segunda-feira, 5 de maio de 2014

ROSTO SEM ROSTO: O PAI

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)



“Hei-de matar-te, meu cabrão! Não perdes pela demora, filho da puta!”. Estas palavras cruas, proferidas por ele, o meu filho, na presença da GNR e acompanhadas com pontapés, e dirigidas a mim, naquele dia, ficarão para sempre gravadas na minha memória, até ao último suspiro da minha existência. Recebi-as da mesma forma que se sente o estalejar do chicote e a rasgar a carne nas costas de pele sensível e imaculada e a ficar sanguinolenta pelo vergastar do látego.
É certo que ele estava muito embriagado, se calhar drogado com uma ganza, a que nos últimos quinze anos me habituou. Mas estava consciente do que dizia! E isto, em constatação, é o que mais fere. Nos últimos tempos, através de mensagens de telemóvel, aproveitava todos os momentos para me insultar e acusar-me de ser a causa do seu falhanço como pessoa. Mas eu, apesar dessa tremenda falta de respeito, considerava que qualquer dia encontraria o seu caminho -se bem que nestas suas agressões, escritas e muitas vezes verbais, me magoassem demais eu fizesse tudo para não ligar. Embora não sendo religioso, não fosse bafejado pela luz da fé em Deus, acreditava que ele daria a volta por cima e, mais tarde ou mais cedo, retornaria a uma normalidade ambicionada. Na natureza nada é infinito. Tudo é efémero. 
Mesmo até depois de já estar separado da minha mulher, e em vias de divórcio, confiava que sendo ele tão inteligente –tantas vezes me pergunto a razão de a perspicácia funcionar ao contrário e retirar a lucidez de espírito-, tão dotado para as artes, um dia acordaria deste sono letárgico de destruição e num simbólico abraço diria: “desculpa, pai! Fui tão injusto para ti!”
Às vezes, no meio de uma torrente de lágrimas, penso que todos nós carregamos um Karma, um destino, vindo das gerações passadas e recebido na hora em que recebemos a luz do Sol. Olho para trás e vejo o meu avô a ser amaldiçoado pelo meu pai –o meu ancestral foi muito rico e, por falta de cabeça, perdera tudo e deixara os filhos na mais completa miséria. O meu gerador raramente falava do progenitor, e meu avô. E se o lembrasse seria para enaltecer o pior que havia no homem enquanto criador. Na relação familiar comigo, de pai/filho, foi sempre de uma rudeza aguda, quase de abandono, e de uma extrema falta de amor e sensibilidade, o que descambou num constante conflito entre nós. O curioso é que este seu desligamento completo de ternura criou em mim uma vontade férrea de lhe mostrar que estava errado. Tantas vezes, no meio do seu estertor alcoólico e irado, a bater na minha mãe, eu dizia para mim que, quando fosse adulto, jamais iria dar aquela vida aos meus filhos. Nunca me embriaguei, nunca bati na minha mulher e trabalhei arduamente, noite e dia, para proporcionar ao meu filho todos os instrumentos possíveis para o tornar realizado e que nunca se sentisse discriminado pela indigência como eu.
Dei-lhe pouco amor, como tantas vezes fui acusado pela minha mulher? Não sei! Dei o que pude dar! Nas datas marcantes eu estive sempre lá, mesmo fazendo um esforço enorme. Mas a questão é: somos apenas o resultado proporcional do carinho que recebemos? Será? Claro que não! Se assim fosse eu seria um bêbado, um valdevinos, se calhar! Mas como explicar que uma criança que é criada e educada com mil cuidados, sem exemplos em casa de bebedeiras e consumo de drogas possa redundar num alcoólico e consumidor de marijuana? Será que foi a tal base genética, hereditária, que se interrompeu numa geração e se reabilitou na seguinte em busca da perfeição? Teria sido o facto de lhe ter concedido um bem-estar em demasia, provavelmente passando a mensagem de que tudo é muito fácil, e não o ter feito sentir a dor, a frustração, a angústia do rastejar na dureza dos escolhos para se obter a realização do desejo? Foi esta nova sociedade digital, idolatrada como meio de comunicação e formação intelectual, que o empurrou para as catacumbas da depressão? Teria sido o excesso de protecção da mãe no afecto maternal e desvalorizando a minha acção? O meu pai, mesmo custando a admitir, teria razão? Demasiadas perguntas para tanta angústia que me inunda o coração. Tantos planos que fazemos, tantas desilusões sentidas! Felizes dos progenitores que têm bons filhos!”

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