sexta-feira, 20 de setembro de 2013

LEIA O DESPERTAR



Para além  do texto "REFLEXÃO: VER PARA ALÉM DA NUVEM", deixo também as crónicas "NAS BARBAS DO DEIXA-ANDAR"; e "O ÚLTIMO DIA DA NOSSA IMPÉRIO".




REFLEXÃO: VER PARA ALÉM DA NUVEM

 Os jornais locais desta última segunda-feira, Diário de Coimbra e Diário as Beiras, davam à estampa a primeira página com o título “Agente da PSP preso após assaltar casa”. Quatro dias antes, nos mesmos periódicos, a “caixa-alta” era assim: “Assaltou à mão armada após falência da loja”. Já para não falar nos roubos noticiados que não merecem destaque especial vemos que estamos transformados numa sociedade em fim de linha, recorrendo a tudo, incluindo a violência, para sobreviver.
Não pretendo lavar o ato em atenuantes de águas sujas mas, por um momento, gostaria de pedir reflexão para o que está a acontecer a pessoas que, independentemente da profissão, sempre levaram uma vida digna e agora, pela força das circunstâncias, se vêem empurradas para o crime. Será que para além da vontade em praticar o facto não estiveram motivações poderosas? E quem desencadeou essas causas pode, como Pilatos, lavar as mãos na denominada moral social? Uma sociedade que tem o valor ético como fio condutor que entrelaça as teias da coletividade nos costumes, ethos, assentes na justiça, na equidade do tratamento justo, precisa do princípio da segurança, por parte do Estado, como um primado subjacente à sua existência -a seriedade, enquanto valor honestidade, só se multiplicará se estiver alicerçado na reciprocidade e estiverem criadas condições mínimas de convivência social. Quando falta esta base ínfima, que transforma um cidadão cumpridor num ladrão, os valores desaparecem e só se poderá esperar o pior que existe dentro de cada um de nós. Ora o que está este Estado, enquanto entidade abstrata de representação comunitária, a fazer aos seus cidadãos que jurou defender em Contrato Social assente na Constituição da República? Como juiz em causa própria legislando ao sabor das suas conveniências, numa arbitrariedade subversiva, por um lado, visando o vínculo relacional do funcionário público, a montante baixa-lhes o salário, único rendimento para fazer face a despesas assumidas anteriormente e incentivadas numa base de confiança política, e, por outro, a jusante aumenta-lhe a carga fiscal a pagar. Por outro lado ainda, sabe-se que ao cortar os rendimentos dos assalariados da função pública, inevitavelmente, se vai mandar para o charco a procura interna e, consequentemente, abalar toda a economia com falências, com desemprego em massa, cujo objeto visa unicamente baixar os custos do trabalho. Na subsequência, os privados, tal como a função pública, com compromissos financeiros assumidos, confrontam-se perdidos neste cenário de guerra onde, em estado de necessidade, a ação direta prevalece e vale tudo para sobreviver. Perante o que está acontecer, poderemos condenar sem mais nem menos quem se vê obrigado a recorrer ao crime?



NAS BARBAS DO DEIXA-ANDAR

O homem que sobe a encosta e caminha na minha direção, apoiado numa bengala, parece puxado por fios invisíveis que lhe dão alento e fazem esquecer o peso de muita história corrida em muitas décadas passadas. De seu nome Augusto Bastos Dias, nasceu em Lograssol, uma pequena aldeia irmã-siamesa da Vacariça e que a dois passos tem o Luso como padrinho. Viu a luz pela primeira vez em 1926, ano da requisição de Salazar para Ministro das Finanças pela revolução militar de 28 de Maio de 1926 –que não aceitou, ocupando a pasta somente em 1928-, que instituiu a Ditadura Militar e viria a contribuir para a implantação do Estado Novo. Desde miúdo, de cueiros, que se lembra do País em crise, ou não tivesse sofrido no corpo as agruras da pré e após 2.ª Grande Guerra em que uma sardinha era dividida em três na humilde casa de trabalho árduo campestre. Se o calcar fogo imuniza os pés à dor, estas memórias de penúria não o acomodaram e, pelo contrário, fizeram de Augusto –do latim sublime, sagrado, grande- um combatente na arena da polis, habituado a lutar pela defesa das ideias em que acredita, em que nem a idade de 87 anos o faz render-se ao situacionismo crescente como erva daninha em campo sem cultivo. Foi emigrante muitos anos na Alemanha. Foi neste país teutónico que sentiu a disciplina e o respeito pelo bem-estar do cidadão comum. Ali, nesta grande nação europeia, aprendeu a dar-se aos outros para receber. Considerar o próximo para ser considerado.
Num tempo de sociedade acrítica, passiva e conformista, que apenas responde aos estímulos egoístas, Bastos Dias é a antítese do homem apagado, sem brilho nos olhos e sentado no sofá. Augusto é um revolucionário urbano que sente faltar-lhe o tempo para modificar as coisas. Lá em casa, na pequena sala, aquela velha máquina de escrever, se falasse contaria, é a testemunha viva dos desabafos despejados nas muitas cartas enviadas a tantas instituições que detêm o poder de decisão em Portugal. Raramente lhe respondem, mas, como maratonista persistente, este lutador de ringue não desiste. Ele sabe que, enquanto cidadão, está a fazer o que deve –e quem faz o que deve faz o que pode, dizia Torga.
Desta vez, ao vir ter comigo, Augusto traz consigo um desânimo que o atropela num caso que para ele, idoso vulnerável pelas dores do corpo, e para tantos outros da sua idade é um suplício. Mas para se sentir o martírio de estar tolhido pela idade tem mesmo de se ser velho, estar lá no epílogo da vida, e experimentar a dificuldade de locomoção. Porém, como todos julgamos ser eternos nunca pensamos na velhice e quando se lá se chega à enseada de ancoradouro já é tarde para se alterar o que quer que seja.
Bastos Dias reside junto à Rua Carlos Seixas e diariamente toma o autocarro junto ao espaço onde se realiza a feira semanal do Bairro Norton de Matos. Se durante a semana não tem problemas em subir para os veículos, já ao sábado, dia do certame, não é assim. É que toda a área destinada a paragem fica ocupada com automóveis e, quase sempre, com carrinhas de teto elevado obstaculizando a visão de aproximação. Em consequência, obriga os muitos idosos como ele a estarem em pé e a percorrerem mais uns metros até ao transporte coletivo. “Para a maioria –diz-me-, gente nova que se move bem, este queixume até é comezinho, mas, por exemplo, imagine-se andar de muletas, verá o quanto custa percorrer uma pequena distância ao calor ou à chuva. Sinto-me espoliado do meu direito. Já me dirigi verbalmente ao senhor Comandante da Polícia Municipal –a primeira vez que o fiz ainda era o senhor Manuel Lobão que dirigia este corpo de agentes-; já apresentei requerimentos ao senhor Presidente da Câmara Municipal de Coimbra; ao senhor Comandante da PSP; ao administrador dos Transportes Urbanos de Coimbra –destes só obtive resposta deste último. Já fui à reunião do executivo municipal, mas tudo continua na mesma. Enquanto as forças não me abandonarem vou continuar a reclamar. Será que ninguém pensa que um dia também vai ser velho?”




O ÚLTIMO DIA DA NOSSA IMPÉRIO

 Nas ruas largas da cidade, os altifalantes colocados nos veículos, em alto som e acompanhados com música, como Messias Salvador, divulgam as propostas dos candidatos à autarquia de Coimbra. Todos anunciam uma nova vida. As frases espalhadas ao vento parecem ter sido todas coladas com cuspo. É “Juntos por Coimbra”, é “Coimbra com amor”. De repente, neste final de verão, Coimbra passou a ser a amada, a venerada, a mãe de todas as virtudes.
Alheio a tudo isto, a este ambiente de festa, um homem sozinho e amargurado sofre a bom sofrer. Mais que certo com as lágrimas a correr pela face cansada de uma vintena de anos a comandar um navio que, a navegar contra a corrente, verdadeiramente nunca dominou. Sem apelo com agravo, sem pompa nem glória, sem memória pelo seu esforço, sem uma palavra amiga pelos seu empenhados desempenhos, físico e financeiro, este comandante, que dá pelo nome de António Barroso Martins, vê este cruzeiro que se chama “Império”, de cerca de sete décadas a sulcar as águas deste lago de insensibilidade na Baixa de Coimbra, submergir hoje. Fica o homem, porque é forte e a tudo resiste, mesmo aos sopapos da vida. Ele sabe que se vão os anéis e ficam os dedos. Só perde quem tem alguma coisa para perder. Só larga dor quem ama algo que como escultor na pedra dura viu surgir a obra-prima saída do ponteiro e da sensibilidade do seu olhar. O amor é um processo maturado em longas noites de insónia. Hoje morreu a nossa Império. A cidade está de luto. Até aqui ninguém se importou com a saúde periclitante deste histórico e reputado café do Centro Histórico da urbe. Amanhã, presume-se, haverá uma procissão para visitar a morte morrida deste ícone de memória. Haverá frases angustiadas em jeito de interpelação Lapalissianas: “a Império fechou? Não pode ser! Ainda ontem estava aberta!”. Haverá outras que, como juiz em processo sumário, sentenciarão: “as empresas nascem e morrem. Ponto final!”.
Distante de todas estas especulações, no escritório do primeiro-andar, António Barroso Martins, o dono da Império nos últimos 20 anos, está à minha frente de olhos semicerrados. Está conformado com o rumo que o destino se encarregou de dar ao seu projeto existencial. “Eu tive culpa, sabe? Como todos os empresários, sou ambicioso. Tive demasiada fé nas minhas forças e falhei. Eu fui o forcado que tentou pegar o touro pelos cornos sozinho. Faltou-me a ajuda na retaguarda. Em 1993 esta casa tinha 43 empregados. Estava na falência, sem crédito bancário e com dívidas de mais de 40 mil contos, duzentos mil euros na nova moeda. Nessa altura a economia como barco em alto mar velejava à bolina. Acreditei que era possível manter o pessoal e, para não o despedir pagando elevadas indemnizações, fui injetando aqui dinheiro ganho em outros negócios. Tenho cá mais de um milhão de euros que, como pó, desaparecerá ao vento. Tenho ainda 4 funcionários. Sinto muita pena destes. Muita, mesmo! Dos outros seis, dos que desencadearam a insolvência, nem por isso! Embora compreenda a sua motivação como credores. Mas eu perdi muito mais aqui. Foram duas décadas da minha vida que se apagam hoje. Ainda ontem, de manhã, fui à Loja do Cidadão, à EDP, pedir para pagar em prestações a eletricidade que estava na iminência de corte. Disseram que não era possível fracionar. Como sempre tenho feito nos últimos anos, peguei na minha reforma e fui liquidar a dívida. Hoje fui surpreendido pela visita do administrador da massa falida. Tenho de encerrar hoje mesmo. Perante isto, o que fazer? Hei-de sobreviver! Vai ser muito duro, eu sei, mas não sou o único!”



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