quarta-feira, 6 de maio de 2015

UM TERRAMOTO DE GRAU 9 NA ESCALA FAMILIAR




A vivenda, que há meia dúzia de meses teve muita vida no interior e no exterior, apresenta agora um aspecto amarelecido, doentio, como se perdesse toda a força que lhe dava ânimo e estivesse em coma profundo. No terreiro, outrora relvado e bem aparado, as ervas daninhas crescem a bom crescer a par da sebe a clamar por ser cortada. No terreno, duas palmeiras enormes, com alguns ramos secos, mostram o abatimento na dor que lhes carregam nos braços. Na varanda da frente uma bandeira nacional, descolorida e meia rasgada, retrata o estado desanimado e de angústia do conjunto da casa e da Nação e como, pelo simples bater de asas de um passarinho, tudo pode mudar num instante.
O portão de ferro de duas abas, que com um mero clique no comando manual dava acesso às garagens, jaz encostado num último abraço sem as barras e o motor automático. Ao lado, as capoeiras de aves poedeiras e de pombos, cujo chilrear era inconfundível na área em redor, não têm telhas como a figurar que um vendaval por ali passou e as levou ao encontro de um desencontro. Mais em baixo, o telheiro rústico, onde tantas festas familiares se realizaram, tem os barrotes meio curvados e o chão, com móveis esconjuntados a apelar ao abraçamento, cedeu perante tanta solidão. Mais ao lado, vários brinquedos em bom estado estão espalhados pelo cimentado e a indicar que os seus utilizadores partiram a toda a pressa.
Transpomos a porta de ingresso ao interior. Estamos na cozinha e somos embargados pelos cheiros a mofo e a azedo. Muitas louças no chão, embarriladas umas em cima das outras como se fossem lenha, mostram que foram despejadas sem o amor de quem as adquiriu com sacrifício e com suspiro de descanso na última prestação. Na parede ao lado um espaço vazio declara que ali, provavelmente, esteve um louceiro e que, por necessidades imediatas, partiu sem despedida anunciada. O frigorífico combinado, de congelador e frio, está de portas encerradas. Abrimos e somos inundados pelo odor a pútrido. Lá dentro, leite, sumos, ovos caseiros das galinhas das capoeiras do quintal estão fora de validade e, como em grito comum, parecem clamar: por favor, leva-nos para o lixo! Os móveis encastrados na parede estão de portas abertas com as louças e copos revolvidos a indiciar que só ficou dentro o que tinha menos valor. O fogão está com grandes olheiras junto aos bicos como a dizer que ali viveu um homem sozinho durante meses.
Atravessamos o corredor e penetramos no quarto de casal, onde tantas batalhas corporais foram travadas e os guinchos foram sustidos para que os pequenos, germinados naquele leito sagrado, não dessem pelo irradiar de prazer que se derramava em deleite daquele colchão. A cama desapareceu e agora resta, no seu lugar, um amontoado de roupas, umas em cima de outras, como se fizessem parte de uma orgia e sem levar em conta a idade de cada peça.
Entramos na sala principal. O LCD desapareceu sem rasto visível assim como um ou outro móvel e serviço da Vista Alegre mais vistoso e de maior importância.
Descemos à cave e somos borrifados pelo caos geral de todas as divisões. O chão está atapetado com artigos decorativos, com jogos de computador, com imensos papéis generalizados. Entramos no primeiro quarto de um dos infantes. O mobiliário juntamente com um televisor desapareceram. Não há espaço no chão para tantos brinquedos de todos os géneros e feitios. Também algumas fotografias da família, com rostos sorridentes, não pareciam adivinhar a tristeza que lhes haveria de calhar em sorte e estão espalhados ao deus dirá. Um ursinho amarelo de peluche parece fitar-nos com estupefacção como se procurasse resposta à turbulência que por ali passou. Montes de livros infantis, lápis de pintar, carrinhos e mais carrinhos parecem fazer a mesma interrogação. Somos invadidos pela sensação de que as crianças que ali conviveram teriam a mais em divertimentos e menos em carinho e amor –pelo menos por parte de um dos pais. Aqueles tantos instrumentos de recreio foram acima de tudo um remedeio, o tapar de um buraco negro existencial. Paredes meias com esta, outro compartimento, um quarto também, da mobília outrora existente ficou somente um roupeiro de portas abertas com roupas femininas e de criança e com a parte superior carregada de muitos mais brinquedos. Também o aparelho de tv voou para outras paragens. Noutro quarto mais à direita as vestimentas espalhadas por todo o lado parecem folhas secas espalhadas pelo chão outonal de um parque citadino.
No corredor que leva à saída, com muitos bens de menor valor no ladrilhado, é patente o vazio de móveis e outros apetrechos.

O QUE ACONTECEU?

Este é o cenário de uma das últimas batalhas campais de uma guerra que ainda está longe de terminar e que infelizmente passou a ser tão comum na sociedade portuguesa: violência doméstica, separação e partilha litigiosa de bens.
A mulher da casa, sob o peso de maus-tratos e pancada associada de muitos anos e recentemente com ameaças de morte, com protecção policial, foi obrigada a deixar tudo e a partir com os filhos para uma cidade distante e só com as roupas que lhes cobriam o corpo. Na casa que já foi lar doce lar ficou o homem, o companheiro e agora indiciado como presumível agressor. Até que o processo se desenrole, mais que certo, muita água vai correr na pequena ribeira que faz fronteira com aquela construção que a todos os intervenientes, marido, esposa e filhos, deixa más recordações.
Seguindo o aforismo de que se queres conhecer alguém faz-lhe uma guerra, no desaparecimento de tantas memórias físicas pertencentes a todos, este sumiço de bens materiais perpetrado pelo antigo chefe mas pouco, reconhecem que o homem, enquanto ser superior de bondade e caridade, é desprovido de sentimentos altruístas e não presta mesmo. Por que são alguns homens assim? Por que, mesmo no erro praticado, não elevam acima de tudo os momentos bons que todos passaram juntos? Depois de um amor vivido em partes de uma vida comum, porque se tornam inimigos figadais? Porque tem de ser assim?


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