sábado, 25 de abril de 2015

LEIA O DESPERTAR...




LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA 

Para além  do texto "O 25 DE ABRIL VISTO DA MINHA JANELA", deixo também as crónicas "O PINTOR EM BUSCA DE SI MESMO"; e "OS VELHOS DO ESQUECIMENTO"


O 25 DE ABRIL VISTO DA MINHA JANELA

Quando se anunciou em Coimbra que tinha havido uma revolução em Lisboa eu tinha 17 anos de idade e estava a trabalhar numa loja de comércio da Baixa. Até aí, desde os dez, eu laborara na hotelaria. Trocar o servir à mesa por ir atender ao balcão a vender trapos foi uma transferência extraordinária. Não pelo ordenado, já que, em comparação com um qualquer café, era menor. Nessa altura a vida comercial estava considerada num plano superior. Isto é, a atividade hoteleira era muito mais intensiva, com muito mais horas de labor e, embora já com um dia de folga semanal, trabalhava-se domingos e feriados. Por outro lado, servir num café era muito mais serventuário. Ali era notório o nós, os simples, e os outros, os donos do dinheiro. Estava-se obrigado a um exagerado exercício permanente de servilismo. Se bem que também houvesse classes distintas. Havia os simplórios como eu, que normalmente vinham da região do Luso e zona da Bairrada, que inicialmente eram pau para toda a colher e começavam como grumete, havia os chefes, de balcão, de cozinha e de mesa, e depois existia toda uma classe garbosa, vestida de calça preta, camisa branca e laço, casaco branco e nos pés um sapato preto impecavelmente engraxado. Ser empregado de mesa era o sonho de qualquer miúdo como eu, já que maioritariamente nesta arte se trabalhava à percentagem de 10 por cento sobre o total da caixa. Para além disso havia um costume arreigado de dar gorjeta ao funcionário.
Num período da nossa história em que dois terços da população portuguesa eram pobres –e estes se dividiam em remediados e pé-descalço-, entrar para o comércio, acima de tudo, foi o poder ser mais igual a qualquer um, já que comecei a vestir melhor, a ter, por exemplo, duas camisas, a não precisar de lavar a roupa durante a noite para vestir no dia seguinte, húmida e enxovalhada. Para além de estudar de noite, continuei a trabalhar aos fins de semana a servir casamentos –conheci um senhor de idade, o senhor Quintas, que me contratava praticamente todos os Domingos. Nunca lhe agradeci em vida a atenção que teve comigo. E assim continuei até casar com 20 anos e ir, a seguir, para o serviço militar, para Estremoz –a título de curiosidade, apanhava o comboio em Coimbra no Domingo à noite com 200 escudos no bolso (1 euro). A viagem ferroviária custava 75 escudos para cada lado. Então, para poupar, juntamente com o Jorge, a trabalhar na altura no Cruz Oculista, na Rua Adelino Veiga, e hoje estabelecido na Rua Corpo de Deus com o mesmo ramo, vínhamos à boleia no regresso. Ora poderia acontecer, como aconteceu tantas vezes durante as cerca de três centenas de quilómetros, sermos transportados num Mercedes como em cima de uma camioneta de caixa-aberta.
O tempo foi correndo e, tal como o meu amigo Jorge, trabalhando muito, muito, estabelecemo-nos por conta própria e fomos comprando o que nos fazia falta, o que era essencial para o bem-estar como habitação, e podermos proporcionar aos nossos filhos tudo o que não tivemos. Sem lhes exigir muito em troca, apenas pelo prazer de dar, oferecemos-lhes todas as ferramentas que poderiam concretizar os seus sonhos –nesta realização revíamo-nos. Éramos nós também quem estava ali. No dia em que a minha filha entrou para a Faculdade de Psicologia chorei como uma criança. Passado um tempo, como morava fora da cidade, comprei-lhe um carro para que ela pudesse estar mais à vontade nos transportes. Tal como o Jorge, as dívidas que assumimos cumprimos sempre. Somos herdeiros do compromisso, onde a palavra dada vale mais que toda a riqueza universal. Nunca fomos ao banco pedir dinheiro para ir para férias. Praticamente nunca viajámos para fora, e do mundo não conhecemos nada. O nosso lema era trabalhar afincadamente enquanto éramos novos para quando chegássemos às portas da velhice podermos usufruir do empenho hercúleo anteriormente desencadeado.
Passados quarenta e um anos depois do 25 de Abril de 1974, agora na pré-entrada de sermos sexagenários, o que está acontecer connosco? Estamos aflitos para conseguir aguentar o que temos e continuar a viver com dignidade. É como se agora, já sem esperança, estivéssemos a fazer o percurso descendente, contrário a quando começamos. É como se sentíssemos que não valeu a pena. Foi um esforço inglório. Para piorar, sinto um terrível sentimento de impotência, de nada poder fazer. Estou contente com o balanço? Não. Passados quarenta e um anos, é triste dizer, mas a sociedade portuguesa está demasiadamente igual a 1974. Duas partes são pobres e uma parte é demasiado rica. Não tenho gosto nenhum em fazer parte deste sistema viciado. Não gosto deste Portugal.


O PINTOR EM BUSCA DE SI MESMO

Foi em 2009, quando andou pela cidade, que o conheci. Fez várias exposições no desaparecido Salão Brazil. Como andorinha em busca de outra terra mais quente, desapareceu e nunca mais se ouviu falar do Pedro Freitas. Entrou há dias porta dentro a cumprimentar-me. Pelo aspeto andrajoso e mal cuidado, de barba hirsuta, cabelos longos e mãos inchadas, não o reconheci imediatamente nem sequer imaginei que há minha frente estava o grande pintor Pedro Freitas, filho do escultor Silva Freitas, com várias obras espalhadas pelo país e estrangeiro. Segundo me contou, nos últimos seis anos, esteve radicado na Figueira da Foz. Como barco atracado que precisa de se fazer ao mar, levantou ferro e veio procurar novos horizontes na cidade dos estudantes.
Se um dia destes o encontrar a pintar na rua, não se deixe levar pelo ar desalentado e de perdição que imana da sua imagem. Acredite, pelo seu talento e currículo, vale a pena adquirir-lhe uma pintura.


OS VELHOS DO ESQUECIMENTO

Conheço-a há cerca de vinte anos. Embora não pareça, anda agora pelo hall de entrada dos oitenta. É uma mulher calejada pela vida. O seu avental e o mexer com ligeireza indica que continua a laborar como sempre desde que se lembra de existir. Juntamente com o catolicismo fez também do trabalho a sua religião. Uma, a da igreja, leva-lhe a alma um dia para um bom recato, outra, a faina, garante-lhe a sobrevivência e a permanência para, até lá, poder continuar a ajudar a filha e os netos, porque os velhos, chegados a uma certa etapa da vida, passam com pouco. Precisam só de respirar. Querem apenas que os deixem viver.
Há dias transpôs a porta e atirou: “queria pedir-lhe um favor. Diga-me, sabe se há empresas que se encarregam de trocar as nossas coisas?”. Como?!? Interroguei sem perceber a lógica do negócio. Com convicção explicou melhor. “Quero saber se há serviços que vão a nossa casa e mudam os objetos que lá temos por outros. Sabe por que lhe pergunto? Há dias fui à Guarda, à minha aldeia, e quando cheguei, no mesmo dia à noite, tinha tudo trocado. Até a mobília da sala foi substituída. Lembra-se das pernas das cadeiras que eram torneadas? Agora deixaram lá umas direitas! Foram as minhas roupas, as minhas louças. Tudo! Por que fizeram isto, senhor?”
Perante a minha afirmação de que estava confundida, disse: “você diz o mesmo que a minha filha, mas, bolas, eu não estou doida?! Eu sei o que digo. Tocaram-me as coisas!”. Debalde a tentei convencer que o cenário por si descrito não poderia ter acontecido. Era ilógico. Se tivessem desaparecido, isso sim, fazia sentido, agora a haver troca por troca é impossível fazer-se isso tudo num só dia. Com algum cuidado fui alertando que deveria falar com a filha e consultar o médico. Estas alterações comportamentais podem acontecer aos mais velhos. Sem grande convencimento, ela foi embora.
Numa destas ruas estreitas, Maria –vamos chamar-lhe assim- já vai na quarta fechadura que manda instalar na mesma porta. De cima-a-baixo do pórtico, as quatro fecharias lá estão mas, recentemente e mesmo assim, não impediram que desaparecesse uma travessa com um bolo durante um dia inteirinho. O mais estranho, segundo o lamento de Maria, que vive sozinha, é que no dia seguinte apareceu dentro de um móvel. “Isto é coisa do demónio”, exclama com ênfase e pesar para uma vizinha. Não vale a pena tentar explicar-lhe que, pela idade, a sua cabeça gera cenários e teorias da conspiração. O problema é fazer-lhe crer que precisa de ajuda médica.
Teresa –vamos dar-lhe este nome- mulher muito personalizada e muito conhecida entre nós, aqui na Baixa, está com cerca de oitenta primaveras. Vive sozinha numa rua estreita onde o Sol beija o chão lá mais para Maio, mês das flores e da multiplicação dos passarinhos. Nos últimos tempos é notório um certo abandalhamento na higiene corporal e um perfume pesado nas roupas um pouco ensebadas. Calcula-se que a sua casa está cada vez mais a ser depósito de coisas sem valor e cujo fedor começa a invadir as redondezas –a Síndrome de Diógenes é uma das patologias que atingem os mais velhos. Consiste em reunir, sem critério e obsessivamente, todo o género de objetos e coisas velhas sem valor. Tudo serve para levar para casa. Uma amiga de Teresa, apercebendo-se do que está acontecer, já tentou por outros meios, que implicassem a persuasão, pedir apoio psicológico, mas a especialista clínica não passou da porta. Para piorar, Teresa ainda considerou haver invasão da sua privacidade por parte dos mais chegados. Pouco há a fazer a não ser assistir a uma decrepitude que se adivinha célere e, um dia destes, a uma morte sem assistência por opção. Tudo por que Teresa, que sempre viveu independente, não tem noção da sua fragilidade mental.
A questão, que não é nova, é: por um lado, uma Lei de Saúde Mental que prima pela decisão do próprio, quando o seu estado de saúde mental está muito aquém de poder decidir por si mesmo seja o que for. Por outro, assistirmos impotentes à decadência destes idosos que, como trapos sem préstimos, se arrastam pelas ruas da calçada –infelizmente, constata-se também que há já uma classe de novos-velhos, pessoas com pouco mais de trinta anos, que, divididos entre o álcool e as drogas, seguem o mesmo percurso de arrastamento pelos dias sem dia de fim à vista.
Sem culpar o sistema –porque o sistema somos todos-, deixo o texto apenas para reflexão e uma pergunta: que sociedade estamos a construir?



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