quinta-feira, 19 de junho de 2014

LEIA O DESPERTAR...



LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA 

Esta semana deixo o textos "REFLEXÃO: O MEDO DE AMANHÃ""SOS: APOIO PSICOLÓGICO PARA OS COMERCIANTES"; e "ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS: A GAITEIRA"


REFLEXÃO: O MEDO DE AMANHÃ

 Há uma semana, na sexta-feira passada, foi noite de marchas populares nesta parte velha da cidade e milhares de visitantes pisaram este chão, se calhar, a primeira vez nos últimos seis meses. Como em certames anteriores, este género de acontecimentos é a sorte grande para os hoteleiros da Baixa e a terminação para as lojas de comércio. Apesar deste prémio mínimo de consolação, muitos comerciantes com quem falei gostaram desta festa e, para completar a cereja em cima do bolo, até venderam e lhes deu alento para justificar o gasto de eletricidade. Queixas houve algumas, essencialmente dos vendedores das ruas estreitas. Lamentavam-se eles de que a distribuição do cortejo, tal como nos últimos anos, continua a ser irregular. Segundo duas senhoras comerciantes com quem falei, em coro, diziam: “não se admite que sempre que há eventos na Baixa, quer promovidos pela autarquia quer pela APBC, Agência para a Promoção da Baixa de Coimbra, continuem a ser concentrados nas ruas de cima. É um desrespeito pela nossa participação. Por exemplo, ontem, aqui na Rua Eduardo Coelho, de um total de quinze, passou cá apenas uma marcha. Parece que há uma intenção deliberada de dividir esta parte antiga entre bons e maus –como se aqui fosse o “gueto” dos pobres!”
É Sábado, faltam poucos minutos para o meio-dia num qualquer relógio da Baixa. Entro na antiga loja de ferragens, vazia de clientes onde tudo é velho a começar pelo proprietário, com cerca de sete décadas, e até os dois empregados mais novos, na casa dos “trinta” e “quarenta”, me parecem mais envelhecidos, em idade dobrada, do que o patrão. Depois de satisfazer o meu pedido e eu ter pago, atira o veterano do balcão: “isto é que vai uma vida? Já viu? Ontem andaram por aqui milhares de pessoas. Hoje é Sábado e não se vê ninguém! Para onde foram? Será que a solução é realizar festas todos os dias? Mas como é que podemos dar um porco a quem nos dá um presunto? O que havemos de fazer, senhor Quintans?”
Naturalmente que não tive resposta para dar às angústias sentidas e refletidas nos traços vincados da fronte do experimentado e agora frustrado vendedor. Se eu soubesse, espalharia ao mundo a boa-nova e eu seria o primeiro a testar a solução. Tal como uma grande maioria sinto-me muito apreensivo e depressivo com o estado letárgico da economia local e nacional. Apesar dos anúncios na imprensa do disparo da busca de bens duradouros, os sinais não são visíveis. Não há procura interna que se enxergue a olho nu. A oferta há muito que, pela falta de dinheiro em circulação, reflexos da quebra de rendimentos, submergiu a carência de necessidades e fez emergir um novo consumidor oportunista, dividido entre duas aflições: a satisfação da sua carência e o aproveitamento alheio. É um comprador frio, insensível, que -exatamente como o vendedor- repristinando o seu lado mais primário egoísta, no fio da navalha, tenta salvar-se, sobreviver, passando pelo intervalo dos pingos da chuva. É certo que somos todos consumidores e só nesta qualidade, enquanto tais, conseguimos pensar. Ou seja, muito dificilmente um comprador se projeta mentalmente e toma o lugar do vendedor. Os consumidores, enquanto massa anónima, abstratamente, são constituídos maioritariamente por pessoas sem afetividade social, em que todos os meios justificam sempre os fins –daí, provavelmente, o aforismo “amigos, amigos, negócios à parte”. Ora, dizia Pessoa que “o mundo é de quem não sente. A condição essencial para se ser um homem prático é a ausência de sensibilidade”. O que tomando à letra o pensamento do grande escritor e filósofo nos remete inevitavelmente para o individualismo isolacionista –o homem que intrinsecamente é um ser social, de sociedade gregária, e ao mesmo tempo associal, eremita e egocêntrico, neste tempo de salvação do corpo, inclina-se perigosamente para este último, para o egoísmo. Isto é, contrariamente ao que se pensa, esta crise económica e social não está a espalhar os valores da solidariedade e da partilha mas antes o seu contrário. E então nesta pretensa análise, chegados aqui e tentando dar resposta ao velho comerciante, poderemos interrogar: como dar a volta?
Nos últimos quarenta anos passámos de uma sociedade atrasada e maioritariamente pobre -mas auto sustentável porque produtiva, poupada e racionalizante de meios- para uma coletividade desenvolvida mas planeada como dependente do exterior, quer nos bens perecíveis –extraídos na agricultura- quer nos bens duradouros –produzidos nas fábricas-, assente no desperdício, onde a reutilização tem pouco relevo. Como entender que diariamente se coloquem no lixo toneladas de garrafas de vidro, de latas de folha, de madeiras, de lixo eletrónico, de artigos diversificados e não se intensifique a sua recuperação? Para colmatar o défice de produção nacional, ao mesmo tempo que se travestia a Globalização de religião e se transformava Portugal em nação de serviços e ponte entre o “import-export”, criou-se um consumidor dependente e obsessivo pelo modernismo absolutista. Agora, sem dinheiro e com a procura no vermelho há vários semestres, depois de estarmos todos metamorfoseados em vendedores onde vamos desencantar compradores? À China?


SOS: APOIO PSICOLÓGICO PARA OS COMERCIANTES

O homem de meia-idade que tenho à minha frente chora desalmadamente. Aqueles olhos avermelhados, como quem passou a noite inteira sem pregar olho e a matutar numa existência sem horizonte, estão circundados com umas intensas olheiras negras. Naquela barba de dois dias, a fazer lembrar um campo de trigo a emergir da terra negra vergastada pela canícula, duas lágrimas teimam em rolar lentamente. Conheço-o bem. Há muitos, muitos anos que é comerciante na Baixa da cidade. O que sempre me impressionou nele foi a sua postura altiva, a fazer lembrar a palmeira solitária e ereta de um jardim à beira da estrada. Pareceu-me sempre uma fortaleza inexpugnável. A pessoa que se contorce ao meu lado com amarguras de alma não tem nada a ver com o comerciante que conheci. O homem com quem troco umas palavras de alento, em metáfora, é o destroço de um navio que foi rei dos mares. É uma sombra de alguém que me recorda alguém. As suas palavras saem-lhe entrecortadas em farrapos de aflição: “não aguento mais! Estou esgotado! Com o meu negócio a falhar diariamente, sinto a minha vida como um castelo de cartas a tombar sobre uma mesa de jogo. Por inerência, a minha vida familiar está desfazer-se e o meu casamento de décadas a esbater-se em frangalhos como onda na areia da praia. Faltam-me as forças. Não aguento!...Não aguento…! –mas não escreva nada sobre isto! Promete? Promete…?”
Esta descrição pode até parecer inventada mas é mesmo real. Nos últimos tempos, visto com os meus olhos de sensibilidade, dá para verificar que muitos comerciantes, homens e mulheres com quem falo, desatam num pranto inexplicável. A depressão, como manto negro de solidão, tomou conta das suas vidas. É visível que se sentem perdidos nesta imensidão de tempo sem futuro à vista. Alguma coisa deve ser feita, e com urgência, dentro do campo psicológico. Já há dois anos escrevi sobre este assunto e nada foi feito. Algumas entidades com responsabilidade social, entre elas a Câmara Municipal de Coimbra, antes que ocorram tragédias neste sector profissional, deveria mandar investigar e sobretudo pedir ajuda à Faculdade Psicologia da Universidade de Coimbra.
Bem sei que sou eu a escrever –e nem sequer tenho qualquer formação na área- e valerá o que valer, mas, pelo que constato todos os dias, estou deveras preocupado. Fica a chamada de atenção.


ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS: A GAITEIRA

É uma encantadora mulher, que está para a vida como traineira está para o mar. Se tem de ser, tem de ser, barco à água! Já atravessou ondas alterosas, tornados de vã esperança, que a fizeram temer o futuro para tocar o horizonte. Os seus olhos negros, como proa apontada ao longínquo, carregam fardos de nostalgia e solidão. E ela pensa nisso? Ora, ora! Isso é que era bom! Dar confiança à tristeza? Alegria precisa-se, mesmo que se vá buscar ao fundo da alma, às catacumbas desconhecidas de um ser que parece vagamente nosso conhecido. Por isso mesmo, como para enxotar a melancolia, faz da cantiga um tónico rejuvenescedor anímico. Cada resplandecer da aurora, cada fio de luz, é um milagre de Deus que vê nascer diariamente para ir trabalhar atravessando a madrugada. É uma mulher do povo. Uma heroína desconhecida. Um modelo popular de que ninguém fala, ninguém sabe nada desta mulher-mãe-avó, um todo-o-terreno onde da fraqueza faz alento e da força um Sol de verão. Esta senhora de que, com gosto, vou deixar contar um pouco da sua história, dá pelo nome de Celeste Correia e faz o favor de ser minha amiga. “Canta” Celeste!
“O que hei de dizer, Luís? Sou uma pessoa humilde, tu sabes. Tenho 66 anos e, para andar de cabeça erguida, trabalho, trabalho, como se a labuta fosse o meu caminho e o meu destino, ao mesmo tempo. Nasci na Sé Nova, na parte alta da cidade, num berço remediado. Os meus pais viviam razoavelmente mas entendiam que o lugar da mulher era em casa e, por conseguinte, só precisava de aprender costura. E foi o que fizeram comigo. Apesar da professora primária ter salientado os meus dotes para as letras não foi suficiente para os demover. Aos 9 anos estava a trabalhar numa modista, na Rua das Padeiras. Aos 19 anos casei e o meu falecido marido, Manuel Dourado, que durante cerca de uma dúzia de anos foi presidente da Junta de São Bartolomeu, entendeu também que o meu lugar era em casa a labutar… na costura. Tive de mandar um grito de Ipiranga para poder trabalhar fora. Entretanto fiquei viúva e o trabalho, como manto de inverno e aderindo à minha pele, nunca mais me largou. Preciso de estar permanentemente ocupada. Ao abrigo do Programa Novas Oportunidades concluí o 9.º ano e agora estou na ESEC, Escola Superior de Educação de Coimbra, a fazer um curso de informática. Talvez também por isso mesmo, sou uma pessoa de causas. Ajudar quem precisa é para mim um prazer inexplicável. Quando me chamam vou para o Banco Alimentar. Vivo um dia de cada vez. Desde que tive uma ameaça de cancro da mama, passei a encarar a existência como uma dádiva divina e não um peso. Adoro cantar e representar. Aqui dentro do peito, deste cansado coração, bate o pulsar de uma artista. É por este amor que agora faço parte do Rancho das Tricanas de Coimbra. É por esta paixão, que me consome e me dá alento, que no ano passado abracei o projeto da “Orquestra dos Músicos de Rua de Coimbra”. Até ando doente por não cantar. Quando voltamos à rua, Luís?”






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