terça-feira, 22 de outubro de 2013

O AFINADOR DE PIANOS


 Quando dei conta da sua existência, recordo bem, teria sido há cerca de vinte e cinco anos quando, todos os dias, batia com os olhos no seu anúncio nos classificados do Diário de Coimbra (DC): “Afinador de pianos, Manuel dos Reis, Figueira da Foz”. Noutros tempos, quando os periódicos constituíam um dos poucos meios de publicitar a compra e venda ou prestação de serviços, os leitores diários, sem o querer e sem conhecer o anunciante, estabeleciam uma relação de proximidade. Ou seja, pela insistência propagandística, se, por um lado, deixávamos de ler a mensagem, por outro, ela ficava gravada na nossa memória e era como se fizesse parte da nossa parte.
A primeira vez que o conheci pessoalmente foi há cerca de uma vintena de anos. Entrou-me pela porta da loja dentro. Afirmando ser natural da praia da claridade e que estava a residir na Baixa, apresentando-se e ao mesmo tempo que interrogava, disse: “chamo-me Manuel dos Reis, sou afinador de pianos. Não precisará o senhor dos meus serviços?”. Foi então que o relacionei com o anúncio no DC. Olhei para ele, como se faz quando falamos com alguém pela primeira vez, e vi um homem praticamente invisual, que não enxergava quase nada. Pensei para mim que se ele não via como podia afinar e reparar os martelos de ressonância? Nessa altura, por acaso, tinha um velho piano francês, armado em madeira, encostado e avancei para afinação ali mesmo. Então, nos dias seguintes, assisti à maior surpresa da minha vida. Com umas lentes grossíssimas e mal amanhadas –que lhe dava um aspecto de professor Pardal, da banda desenhada- este velho afinador fazia milagres. Com o tacto, às apalpadelas, com uma mestria inigualável, ele reparava qualquer batente mesmo desmantelado. No final da operação vinha então a afinação. Com um ouvido musical invulgar, ele não necessitava de nenhum acessório digital. Enquanto morou por cá, pela cidade, ainda me reparou mais alguns. Depois regressou à terra do mar e só de vez em quando me visitava. Sempre foi marcante o sublinhado que empregava nas palavras, na sua inesquecível retribuição de cumprimento: “vou muito bem, senhor Luís! Vivo encantado!”
Há dias encontrei-o, sentado num banco, na Praça do Comércio. Sozinho, de olhos postos sabe-se lá onde e, se calhar, embrenhado numa vida que não viveu, abandonado como sós ficam os velhos, como se de trapo sem prestabilidade se tratasse. Sem levar em conta o seu passado tão rico em sabedoria experiencial. Como todos temos uma história para narrar, convidei-o a contar a sua. Vamos ouvir. Senhoras e senhores, na primeira pessoa, Manuel da Conceição dos Reis:
“Corria o ano de1932 quando nasci na Cova, Gala, Figueira da Foz. O meu pai era pescador de bacalhau e a minha mãe estava em casa a cuidar de mim e a rezar para que o Criador o trouxesse de volta, em bom regresso e são e salvo. Apesar do berço pobre em que cresci os meus pais sempre quiseram o melhor para o meu futuro. Deveria ter pesado o facto de, com cerca de 5 anos, ter ficado quase sem ver a pouco mais de um palmo do nariz. Assim que terminei a 4ª. Classe concorri ao exame de admissão e fui para o Conservatório de Música do Porto. Durante sete anos aquela escola foi a minha primeira e segunda casas. Com cerca de 18 anos regressei à Figueira e fui tocar piano para o Lagosta Vermelha –era um cabaret, uma espécie de casa de alterne, como se diz agora. O dono era o Joaquim Pereira da Silva, que era despachante oficial da Alfândega. Estive lá a trabalhar à volta de 9 anos. Havia lá umas sete mulheres –e que mulheres, senhor Luís?!- que serviam ao balcão e à mesa. Sempre a seguir a carreira musical, fiz parte de sete agrupamentos de música ligeira. Um deles era internacional, o Musisom. Corremos a França toda a tocar para os emigrantes.
Depois, já cansado daquela vida de jogral, não me lembro bem em que ano, talvez na década de 1970 ou 1980, sei lá!, comecei a apostar na afinação de pianos. Coloquei um anúncio no mais antigo diário da cidade e, aos poucos, comecei a ser solicitado por particulares, por conservatórios –durante mais de 30 anos fiz serviço no Conservatório de Castelo Branco e da Covilhã. No Casino da Figueira, antigo Peninsular, fui responsável pelos acordes também durante três décadas e cheguei a tocar lá com o conjunto residente. Era no tempo em que o piano era o rei. Veja que o Conservatório de Castelo Branco tinha 16; o da Covilhã 15; e o Casino Peninsular tinha 6 ao seu serviço –aqui, lembro-me, sempre que o Carlos Paião lá ia tocar, antes, tinha de ir lá verificar se o piano estava afinado. Trabalhei para muitos artistas de nomeada; para o Shegundo Galarza, para o maestro Vitorino de Almeida e para a Maria João Pires, de Castelo Branco. Sem margem para dúvida, esta senhora é a maior pianista do País.
Sou solteiro e bom rapaz. Nunca tive apetência para casar –até confesso, nunca amei verdadeiramente uma mulher. Nunca me atirei a um grande amor. Também nunca vi um interesse por aí além de nenhuma delas. Certamente pesou muito o facto de eu ser quase cego; é uma doença hereditária. Esta anomalia condicionou para sempre a minha vida. Mas agora pensando nisso, tenho a certeza, o que pesou mais foi o facto de eu ganhar pouco. Achava que o que eu auferia não chegava para a sobrevivência de duas pessoas. Comecei a vislumbrar o futuro e achei que o piano, enquanto instrumento de grande porte e símbolo de novo-riquismo, tinha os dias contados. Eu sempre gostei da solidão. Sinto-me bem só. Geralmente todos os artistas são assim. Dou-me bem, talvez, porque sou cem por cento autónomo.
Há uns meses saí da minha terra, a Figueira, por dificuldades económicas. Agora vivo numa pensão da Baixa de Coimbra. Tenho uma reforma baixita. Recebo 256,39 €. Pago 135 € na pensão e vou comer à Cozinha Económica. O que sobra é para a lavagem da roupa e para uma buchita e um copo… nem só de pão vive o homem! É pouco, bem sei! Merecia melhor sorte, não é o que está a pensar? Claro que do alto dos meus 81 anos considero-me injustamente tratado, mas se tem de ser assim, o que se há-de fazer? Uma pessoa tem de se resignar. Apesar disso não me sinto revoltado. Contento-me com o que tenho. A política não me interessa; a política é para os políticos. Eu sou músico. A música é o meu mundo! Quando morrer só levo a música comigo. De bens materiais tenho apenas as roupas que visto e uma mala de ferramentas. Absolutamente mais nada! Quando partir para a grande viagem sigo feliz. Se nasci sem nada porque haveria de sair de outro modo?”


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