sábado, 22 de março de 2014

CALOU-SE A VOZ DO CARRIÇO


A notícia caiu-me de chofre pelo telefone: “morreu o teu vizinho Joaquim Carriço!”. Como? Interroguei meio atónito. Ainda um dia antes o avistara e ouvira a sua voz em monólogo com os seus cães. Os seus animais de caça eram uma extensão de si mesmo. Uma certa descrença no homem e um acreditar que o cachorro, na sua irracionalidade, será mais leal do que o humano.
O Joaquim era uma presença forte da Baixa. Era odontologista com consultório no Largo das Ameias e com muitos amigos nesta zona antiga.
Mas afinal o que aconteceu? Quem responde é o seu amigo de sempre, o Rui Alves –que o acompanhava no momento fatídico em que se desenrolou a tragédia. “Éramos três amigos. Estávamos a pescar na Costa Nova. Não sei bem explicar, mas eu pressentia qualquer coisa. Logo de manhã o Carriço insistiu em ir à Figueira da Foz comprar isco. Depois do regresso foi instalar as canas um pouco longe de nós, no molhe. Havia uma rampa com dois metros e, como a maré estava a esvaziar, pressupunha que iria ser bom para a pesca. Com a cana puxei-o. Foi então que o “merdita” –como nos tratávamos todos com carinho- disse: “ estou a ver as pedras a abanar!”. Achei estranha aquela observação. E até pensei que ele estava a brincar. Seriam cerca de 12h20 quando pegou numa sandes e em três cervejas -uma para cada um. Deu uma dentada e, de repente, começou a fazer-me sinais de aflição para eu o apertar no peito e dando-me a entender que estava sem ar. A pigarrear num sufoco indescritível, sem conseguir respirar, comecei a envolver o seu tronco, numa tentativa de expulsar o pão que estaria preso na sua garganta. Mas não conseguia e comecei a verificar que o Joaquim estava a ficar com as orelhas roxas. Ligámos para o INEM e, através do telemóvel, disseram para lhe fazer uma massagem cardíaca. Mas eu não estava a conseguir. E o INEM nunca mais chegava. Chegou 25 minutos depois. Ao que parece trocaram o endereço. Os bombeiros chegaram primeiro que a emergência médica. Tentaram tudo e até usaram um desfibrilhador, mas debalde! O médico do INEM disse que a sua morte, provavelmente, teria sido causada por engasgamento, mas é normal acontecer ficar-se sem conseguir ingerir alimentos quando a ocorrência é provocada por um AVC, Acidente Vascular Cerebral. Ora o Carriço já tinha um historial clínico de doença do coração. Há três anos teve um ataque grave. Tinha 67 anos, feitos a 3 de Janeiro, último. Ainda nem estou em mim. O meu melhor amigo morreu nos meus braços e sem que eu pudesse fazer alguma coisa! A vida é muito injusta, carago!”
Nos Carvalhais de Cima, não se ouvirá mais a voz grave e melodiosa do meu vizinho Carriço a cantar o fado. Desde os seus amados cães até aos passarinhos do seu quintal, e sobretudo por todos nós, os seus confinantes que o estimávamos muito, vamos sentir a sua falta. Descanse em paz, meu amigo. Foi uma honra ter privado consigo. Até sempre.

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