sexta-feira, 25 de outubro de 2013

LEIA O DESPERTAR...



Para além  do texto "O AFINADOR DE PIANOS", deixo também as crónicas "UM SAXOFONISTA NA VARANDA"; e "REFLEXÃO: QUO VADIS MACHADO?".



O AFINADOR DE PIANOS

 Quando dei conta da sua existência, recordo bem, teria sido há cerca de vinte e cinco anos quando, todos os dias, batia com os olhos no seu anúncio nos classificados do Diário de Coimbra (DC): “Afinador de pianos, Manuel dos Reis, Figueira da Foz”. Noutros tempos, quando os periódicos constituíam um dos poucos meios de publicitar a compra e venda ou prestação de serviços, os leitores diários, sem o querer e sem conhecer o anunciante, estabeleciam uma relação de proximidade. Ou seja, pela insistência propagandística, se, por um lado, se deixava de ler a mensagem, por outro, ela ficava gravada na nossa memória e era como se fizesse parte da nossa parte.
A primeira vez que o conheci pessoalmente foi há cerca de uma vintena de anos. Entrou-me pela porta da loja dentro. Afirmando ser natural da praia da claridade e que estava a residir na Baixa, apresentando-se e ao mesmo tempo que interrogava, disse: “chamo-me Manuel dos Reis, sou afinador de pianos. Não precisará o senhor dos meus serviços?”. Foi então que o relacionei com o anúncio no DC. Olhei para ele, como se faz quando falamos com alguém pela primeira vez, e vi um homem praticamente invisual, que não enxergava quase nada. Pensei para mim que se ele não via como podia afinar e reparar os martelos de ressonância? Nessa altura, por acaso, tinha um velho piano francês, armado em madeira, encostado e avancei para afinação ali mesmo. Então, nos dias seguintes, assisti à maior surpresa da minha vida. Com umas lentes grossíssimas e mal amanhadas –que lhe conferiam um aspeto de professor Pardal, da banda desenhada- este velho afinador fazia milagres. Com o tato, às apalpadelas, com uma mestria inigualável, ele reparava qualquer batente mesmo desmantelado. No final da operação vinha então a afinação. Com um ouvido musical invulgar, ele não necessitava de nenhum acessório digital. Enquanto morou por cá, pela cidade, ainda me reparou mais alguns. Depois regressou à terra do mar e só de vez em quando me visitava. Sempre foi marcante o sublinhado que empregava nas palavras, na sua inesquecível retribuição de cumprimento: “vou muito bem, senhor Luís! Vivo encantado!”


Há dias encontrei-o, sentado num banco, na Praça do Comércio. Sozinho, de olhos postos sabe-se lá onde e, se calhar, embrenhado numa vida que não viveu, abandonado como sós ficam os velhos, como se de trapo sem prestabilidade se tratasse. Sem levar em conta o seu passado tão rico em sabedoria experiencial. Como todos temos uma história para narrar, convidei-o a contar a sua. Vamos ouvir. Senhoras e senhores, na primeira pessoa, Manuel da Conceição dos Reis:
“Corria o ano de1932 quando nasci na Cova, Gala, Figueira da Foz. O meu pai era pescador de bacalhau e a minha mãe estava em casa a cuidar de mim e a rezar para que o Criador o trouxesse de volta, em bom regresso e são e salvo. Apesar do berço pobre em que cresci os meus pais sempre quiseram o melhor para o meu futuro. Deveria ter pesado o facto de, com cerca de 5 anos, ter ficado quase sem ver a pouco mais de um palmo do nariz. Assim que terminei a 4ª. Classe concorri ao exame de admissão e fui para o Conservatório de Música do Porto. Durante sete anos aquela escola foi a minha primeira e segunda casas. Com cerca de 18 anos regressei à Figueira e fui tocar piano para o Lagosta Vermelha –era um cabaret, uma espécie de casa de alterne, como se diz agora. O dono era o Joaquim Pereira da Silva, que era despachante oficial da Alfândega. Estive lá a trabalhar à volta de 9 anos. Havia lá umas sete mulheres –e que mulheres, senhor Luís?!- que serviam ao balcão e à mesa. Sempre a seguir a carreira musical, fiz parte de sete agrupamentos de música ligeira. Um deles era internacional, o Musisom. Corremos a França toda a tocar para os emigrantes.
Depois, já cansado daquela vida de jogral, não me lembro bem em que ano, talvez na década de 1970 ou 1980, sei lá!, comecei a apostar na afinação de pianos. Coloquei um anúncio no mais antigo diário da cidade e, aos poucos, comecei a ser solicitado por particulares, por conservatórios –durante mais de 30 anos fiz serviço no Conservatório de Castelo Branco e da Covilhã. No Casino da Figueira, antigo Peninsular, fui responsável pelos acordes também durante três décadas e cheguei a tocar lá com o conjunto residente. Era no tempo em que o piano era o rei. Veja que o Conservatório de Castelo Branco tinha 16; o da Covilhã 15; e o Casino Peninsular tinha 6 ao seu serviço –aqui, lembro-me, sempre que o Carlos Paião lá ia tocar, antes, tinha de ir lá verificar se o piano estava afinado. Trabalhei para muitos artistas de nomeada; para o Shegundo Galarza, para o maestro Vitorino de Almeida e para a Maria João Pires, de Castelo Branco. Sem margem para dúvida, esta senhora é a maior pianista do País.


Sou solteiro e bom rapaz. Nunca tive apetência para casar –até confesso, nunca amei verdadeiramente uma mulher. Nunca me atirei a um grande amor. Também nunca vi um interesse por aí além de nenhuma delas. Certamente pesou muito o facto de eu ser quase cego; é uma doença hereditária. Esta anomalia condicionou para sempre a minha vida. Mas agora pensando nisso, tenho a certeza, o que pesou mais foi o facto de eu ganhar pouco. Achava que o que eu auferia não chegava para a sobrevivência de duas pessoas. Comecei a vislumbrar o futuro e achei que o piano, enquanto instrumento de grande porte e símbolo de novo-riquismo, tinha os dias contados. Eu sempre gostei da solidão. Sinto-me bem só. Geralmente todos os artistas são assim. Dou-me bem, talvez, porque sou cem por cento autónomo.
Há uns meses saí da minha terra, a Figueira, por dificuldades económicas. Agora vivo numa pensão da Baixa de Coimbra. Tenho uma reforma baixita. Recebo 256,39 €. Pago 135 € na pensão e vou comer à Cozinha Económica. O que sobra é para a lavagem da roupa e para uma buchita e um copo… nem só de pão vive o homem! É pouco, bem sei! Merecia melhor sorte, não é o que está a pensar? Claro que do alto dos meus 81 anos considero-me injustamente tratado, mas se tem de ser assim, o que se há-de fazer? Uma pessoa tem de se resignar. Apesar disso não me sinto revoltado. Contento-me com o que tenho. A política não me interessa; a política é para os políticos. Eu sou músico. A música é o meu mundo! Quando morrer só levo a música comigo. De bens materiais tenho apenas as roupas que visto e uma mala de ferramentas. Absolutamente mais nada! Quando partir para a grande viagem sigo feliz. Se nasci sem nada porque haveria de sair de outro modo?”


UM SAXOFONISTA NA VARANDA

 O som harmónico e melodioso ecoava em toda a Praça do Comércio nesta manhã de quarta-feira. Quem passava, sem parar, olhava para o segundo andar do prédio onde durante mais de uma década funcionou o Milennium BCP e pensava para si mesmo que seria mais um estudante maluco, talvez músico frustrado, a tentar mostrar os seus dotes artísticos. A verdade é que o instrumentista, para além de ser um reconhecido músico na cidade e até na Europa, era mesmo bom. Tratava-se da performance do António Alves, professor do Conservatório de Música de Coimbra e membro do Quarteto de Saxofones de Coimbra, Sax Ensemble. E o facto da elevada qualidade musical, inevitavelmente, fazia parar o mais apressado. “Mas o que é isto?” –parecíamos todos interrogar em coro. Quem vai responder à questão colocada é o Bruno Cortesão, um “cara” nosso conhecido aqui dos becos e ruelas da Baixa da cidade:


“Este espetáculo insere-se na apresentação pública à Baixa de Coimbra da nossa firma Bettertech –dedica-se à criação e desenvolvimento de software profissional. Abrimos estas nossas novas instalações nesta última segunda-feira aqui, no antigo prédio do BCP. Esta singular forma de exibição constitui a nossa maneira de nos mostrarmos e, de motu proprio, darmos a nós mesmos as boas vindas. Para, através da maior linguagem universal que é a música, apelarmos à sorte e à boa aventurança. Para além disso é também nossa intenção, de um modo invulgar, ajudar a dinamizar este Centro Histórico.
Até agora sediados na Avenida Fernão de Magalhães, somos uma empresa tecnológica cem por cento portuguesa. Neste edifício trabalham 35 pessoas. Sem falsa modéstia, somos uma das melhores firmas de software do país. Temos já representação na Europa, em Espanha e no Reino Unido, e na América, no Chile, no Brasil e no México.
Aproveitando para dar os nossos mais humildes cumprimentos a todos os frequentadores da Baixa de Coimbra, comerciantes, prestadores de serviços, moradores e visitantes, convidamos todos a assistir aqui, na nossa varanda, à atuação do Sax Ensemble, hoje, sexta-feira, dia 25.”


REFLEXÃO: QUO VADIS MACHADO?

 Esta semana, numa entrevista ao Jornal Público, Manuel Machado, o regressado presidente eleito e empossado na Câmara Municipal, afirmava -pressentindo-se com vincado orgulho- ter sido o responsável pela pedonalização das Ruas Ferreira Borges e Visconde da Luz nas décadas de 1990. Já o escrevi várias vezes, se para a solução criada nessa altura nada há a apontar –já que a densidade populacional de pessoas era elevada-, hoje, constatando-se uma sentida desertificação de transeuntes nestas artérias, a continuar a tomar esse alegado remédio com vinte anos, pelo prazo de validade expirado, se não houver reflexão, pode contribuir para a  morte de quem cá está e tenta resistir. Pelas declarações ufanas dá a parecer que o novo presidente não está aberto a alterações ao passado e a novas soluções emergentes.
Com este regresso, uma vez que Machado conhece bem a casa e as maleitas da Baixa, os comerciantes, muitos deles agonizantes, geraram expectativas –esperando não serem goradas. Anseiam por uma nova postura democrática para a discussão dos problemas que os afligem. Uma das maiores barreiras sentidas nos últimos 25 anos foi o autismo, a falta de diálogo, o esquecimento a que foram sistematicamente votados. Foi sempre o “quero, posso e mando”. Sem escutar quem cá trabalha, reside e sofre. Se até aqui, em pró-forma, se fazia de conta que se ouvia a associação representativa de classe, agora, esta desapareceu, morreu, e os comerciantes estão entregues ao devir. Por isso mesmo, apela-se ao bom senso deste novo executivo. Se assim não for adivinha-se o resultado: os lojistas vão continuar a ser carne para canhão na frente de combate à crise.


Sem comentários: