assim! Não aguento o silêncio!
Como picada por um alfinete, a mulher içou-se na cadeira e, como raio de luz, percorreu todo o seu espaço visual. Levantei o braço e disse: fui eu!
Mas um azar nunca anda sozinho. Passados dez minutos tocou o meu telemóvel e eu, contrafeito, atendi ainda que sumariamente para não dar nas vistas e fazer o mesmo. A mulher, mais uma vez, soergueu-se para ver se era mesmo eu que falava ao telefone. Aposto que se sentiu vingada.

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