sábado, 30 de novembro de 2013

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Esta semana deixo o texto "FILHOS DO VENTO"



OS FILHOS DO VENTO

Na década de 1950, era comum os filhos reverenciarem os pais com um beija-mão e acompanhar o gesto com uma frase repetida: “sua bênção, meu pai!”. Este cumprimento de veneração alargava-se ao padrinho de batismo, ao homem mais rico da freguesia e até ao senhor vigário. Nenhum filho ousava um tratamento de “tu lá, tu cá” para os seus progenitores. Era um respeito imposto verticalmente, de cima para baixo. Logo que alguém era pai, mesmo que fosse um diabo, um trapalhão que não valesse um caracol, era outorgado pelo espírito do costume na missão de continuar a impor um rigor austero aos seus descendentes. Ai do filho que levantasse a voz ao progenitor mesmo se a ordem dada era imoral ou inexequível. Desde o chicoteamento com cinto, com “canoilho” –tronco do milho ou da couve alta-, com uma ripa, com cordas dobradas, o recurso ao castigo corporal era um hábito educacional. Era um uso demasiado repetido na maioria das casas portuguesas, sobretudo nas mais humildes – prosseguido nas escolas primárias enquanto infante e até depois na adolescência, no secundário. Se, por um lado, na família funcionava como um procedimento imposto para marcar o terreno, para vincular a autoridade do “pater familias”, por outro, era como se fosse um preço a pagar por se ter nascido livre, insurreto, sem controlo nas emoções e impreparado para lidar com a sociedade aristocrática. Nas linhas iluministas de Thomas Hobbes e Jacques Rosseau, ajuizando que o homem nasce bom ou mau, era uma espécie de preparação para o futuro; moldar o indivíduo de modo a torná-lo dócil e pacífico –e também na orientação ideológica do Estado Novo, assente no autoritarismo social. Ou seja, educava-se para a subjugação e não para a liberdade. Aliás, os educadores que furavam este conceito imposto por todos tacitamente eram apelidados de loucos.
Era comum o pai trabalhar e a mãe, doméstica, cuidar da prole. Era esta mãe-galinha que com suas asas invisíveis protegia os herdeiros da ira do patriarca quando, tantas vezes, chegava embriagado, esquinado, a casa e embirrava com tudo o que mexesse desde o gato até ao cão.
Se numa primeira fase, para os filhos, este tratamento duro de disciplina espartana causasse revolta com ódio à mistura, numa segunda, com o crescimento da idade, esse sentimento ia desaparecendo. O tempo ia desculpabilizando a dureza do ascendente e o agora pai, copiando os mesmos métodos que tanto infernizou, aplicava igual tratamento aos seus descendentes. Por conseguinte tudo se esquecia –“porque foi para o meu bem”, dizia-se- e o amor umbilical que ligava avós, pais e filhos falava mais alto. Numa roda que circulava para todos os entes, sabia-se que os mais novos cuidariam dos mais velhos e, numa obrigação ancestral, proporcionariam aos país uma velhice acompanhada –aliás, quando alguém ousava institucionalizar um familiar num lar de terceira-idade era um falatório diabólico na vizinhança. Tal ação de desapegamento, perante uma coletividade amarrada a estereótipos, constituía um ato de desamor a quem tanto deu para criar tal valdevinos e mal-agradecido. E lá vinha o aforismo de mau filho és, como mau pai serás tratado.

VENTOS DE LESTE
Veio a Revolução de Abril de 1974 e, em consequência, a família patriarcal, enquanto célula una, cimentada na austera obediência hierárquica, foi-se esboroando progressivamente. A nova geração maltratada e abusada por sevícias pelos criadores abriu-se completamente aos novos ventos de modernidade. O trato relacional entre pais e filhos alterou-se profundamente. Tal como a queda do muro de Berlim, em 1989, serviu para misturar as duas Alemanhas, Ocidental e de Leste, na família, até aí impenetrável a modas que alterassem o situacionismo, ruíram as barreiras que mantinham o tal respeitinho e passou-se para uma unificação de direitos e obrigações iguais para todos, independentemente da idade, da condição e da prestação social. A cada cabeça correspondia um voto. A idade passou a ser um mito. Bastava a condição de filho para ter direito a semanada, cama, mesa e roupa lavada –repare-se que, surfando a mesma onda, também nesta altura se criaram as condições para a implantação do Estado social, aplicando a mesma filosofia: “se és cidadão, logo, independentemente de contribuíres ou não para o bem-estar de todos, tens direitos assegurados pelo único facto intrínseco de seres nacional”. Ou seja, as obrigações individuais foram sublevadas. O que importava mesmo era a inalienável condição de ser pessoa. Por outro lado, já agora, como até aí a frequência universitária era apenas possível para os mais abastados, uma vez que o ensino começou a democratizar-se, apostou-se tudo em cursos superiores para os filhos. Isto é, sobrevalorizou-se o intelectualismo de pasta e desvalorizou-se o trabalho material enquanto símbolo da experiência empírica.
Enquanto que nas décadas de 1950 e 1960 os herdeiros eram o acessório básico para a multiplicação do apelido e um instrumento financeiro de captação de receitas para a sobrevivência do agregado, a partir de 1974 os filhos passaram a ser o investimento, a aposta numa oportunidade de um futuro previsível que os pais não tiveram; um jogo de espelhos onde os progenitores se reviam; uma concretização material, uma conquista que, individualmente, não fora alcançada em tempo útil mas que, pelo contentamento sentido, dava a mesma satisfação. Passou a ser a prossecução de um “continuum” social e ao mesmo tempo um ajuste de contas com o passado. O filho, portanto, passou a ser na família o centro, o nuclear, de toda a atenção dos pais.
Seria de supor que, recebendo em triplicado, bem-estar, afeto e formação, o que os ascendentes não provaram, esta nova geração saída a partir de meados das décadas de 1970 e seguintes seriam reconhecidas a quem tanto lutou para lhes proporcionar uma vida tão cheia de ferramentas. Ora o que aconteceu foi que, socialmente, o resultado é simplesmente catastrófico. Com as devidas exceções naturalmente, estas extirpes são do pior: egoístas, cínicos e pouco dados a carinhos aos mais idosos. São simplesmente parasitas para quem os criou com tanto amor e ternura. Pior do que isso, são maus e não escondem a sua índole de malvadez. Tratam os mais velhos como se fossem crianças imberbes, impondo a sua vontade torcionária. Tomar conta deles está completamente fora de questão. São coisas sem prestabilidade para morrerem esquecidos num qualquer hospital. Em metáfora, como vampiros, apenas estão preocupados em sugar o sangue que lhes corre nas veias –como quem diz chupar-lhe todo o dinheiro que tenham. O que conta é o seu interesse mesquinho e atrofiado e pouco lhes importa a felicidade de quem tanto lhes deu. Numa frase final: FILHOS DO VENTO!

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