sábado, 7 de fevereiro de 2015

LEIA O DESPERTAR...


LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA 

Para além  do texto "UMA AJUDA PARA O CORTÊS", deixo também a crónica "O PSICOPATA"; "UM ESTUDO ACADÉMICO"; e "O COSTA, DE CÁ".



UMA AJUDA PARA O CORTÊS

O Luís Cortês é um músico de rua. É invisual e, fruto de um acidente, tem apenas um braço. Costumamos vê-lo a tocar órgão junto à Igreja de Santa Cruz. Dar música a quem passa a troco de uma moeda é o meio que lhe permite fazer face às suas despesas diárias. Na Baixa da cidade é mais conhecido que o Papa Francisco. Compõe e musica muitas das suas criações. Foi o autor de um Hino para o ex-candidato autárquico Pina Prata. Fez parte da orquestra de músicos de Rua de Coimbra, no ano passado.
Desde há cerca de uma semana encontramo-lo no seu posto habitual mas silencioso e com uma mensagem: “O “orgon” avariou. Peço ajuda aos amigos. Obrigado.”
O que é que se passou, Luís? Interroguei. Respondeu assim: “o órgão está avariado. Tem a membrana do altifalante lixada. O senhor Olímpio, da casa de música Olímpio Medina, diz que, por ser antigo e ser difícil arranjar peças, o conserto fica muito caro e que valia mais eu comprar outro. Acontece que eu não tenho dinheiro para o poder adquirir. Com cerca de 100 euros eu já comprava um novo nos chineses. Mas como, se não tenho dinheiro? Já estou assim há muitos dias. Não tenho ganhado nada e estou com dificuldades em pagar a água e a luz. Recebo de reforma 335,00 euros mas pago de renda 338,00 euros. É com a minha prestação na rua que consigo comer. Tenho de confessar, senhor Luís, estou mal!”


O PSICOPATA

Uma destas noites passadas estava fria. Faltava pouco menos de uma hora para a meia-noite. O velho estava de joelhos no chão da calçada a rasgar as calças com declarada fúria e uma ladainha impercetível. Ao seu lado um saco plástico que embarrigado conteria não se sabe o quê. Era um homem com cerca de 65 anos, magro, altura média e cabelos brancos atados em rabo-de-cavalo. Primeiro parei ao seu lado e avaliei a situação. Durante uns segundos, talvez minutos, tentei apreender o que o motivava aquela raiva. Como não entendia a sua linguagem arrastada tomei-o como estrangeiro. Avancei então para o cumprimento e oferta de auxílio: boa noite! Precisa de ajuda?
Ele continuou a lamuriar até que levantou os olhos na direção dos meus. Pensei para mim que estaria embriagado ou drogado. Continuei a tentar estabelecer um diálogo e percebi que falava português. Ao mesmo tempo que lhe estendia a mão para o ajudar a soerguer-se e perguntando o que se passava. Ergueu-se mas tombou imediatamente para trás e teria caído de costas caso não o agarrasse no limite. Amparei-o e encostei-o a um carro ali estacionado. Com uma mão a segurá-lo ia falando com ele para tentar perceber o que se passava e interroguei se precisava que o levasse a qualquer lado, mas o homem não seguia o meu raciocínio e parecia não ouvir. Entredentes, com a voz entaramelada e em aparente sofrimento, repetia: “deixe-me, vá-se embora! Sou perigoso! Mato qualquer um com a maior das facilidades! Não consigo controlar… é uma potência que sinto cá dentro, um desejo de matar” –ao mesmo tempo com a mão direita encostada à minha barriga, creio que com dedos amputados, fazia o trejeito de premir um ilusório gatilho –numa estranha forma de ser, sempre que encontro um personagem estranho sou tocado pela curiosidade e sou atraído como mosca pelo mel. Salta cá de dentro o meu lado de “escritor”, ou talvez “psicólogo” –que teria sido noutra vida, quem sabe?- e, perante um quadro assim, procuro perceber o lado obscuro do humano. Imediatamente intuí que tinha ali à minha frente um exemplar raro. Provavelmente um psicopata, uma pessoa com um transtorno de personalidade antissocial, alguém que tinha noção de que não conseguia evitar o mal mas esta perceção criava-lhe uma terrível angústia bipolar. Por pouco tempo e sem ter ideia do perigo que corria, imaginei estar perante um Annibal Lecter –o personagem criado pelo escritor Thomas Harris e passado a filme com o nome de “Silêncio dos Inocentes”, de 1991.
Continuei a ouvir as frases entrecortadas do homem. Reparei que tinha o nariz achatado, de boxeur, e no centro, na cana, tinha uma pequena cicatriz. Numa espécie de diálogo de surdos, ao mesmo tempo, ia perguntando se já matou alguém ou esteve preso. Na resposta, entrecortada em gemidos, ouvia: “deixe-me, eu sou perigoso… eu não controlo esta potência que me vem cá de dentro… esta vontade de matar!”
Foi então que, num ápice, ele estendeu as mãos em direção ao meu pescoço. Talvez porque estivesse à espera, ou não, desviei-me e fiquei com as suas mãos agarradas à minha roupa. Uma no ombro e outra na minha camisola junto à gola da camisa. À distância de um braço, sentia a tensão e a força que o homem exercia sobre o meu corpo. De repente dei por mim a calcular o que poderia fazer naquela circunstância. Perigo não corria, sou ágil, pratico uma arte marcial e sinto-me em forma E mais, no mínimo ainda me consigo entender com um velho e presumivelmente bêbado. Para minha defesa, agredir o homem ficou para última decisão –até porque não sou capaz de o fazer sem que alguém o faça primeiro. A minha primeira determinação foi tentar safar a minha camisola nova que me tinha custado um dinheirão há pouco tempo. Optei pelo apelo à serenidade. Tenha calma, que não lhe quero fazer mal! Tenha calma! Repeti até à exaustão e durante minutos que pareceram uma eternidade. Até que consegui livrar-me das suas garras. Virei costas e deixei lá o presumível monstro a falar sozinho. Como se não entendesse por que o abandonei, o homem apelava: “ó vizinho, ajude-me! Ó vizinho!”. Com o meu coração a bater fortemente, continuei a ouvir o chamamento do animal em jeito de homem até ao virar da esquina onde mergulhei na escuridão.


UM ESTUDO ACADÉMICO

Confesso, fico sempre irritado com estudos como aquele publicado no jornal Público, em 6 do mês passado. No caso, “Um estudo da Universidade de Coimbra conclui que se "apagou a História" da fachada de cerca de um quarto dos edifícios da Alta de Coimbra na reabilitação feita nos últimos 15 anos.”
É certo que valem o que valem mas vão sempre influenciar quem decide. Porque a questão é: num tempo em que não há dinheiro para restaurar seja o que for poderemos compatibilizar a arquitetura antiga, muito mais cara, com a identidade histórica? Os teóricos vão dizer que sim! Em analogia, muitos especialistas de nutrição também afirmam que num lar, com quatro agregados, onde entram 400 euros também se come mal. Pois come! Mas, não havendo dinheiro, como se pode fazer uma alimentação equilibrada e racional?
Tenho sempre muita dificuldade em compreender certos ensaios como este, sobretudo quando temos à nossa volta prédios e mais prédios a cair. Devemos aumentar a dificuldade do restauro? Ou, pelo contrário, tendo em conta o estado de necessidade, deveremos aligeirar os procedimentos e ir ao encontro do maior ganho possível? Porque, mais uma vez, estamos entre escolher dois males: o menor e o maior. Ora, vendo este caso, qual é o mal menor? Continuar a criar dificuldades a quem ousa restaurar um edifício nestas partes velhas? Exigindo cada vez mais obrigações sem dar quase nada? Será oferecendo as tintas e licenciamento gratuito dos andaimes que se consegue o milagre da revitalização? A preservação histórica caberá apenas aos particulares? E o Estado? Cabe-lhe somente legislar e cobrar impostos absurdos sobre o património? Tanto quanto sei, já há proprietários nestas áreas de antanho a quererem oferecer prédios e, pelo que li, há muitos casos que nem assim, de borla, são aceites.
Com todo o respeito por este trabalho académico, tenho horror a puristas. A história ensina-nos que nas virtudes públicas vícios privados. Sem colocar este estudo de fora, porque tem uma importância relativa, sobretudo na habitação, em vez de se procurar ser escravo do passado, a meu ver, dever-se-ia criar mais condições de simplificação na revitalização de edifícios em zonas históricas. As últimas décadas mostram bem no que isto deu –com várias entidades a opinar, contrariando-se até, e a dificultar até para mexer numa simples telha. Os exemplos estão à frente de todos nós. Não é preciso ser especialista para saber que quanto mais se apertar a rede menos “loucos” se disporão a atravessá-la e, no final, os estragos para a sociedade são incomensuráveis.
Sem perder um pouco da nossa identidade histórica, sobretudo num sector que cai aos bocados na monumentalidade particular, devemos ter o bom senso de não sermos prisioneiros de um tempo que o foi simplesmente porque não havia os materiais de substituição que existem hoje. Normalmente quem mais fala de teses e anti-teses sobre estas zonas de antanho não mora aqui nem sabe nada do que por cá se passa. Se seguíssemos as suas opiniões estas casas antigas ainda eram obrigadas a manter pias de pedra em vez de sanitas. É com base neste radicalismo que continuamos a ser obrigados a ter janelas de madeira, que para além de não permitirem vidros duplos, deixando passar o frio, e se deterioram em meia dúzia de anos, quando há materiais iguais na conformidade que duram uma vida.
Temos de escolher entre ter moradores, felizes com todas as comodidades, harmonizando o custo/proveito no fim que se deseja, ou continuarmos a perseguir o passado, com absurdos, e, como neste caso, termos estas zonas velhas esboroadas e completamente vazias de residentes. É que é preciso não esquecer que os custeios da revitalização estão na razão direta da sua desertificação habitacional.


O COSTA, DE CÁ

O António Costa, de cá, é pintor nas horas vagas e empregado de mesa no Café Santa Cruz a tempo inteiro –ou o contrário, nem sei! O que sei é que nos tempos mortos e nos períodos inteiros não promete nada que não possa cumprir. É um Costa de costado largo, simples mas agarrado a velhos conceitos a que muitos teimam em chamar valores. Pode até pensar-se que este Costa, que está nesta costa de terra calma e urbanizada, enfiou a boina para se colar ao Syriza e, de peito feito dizer que está ao lado dos gregos e contra a ditadura dos especuladores dos povos europeus. Podemos pensar em tudo, lá isso podemos! Mas sobre o que podemos e não podemos, sobre a Grécia, Espanha e outros tantos como nós que se arrastam na berma do precipício existencial da pobreza, eu não conversei nada com o Costa, deste lado da costa! Só quis mesmo deixar a sua fotografia vanguardista.

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