sexta-feira, 9 de maio de 2014

ENTENDO-TE E PERDOO-TE (9)

(Imagem da Web)




Olho para trás e sinto tantas décadas de cumplicidade. Vejo a nossa primeira casinha arrendada com telhas ao léu e por onde, pelas frestas, o frio entrava sem pedir licença. Transporto-me para o dia em que a nossa filha nasceu. Estava a terminar a caminha de madeira em que a nossa filha viria a dormir. Lembro-me que acabei por espetar uma goiva no dedo indicador esquerdo e fui parar ao hospital onde apanhei três pontos. Mais tarde nasceu o nosso filho e foi nesse bercinho, saído das minhas mãos e imaginação, que ele tantas vezes chorou a pedir mama. Recordo quando comprámos o nosso primeiro frigorífico e a alegria que sentimos na última prestação. Era tudo tão difícil! Mas estávamos unidos no mesmo objectivo de educar os nossos rebentos e dar-lhes uma vida melhor do que a que tivemos. Mas era tudo tão difícil! O ordenado dos dois nunca chegava ao final do mês. Faltava dinheiro e sobravam dias. E o recurso, tantas vezes, era o fiado. Lembras-te?
Para não pagar renda negociámos uma casinha modesta e fomos à banca. Como não havia garantias reais, o banco não emprestou. Mas era tão bom ajuste! E a casa era um amor! Que pena não nos darem a mão! Pensámos até à exaustão. Foi então que rememorei o meu melhor amigo. E ele, numa confiança sem limites, concedeu-me a verba pretendida. Com a tua ajuda, trabalhei dias inteiros, de sol até à lua, e noites sem dormir para lhe retribuir a graça merecida. Anos mais tarde adquirimos uma vivenda melhor e, mais uma vez, o meu amigo me confiou milhares de contos de reis. Recordas como fiquei grato?
Há dois anos ele foi lá a casa. Tens ideia? Junto da lareira, o meu melhor amigo de sempre, com um sorriso nos lábios, disse: “tenho um cancro maligno, vou morrer. És a única pessoa a quem posso recorrer para ajudar a minha família lá no nosso negócio. Posso contar contigo?”. E na tua presença, sem te consultar, a chorar, eu disse imediatamente que sim. Como sabes, há um ano suicidou-se e eu, imponderadamente e mais uma vez sem te ouvir, logo passei a cumprir o prometido. Agora, cansadíssimo, todas as noites vou dormir quando a madrugada já ressona. Mas tu já não estás lá. A cama está vazia. Não compreendeste a minha dívida de gratidão. Entendo-te e perdoo-te. Consegues perdoar-me também?

(Texto original de participação na 9.ª jornada do Campeonato Nacional de Escrita Criativa e sobre o mote “Entendo-te e perdoo-te”)




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