terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

BAIXA: OS VENDEDORES DA ESPERANÇA PERDIDA





Ontem de manhã eu ia beber um café. Seriam cerca de 10h00 desta segunda-feira, batidas há pouco na torre sineira da igreja de São Bartolomeu, quando, na Praça do Comércio, passei pela dona Dores. Estava a senhora a começar a montar a sua “tenda” de venda de artesanato ao lado da vetusta catedral de São Tiago. Maria das Dores Alyfarag, viúva de Moamed, um comerciante egípcio muito respeitado na Baixa e falecido há mais de uma década, é uma senhora muito querida por todos nós, que a conhecemos há mais de trinta anos a vender artesanato na zona da praça velha. Para além de comerciar para tentar sobreviver é uma pessoa boa. Tem um armazém nas proximidades e já por várias vezes, gratuitamente, como porto de abrigo, deu guarida a alguns sem-tecto que demandam esta enseada –ela não sabe que eu sei, mas eu sei. Como é costume, são os mais necessitados os sempre-prontos a ajudar o próximo. Como qualquer comerciante a desafiar a sua sorte, em especulação, estaria a ajeitar a imagem de Santo António, mais que certo virada de costas para o comprador, e a pedir ao Criador que fosse generoso na semana que agora começava e lhe concedesse a graça de um bom dia de negócio. Cumprimentei-a e avancei em passo compassado em direção ao café. Naqueles gestos que a racionalidade não explica -fosse porque nos últimos dias não a tivesse visto, fosse por a ter encontrado com um ar abatido-, voltei atrás e perguntei se estava bem. “Estou mal, senhor Luís”, respondeu. “Desde o final de ano, há um mês, que não faço negócio nenhum. O último dinheiro que fiz aqui foram 8 euros. Tenho andado a fazer limpezas por conta de uma empresa que me paga menos que 3 euros por hora mas é certo, sabe? Tenho despesas certas. Pago de renda de casa quase trezentos euros, mais a renda do armazém, mais água e luz. Já deve dar para o senhor compreender as minhas preocupações.”

O VIZINHO METE-SE

Ao lado de dona Dores, também a montar a sua banca, estava o Jorge Camilo Medina. Ao ouvir os lamentos da sua vizinha não hesitou em envolver-se na conversa. “Estamos muito mal, senhor Luís. Estamos para aqui desprezados há décadas sem que a Câmara Municipal de Coimbra queira saber de nós. Prometem, prometem mas não cumprem. Sem quaisquer condições, todos os dias é uma trabalheira para montar a barraca. Às 17h00, temos de arrumar por falta de luz. Na minha qualidade de cidadão, sinto-me discriminado. Há vários anos que a Câmara Municipal nos abandonou para aqui como coisas sem prestabilidade. Dão-nos uma licença de três meses durante um ano e não querem saber mais de nós. Imagina a insegurança que isto nos causa? Eu sou artesão. Tenho uma carta reconhecida internacionalmente que diz: “os governos comprometem-se a dignificar e a promover a arte do artesão”.
Atalha Dores: “você lembra-se bem, chegámos a ser aqui sete vendedores. Ali estava o Anildo. Agora já só restamos três. Ali o Falloup Diop já nem monta a traquitana” –e aponta em frente onde se vê uma mesa com artesanato e atrás uma mulher com o queixo apoiado na mão em concha. Não é preciso ser presciente para adivinhar que está triste e pensativa com a sorte que lhe calhou em destino. O Falloup é um comerciante senegalês que, pelo seu trato esmerado e educado, já faz parte do roteiro da Baixa. Já várias vezes lhe pedi para escrever a sua história. Com argumentos vários vai adiando. Sei que conjuntamente com a esposa são um casal esforçadíssimo. No Verão chega ali mal a manhã estende a luz e só por volta das 23h00 recolhe os seus haveres. Nenhum de nós, creio, faz uma pequena ideia de quanto trabalho esforçado despende este nosso colega para dar uma vida digna aos seus quatro filhos.

O QUISOQUE QUE NUNCA MAIS VEM E CONVERSA FIADA

Em 28 de Dezembro de 2012, na página 8, o Diário as Beiras publicava, em título, o seguinte: “Quiosques para venda na Baixa”. Estendendo a notícia, “A Câmara de Coimbra vai instalar em Janeiro cinco quiosques para a venda ambulante na Baixa. A sua colocação deveria ter ocorrido até 15 de Dezembro na Praça do Comércio, mas o presidente, João Paulo Barbosa de Melo, recordou que o município optou por atrasar a sua colocação pelo facto de, naquele período, os comerciantes terem oportunidade de fazer mais negócio. Para já, e de acordo com o presidente, os primeiros quiosques vão ser colocados no Largo da Maracha. “ Se a experiência correr bem, será replicada para outros locais da cidade”, disse. Refira-se que a questão foi levantada pelo presidente da Junta de São Bartolomeu, Carlos Clemente, que lamentou o facto da Câmara ter emitido um ofício “sem eficácia nenhuma”.

CLEMENTE QUE A CÂMARA TEM

Nesta página 8 do Diário as Beiras –de 28-12-2012- para além do tema que trago à colação há outro e a imbricar na mesma pessoa e que foco para mostrar que a equidade e o respeito pelo cidadão não passa pela mesma balança. No caso, trata-se de uma fotografia de Carlos Clemente –nessa altura, eleito pelo Partido Socialista (PS) e presidente da ainda Junta de Freguesia de São Bartolomeu e dirigente da secção de futsal da Associação Académica de Coimbra- em que ostenta uma camisola com o logotipo da Câmara Municipal de Coimbra. No desenvolvimento do texto pode ler-se que “A Câmara de Coimbra vai honrar em 2013 o compromisso assumido em Junho deste ano com o futsal da Académica. Barbosa de Melo, presidente da câmara, deixou esta garantia na Assembleia Municipal de Coimbra, depois do presidente da Junta de São Bartolomeu e dirigente da Briosa, Carlos Clemente, ter questionado o presidente relativamente ao prometido subsídio de 33 mil euros que ainda não foi pago. (…) Carlos Clemente voltou a subir ao púlpito, apesar de saber das condições impostas pelo Governo, para lamentar “a falta de palavra” dada em junho passado, esperando que a verba chegue nos dois primeiros meses do próximo ano.”
A primeira interrogação que faço é: como não foi contestada, presume-se que esta subvenção foi liquidada. Porque não cumpriu igualmente a autarquia com os vendedores ambulantes? A resposta é fácil: o futebol está primeiro e estes comerciantes, como munícipes de segunda, não contam para as preocupações dos executivos camarários.
A segunda pergunta é: ao apelar à palavra dada e exigindo o seu cumprimento, igualmente, porque não se empenhou depois Carlos Clemente na defesa da instalação dos quiosques para tornar a vida mais facilitada a estas pessoas da Praça do Comércio e do Largo da Maracha? A resposta é… os ventos mudaram e levaram consigo as promessas anteriormente feitas.

PALAVRAS LEVA-AS O VENTO

O anterior governo da coligação PSD/CDS (XIX governo Constitucional) herdou o compromisso com a Troika de, no âmbito da reorganização administrativa, reduzir o número de autarquias (308) e freguesias (4259) até Julho de 2012. Nos municípios não se mexeu mas diminui-se a soma das freguesias em 1165. Conhecida pela reforma do poder local de Relvas, num novo mapa autárquico, em 2012 foi aprovado na Assembleia da República o novo Regime Territorial Autárquico. Foram agregadas e passaram a 3094. A então Junta de Freguesia de São Bartolomeu passou a ser associada à Sé Nova, Santa Cruz e Almedina.
Em Setembro de 2013 realizaram-se eleições autárquicas e o PS, com Manuel Machado como cabeça de lista, ganhou a edilidade. Clemente, que não se podia candidatar à mesma junta por já ter cumprido mais de três mandatos, foi cabeça de lista, pelo PS, à União de Freguesias de Santa Clara e Castelo Viegas e perdeu para José Simão (PSD). Veio a ser eleito pelos seus pares presidente da Assembleia de Freguesia. Em Dezembro de 2013 Clemente foi nomeado adjunto por Manuel Machado. Como pardal numa gaiola, o outrora lutador, na actualidade, perdeu toda a sua força e transformou-se numa fera amansada, numa sombra do que foi.

A BAIXA FICA ÓRFÃ

Passando a arrogância, depois da imprensa local, nos últimos oito anos, através deste blogue, eu deveria ter sido a pessoa que mais escreveu sobre o desempenho de Carlos Clemente enquanto esteve à frente da então Junta de Freguesia de São Bartolomeu. Com uma personalidade muito vincada, controverso, sem nunca recusar a luta partidária e política, em que o protagonismo estava sempre presente, foi uma voz marcante e muito importante que, enquanto ocupou o cargo em representação dos fregueses, elevou as preocupações na Assembleia Municipal e ajudou a resolver muitos problemas na comunidade. Hoje, com o seu desaparecimento da cena política, esta parte da zona histórica está órfã. O que se passa aqui raramente se consegue fazer chegar à Praça 8 de Maio, que, como se sabe, está no coração desta zona velha. É por isso mesmo que concordo plenamente com a reavaliação da reforma administrativa anunciada, agora pelo ministro-adjunto Eduardo Cabrita. Alegadamente, com a agregação de muitas freguesias, para além de não se suprimirem custos, verifica-se que os cidadãos ficaram mais abandonados e perderam representatividade nas autarquias a que estavam adstritas.

O VÍRUS SNOB

Como se a minha péssima capacidade de analista político não chegasse, ainda me armo em investigador de maleitas. Já há uns anos que me debruço sobre um vírus que embora todos reconheçamos os sintomas não damos muita atenção. Pelo que observo, ataca fortemente os políticos. À medida que vão subindo na carreira vão gerando uma amnésia cada vez mais actuante. Quando atingem um lugar de relevo esquecem completamente os conhecidos, os amigos, as promessas e tudo o que defenderam e se bateram. Se passar na rua por um destes seu conhecido político e ele for agarrado a um telemóvel e não lhe ligar nenhuma, não estranhe, está atacado pela virose. Mas também não fique demasiadamente preocupado, os seus efeitos duram apenas quatro anos. Depois disso pode contar com o regresso à terra do seu (outra vez) conterrâneo. Na volta ainda leva uns beijinhos e abraços.









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