sábado, 1 de novembro de 2014

O DIA DE FINADOS QUE MORREU



Os relógios bateram há pouco as onze badaladas neste primeiro dia de Novembro, conhecido há mais de um século pelo povo como Dia de Finados, dia dos mortos, em respeito por quem partiu, elegia à vida. Retirado do calendário como Dia Santo, pelo Governo, a maioria dos estabelecimentos comerciais na Baixa estão abertos ao público mas, na generalidade, sem ninguém a comprar. Mesmo as poucas lojas de flores estão sem gente. Os passantes olham para os cravos e crisântemos como um elefante olha para um quadro de Picasso.



Está um tempo acinzentado. Respira-se uma estranha apatia no ar, uma atmosfera que se apanha numa qualquer localidade costeira com a neblina a envolver, a tomar o passo e a refrear a ansiedade. Os transeuntes, de rosto fechado, sem grandes manifestações de alegria e como se transportassem o credo na boca, calcorreiam as ruas calcetadas desta parte velha.


A Praça 8 de Maio, há poucos anos, quando era Dia Santo estaria cheia de flores e com o seu perfume a entrar na Igreja de Santa Cruz e a invadir tudo em redor, agora, sem cheiro como num deserto de areia, está abraçada pela modorra colada e incómoda. Nas portas da autarquia uma agente da Polícia Municipal olha o Céu e, quem sabe, dará graças a Deus por ter trabalho ainda que pouco profícuo na data de hoje. No largo, junto ao monumento ao descanso dos trabalhadores romenos, a lembrar o São Martinho e um comércio em desaparecimento, um casal, a senhora Natália e o marido, e a senhora Adelaide, ambos vendedores de castanhas, estão junto dos carrinhos anodizados e harmonizados pelas normas securitárias da Comunidade Europeia -creio, poucos se terão apercebido da transformação. Estão a destruir o património cultural, a memória do povo! Por que é que quem manda é tão estúpido? Não haverá alguém que impeça este genocídio cultural? Era bom saber quantas pessoas morreram nas últimas décadas por efeito dos carrinhos tradicionais.


Na rampa de acesso à Rua Visconde da Luz, o Pino, o vendedor da revista Cais, que já faz parte da paisagem urbana, está sentado no parapeito de pedra e, pelos traços do rosto, demonstra pouco ânimo em continuar e está arrumar as coisas numa sacola. 


A dois passos, não fossem os sons melódicos de dois músicos e estaríamos na cidade do silêncio. Junto ao novo ou velho banco Espirito Santo, a cantar, ironicamente, a “menina dos olhos tristes”, de José Afonso. Mais à frente, na Rua Ferreira Borges, junto ao Milénio BCP, novo ou velho, o Luís Bartolesi a soprar o seu saxofone, a arrancar uma melodia tristonha faz gelhas na sua fronte.


Não se avistam crianças a cravar uma moeda com os saudosos “Bolinhos e Bolinhós”. Esta manifestação cultural e popular, tão arreigada à prática de antanho, está em coma e, perante a indiferença da maioria, vai morrer. No seu lugar, para uma elite, está a nova moda importada dos Estados Unidos, a noite de halloween. Como se precisássemos de Bruxas para levar a saudade! Mais à frente a Celeste Correia, a mulher de todas as causas, veste um colete vermelho da Liga contra o Cancro e tenta cravar os amigos, os conhecidos e outros tantos com uma moeda.


O Largo da Portagem, como de costume, apresenta-se bem. As lojas da Rua de Sargento-Mor, tal como as restantes, apresentam-se vazias de clientes. Na Praça do Comércio, em frente à Igreja de São Tiago, o Cadaxo, um caminheiro solitário destes becos e ruelas, entretém-se a dar pão aos pombos e, sem humanos para trocar ideias, monologa com os animais voadores.


Na Rua das Padeiras, a dona Paula, florista e proprietária da Orquídea Silvestre, está à porta. Adianta-me que o Dia de Finados morreu. Devido ao Governo ter enterrado o feriado, poucos são os que ainda compram flores para os cemitérios. Servem-se de algumas rosas e outras plantas simples dos seus jardins.


No Mercado Municipal Dom Pedro V, embora se apresente bastante florido, já não é como antigamente em que, neste dia, a flor era a rainha da antiga praça citadina. 


No andar superior, uma vendedeira, a meu pedido, confidenciando que foi pior a emenda que o soneto, aproveita para interrogar: “o Governo, ao pretender abolir o este dia para aumentar a produtividade, rebentou com a venda de flores e velas. O País ganhou alguma coisa com a troca?”


Sem comentários: