segunda-feira, 9 de março de 2015

O VOO RASANTE DO FALCÃO




Primeiro mandaram seus produtos baratos para as lojas de “300”. Achei giro. Cheguei a estar enfileirado para entrar na primeira loja. Eram acessíveis no preço, muito bonitinhos, e com o dinheiro que detinha adquiri o dobro. Comprei.
Eu não quis saber!
Encerraram todas as fábricas de guarda-chuvas e vassouras, muitas de ferramentas desapareceram. Era a economia de livre-mercado a toda a força e, dizia-se, muito bom para os consumidores. Eu era consumidor.
Eu não quis saber!
A seguir vieram eles, em voo rasante, dizimaram os seus outrora compartes “300”, instalaram-se e, como eucaliptos secando tudo à sua volta, foram fazendo fechar outras lojas no bairro.
Eu não quis saber!
Como nuvem tóxica que tudo invade, fui vendo que as etiquetas da roupa que comprava na loja tradicional, e que até aí eram produto nacional, passaram a ostentar “made in China”. O capital não tem pátria, invocava-se.
Eu não quis saber!
Os tapetes de Arraiolos começaram a ser produzidos na China com ajuda de formadores portugueses e a serem vendidos em Portugal a 1/8 do preço do original. Se eram praticamente iguaizinhos! E depois? Eu gostei e comprei.
Eu não quis saber!
As fábricas de têxteis nacionais foram encerrando e mandando para o desemprego milhares de trabalhadores. Diziam que era a Globalização a funcionar. Encolhi os ombros. Não era comigo.
Eu não quis saber!
Portugal tinha uma cidade industrial reconhecida pela produção de moldes e vidros de qualidade mundial. Passo-a-passo, como epidemia que dizima tudo, pequenas e grandes unidades de produção foram claudicando. Que tinha eu a ver com isso?
Eu não quis saber!
A zona centro, para os lados do Rio Águeda, era reconhecida pelo fabrico e montagem de bicicletas, mono-motores, cucciolos e motas. Aos poucos começaram a encerrar umas atrás de outras. Eu nem pedalava nem tinha motoreta. O que perdia com isso?
Eu não quis saber!
As grandes indústrias de metalo-mecânica e siderurgia foram encerrando. A imagem que guardava delas eram as grandes colunas de fumo a sair das chaminés e a conspurcar o ambiente. Estávamos na era pós-industrial. Até concordei.
Eu não quis saber!
Paulatinamente foram encerrando na cidade as pequenas produções familiares de fabrico de imagens sacras em terracota e substituídas por reproduções muito feias de Nossa Senhora de Fátima, em resina. Não tinha nada a ver com o assunto. Nem sou católico.
Eu não quis saber!
As grandes fábricas nacionais e lojas de mobílias foram claudicando. Os móveis portugueses, progressivamente, foram sendo substituídos pelo IKEA feitos no oriente. Diziam que eram os costumes a mudar. A livre economia a funcionar. Gostei. Comprei.
Eu não quis saber!
O desemprego atingiu os 12 por cento da população activa, os jovens partiram para o estrangeiro por não haver cá trabalho. Os velhos com rosto de pedra, em depressão profunda, passaram a encher os bancos de jardins e o seu suicídio passou a ser notícia diária para pôr fim a uma história de indignidade e sofrimento. Eu não era velho.
Eu não quis saber!
A violência doméstica, tendo por base o estertor financeiro como desencadeador e o ruir da estrutura de barro do edifício-família, passou a ser o quotidiano num país amargurado, sem moral e sem identidade, que perdeu a esperança e não sorri.
Eu não quis saber!
Por comerciantes chineses, abriu a primeira loja de frutas no meu bairro, os preços eram muito mais baratos que os outros vendedores locais. Pelos valores comercializados abaixo de custo, estava a colaborar num genocídio da concorrência. Não me importei. Essa guerra não era minha. Como tinha pouco dinheiro, comprei.
Eu não quis saber!
Um dia cheguei à Baixa da cidade e não havia lojas portuguesas. Só se falava chinês. Não compreendia nada do que diziam. O que me interessava? Eu até sempre conversei pouco.
Eu não quis saber!
Uma noite cheguei a casa e tinha as malas à porta. Lá dentro, naquele que fora o meu lar, ouvi uma voz de homem a expressar-se numa língua estranha. Mau! Tinha sido trocado por um chinês. Senti raiva de mim. Não gostei.
E passei a querer saber!
Fui ao banco pedir um empréstimo. Quis explicar a minha carência económica e financeira, mas ninguém me percebeu. Os poucos empregados eram todos chineses. Questionei a minha essência. Não gostei.
E passei a querer saber!
Precisei de tratar de um assunto na Câmara Municipal da cidade. Não havia funcionários portugueses. Só chineses. Não compreendi nada do que falavam. Só então entendi que já não fazia nada aqui. Detestei. Quis alcançar a tragédia de tudo isto. Porém, já era tarde para eu querer saber.






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