quarta-feira, 10 de julho de 2013

EDITORIAL: A CIDADE DOS 25 CÊNTIMOS



 Ontem foi a enterrar Manuel Magalhães. Este homem esteve na Baixa mais de seis décadas. Como todos os congéneres da sua geração, herdeiro de uma família muito humilde na periferia da cidade, por alturas de 1950 começou como marçano na sapataria Reis. Embora as informações sejam escassas, presume-se que o “Manel”, em sociedade com outros ex-empregados, teria tomado conta da gerência por volta do início dos anos de 1970.
Entre altos e baixos no comércio, abruptamente e por alegadas dificuldades financeiras, encerrou há dois anos a sua segunda alma, a Sapataria Reis. Ontem, como já referi, foi a enterrar. O que, por silogismo, se pode entender que comerciante sem estabelecimento é um homem morto. Mas não é esta análise que pretendo dissecar. Sem pretender relevar o meu acto, enquanto seu vizinho, que acompanhou de perto o seu declínio e encerramento, fui ao seu funeral. Estranhamente, não reconheci lá a presença de um único comerciante da Baixa de Coimbra. O que me leva a especular que se o Magalhães fosse um abastado homem de negócios agora falecido, mais que certo, teria lá meia Baixa a acompanhar o féretro. O que também leva a supor, e naturalmente não me surpreende, que no acompanhamento final terreno, ser rico ou pobre, bem ou mal sucedido, pesa muito na decisão de prestar condolências.
Já há uns tempos que toco à quarta-feira na Rua Ferreira Borges com a denominada Orquestra de Músicos de Rua de Coimbra. Por incrível que pareça, sobre vários pontos de vista, sobretudo do psico-comportamental está a ser uma experiência riquíssima. Nunca imaginei que estes músicos fossem tão desprezados por quem passa. Apesar de as letras das canções que mostramos chamarem a atenção para o facto de que quem toca na rua ser um artista que presta um serviço à comunidade, em boa verdade, não se conseguem resultados satisfatórios. Vêem-nos sempre como desgraçadinhos e pedintes. Exemplos? Imensos. Até agora, mesmo sendo um bom projecto de inclusão pela arte, não se conseguiram mais instrumentistas –quando o Paolo Vasil, acordeonista, conforme seu desejo, regressar à Roménia não sei o que irá acontecer. Mais ainda, quando estamos a tocar na rua, raramente os transeuntes se chegam a nós, a menos que nos conheçam. Muitas vezes dá a impressão que temos lepra. E os políticos cá da parvónia não têm culpa? Claro que têm. Só páram para nos ouvir quando chamados à atenção para o efeito –já fiz isso. E quanto à comparticipação? Já algum deles deu alguma coisa? Como nenhum faz o gesto de atirar a moeda –atirar a moeda como se atira o amendoim ao macaco é o comum entre todos os passantes dadores. Atiram e andam, como se o acto de dar fosse algo que envergonha e seja feito em contra-mão. Como tenho algum à-vontade, há tempos fiz uma experiência interessante. Quando estávamos a tocar, passou um político da nossa praça em passo apressado. Como não tenho pingo de vergonha, saí ao seu encontro e referi: doutor dê aí uma nota para os músicos de rua. Estão aqui a animar a via pública quase gratuitamente. Olhe que é mesmo para eles. Eu não ganho nada! O homem, como se fosse apanhado na curva, olhou para mim como se olha para um fantasma e retorquiu: “olhe, agora não tenho tempo. Vou ali a cima e já volto”. Foi lá tratar da vidinha e quando voltou a passar, meteu as mãos no bolso, curvou-se, colocou as mãos em concha e sabem quanto deu? Quase que escrever o montante não dá para esforço: 25 cêntimos. Verdade! Uma pessoa que deveria o modelo na generosidade doou esta miséria. Quando vi a hipocrisia, saltei atras dele e exclamei: olhe lá, então só dá umas moeditas? Dê lá uma nota para exemplo a seguir de quem vê. Reparem na sublime resposta. Uma pérola: “você deveria ter vergonha de estar a pedir!”
Uma cidade assim terá remédio? Se calhar tem, mas vai demorar. Estas atitudes discriminatórias são exclusivas de Coimbra? Não. Penso que não. É transversal ao país. É o resultado de um contrafeito respeito assente em cima de um falso estatuto, onde o materialismo balofo conta a bom contar. O respeito conquista-se pela nobre arte de lutar, nunca se deve impor à colectividade por licenciaturas balofas ou riquezas desmesuradas. O estatuto a mesma coisa, nunca se pode adquirir à custa de uma função concedida pela administração pública ou por outro qualquer lugar privado. Talvez valha a pena pensar nisto.

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