sábado, 27 de julho de 2013

NAS MALHAS CAÍDAS



 Antes de entrar no assunto que leva escrever esta crónica, como primeira ressalva, vem-me à ideia as permanentes chamadas de atenção da minha falecida mãe: “ai Toino, Toino! Vês sempre tudo ao contrário. És um tolo, rapaz!”. Ela tinha razão. Às vezes tenho alguma dificuldade em aferir a bondade de certas iniciativas que se fazem em Coimbra, e mais propriamente nesta zona velha. O problema é que vejo toda a gente a aplaudir e, em solilóquio com meus sapatos gastos e cansados de tanto calcorrear sendas e veredas, dou por mim a duvidar da minha própria avaliação. Poderia elencar aqui meia dúzia de exemplos, mas, para já, vou apenas debruçar-me sobre uma iniciativa que está patente em vários pontos da cidade e até ao fim do mês.
Pelo que se vê em algumas zonas, incluindo a Rua Direita e a Rua Fernandes Tomás, na Baixa, está a decorrer, durante este mês de julho, o primeiro Festival de Croché Social. Segundo o Diário de Coimbra, de 5 do corrente, “a iniciativa pretende embelezar vários pontos da cidade com trabalhos em croché feitos por utentes de 40 instituições e associações de solidariedade social da cidade. O talento e a criatividade dos mais idosos preenchem agora de croché as árvores, as rotundas, os postes e até um autocarro do Ateneu de Coimbra (…)”.
Com toda a franqueza, começo por pedir desculpa aos promotores desta acção. Tenho a certeza de que a desencadearam com a melhor das intenções. Porém, quando passo junto à Câmara Municipal, ou na rotunda dos HUC, e vejo aqueles pinos forrados com crochet, feito com tanto amor por alguém mais velho do que eu, completamente desbotado, a estorricar ao Sol, como roupa a corar esquecida na eira, fico apreensivo e questiono a positividade da ideia. Pressinto ali uma falta de lógica, uma relação desproporcional entre a causa e o efeito. Uma enorme sensação de desperdício de recursos. Não sei bem se conseguirei ser claro, mas vou tentar analisar esta iniciativa sobre uma única vertente: o trabalho.
Começando então pelo trabalho, poderemos defini-lo como actividade física ou psíquica, feita por humano, cuja intenção, objecto, é realizar, transformar, ocupar o tempo, considerando que o ócio, para além do necessário, leva ao definhamento mental e é nocivo à criação intelectual do homem. É ponto assente que o trabalho, enquanto função, deve ser proactivo e dignificar a pessoa. Daí se continuar no eterno conflito em saber se deveremos considerar a prostituição uma profissão reconhecida e relevada socialmente –um dia, não se sabe quando, talvez quando cair a máscara da hipocrisia, vai ter de se decidir. Enquanto se pensa e repensa, entre o sim, o não e o talvez, as prostitutas, como Madalenas condenadas pela história, num limbo de ostracismo, continuam sem qualquer protecção social e a serem espancadas por canalhas sem escrúpulos. Continuando na minha narrativa, é também acordado que todo o labor deve ter acoplado uma retribuição: monetária, enquanto acção individual e fonte de rendimento; de utilidade colectiva, pro bono, implicando, pela sua gratuitidade, o correspondente reconhecimento público; prazenteiro, individual, imbricado na satisfação pessoal, e projectado na ocupação e na criação.
Depois destas alegações, poderemos então considerar trabalho este resultado material de um universo de pessoas idosas e carenciadas, no tecer manualmente centenas de metros de bordados? Sim, podemos –penso que não há dúvida. O que me gera alguma intranquilidade é o chamado efeito placebo, o fazer crer a alguém carecente de que o resultado da acção implica melhoramento do seu estado, físico ou anímico. E escrevo isto tendo em conta que, provavelmente, o fim que se espera para estas obras deverá ser um qualquer recanto esquecido ou o lixo. Será que o produto do seu labor esforçado, tendo em conta o seu ideal de decorar a cidade durante um mês, é bastante e dignifica toda a entrega e dedicação dos autores obreiros? Bom, se calhar, só eles poderão responder. Aparentemente, pelas suas manifestações de contentamento na televisão, assim parece. Mas, levando à letra que são utentes de instituições de carácter social, marcadamente com suas diferenças, será que não estamos implicitamente a desvalorizar o seu empenho?
Bem sei que a questão não é pacífica, é que, comparando, podemos ser transportados para outros lugares com ruas ornamentadas com flores de papel e chãos atapetados com pétalas de rosas em festas alegóricas. Mas, a meu ver, neste caso, são utilizados materiais perecíveis. Ou seja há uma relação directa entre o nascimento e morte, uma temporalidade entre a criação, o definhar e o perecimento. Não será o caso do crochet –como todos sabemos, é uma arte laboral ancestral, passada de mães para filhas, cuja utilidade, de longa duração, assentava essencialmente nas dificuldades financeiras da família, pela carestia da vida. Este vício familiar, rural e urbano, desapareceu pela desvalorização acentuada dos têxteis e por outras ofertas de ocupação dos tempos livres. As razões que sempre lhe estiveram subjacentes, assentes na necessidade, deixaram de existir.
Enquanto homenagem a um costume familiar em vias de desaparecimento foi uma boa forma de chamar a atenção? Deixo a resposta a quem me ler.

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