segunda-feira, 1 de setembro de 2014

O MOLENGÃO




Com aspecto emproado mas ao mesmo tempo dissimulado, de superior Casanova engatatão, chegou ao Largo da Freiria há cerca de dois meses sem quaisquer malas ou bagagem. Sem pedir licença aos que por cá residem, instalou-se no velho prédio meio esconjuntado e abandonado por todos, pelo proprietário, pela autarquia e por quem cá vive, como eu, que já se rendeu à inércia e perdeu a esperança de uma recuperação digna pela data de 1878 que ostenta nos maravilhosos ferros forjados das bandeiras das portas e dos varandins.
Não se sabe se com esta manifestação quis dar uma lição a alguém em especial. Sim porque, se acreditarmos na filosofia budista, ele poderá perfeitamente ser um espírito reencarnado que voltou a este mundo para nos demonstrar que o diferente será sempre desigual a menos que, no caminho a percorrer, por obras e graças de humanidade se atinja a perfeição plena.
Quem sabe se ao assentar arraiais sem armas nem bagagem num edifício sem qualquer comodidade quis mostrar aos humanos que, pela utilidade, tudo pode ser aproveitado e reconvertido desde que se olhe com olhos de ver e se tenha atenção que a matéria, mesmo esquecida, é o facto, a memória, o testemunho surdo do começo de todas as coisas.
A verdade é que o indivíduo chegou, está para estar, e pelos vistos gosta da vizinhança. É um tipo pachorrento e humilde. Pelo visual escanzorrado, sorrateiro, juntando o ar descansado com a matreirice, pode perfeitamente ser alentejano –sem ofensa para os ditos. Durante o dia, para quem quiser ver, está deitado ao Sol na passadeira azul de um estabelecimento de artigos antigos –não se sabe se a escolha do azul terá a ver com as suas origens nobres e talvez oriundo de uma classe social elevada. À tardinha, como estudante universitário cansado de se revolver nos lençóis sozinho, parte em direcção à Praça do Comércio, em busca de companhia para afastar a solidão, para viver mais uma noitada de meninas e forró. O que sabemos é que não precisa de mover um músculo para procurar comida. Ao raiar da aurora, mais do que um voluntário virá trazer a paparoca embalada e fresquinha. Logo de manhã, no meio do largo, diariamente, podemos verificar em cima de um panfleto das grandes superfícies uma quantidade de comida seca e, ao lado, um recipiente com comida húmida. Claro que também não precisa de se preocupar com o arrumar dos restos porque os comerciantes da pequena praceta fazem isso. É certo que pela cara de um ou outro não parece que seja com muita vontade. Mas em abono da verdade, diga-se, já gostam do “Molengão”! Faz-nos lembrar alguém conhecido. O “nosso” gato é um espectáculo!





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