quinta-feira, 20 de junho de 2013

LEIA O DESPERTAR...



LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA 

Para além  do texto "UMA FOGUEIRA NO ROMAL", deixo também as crónicas "UM MURRO CONTRA A SOLIDÃO"; "UM ÍCONE DEBILITADO"; e "VIDAS ERRANTES (1)"


UMA FOGUEIRA NO ROMAL

 É quarta-feira, dia 12. Pouco passava das 20 horas. No Largo do Romal começaram as populares fogueiras de São João. O sol, espalhando sombras num entardecer de generosidade divina, vai-se preparando para se pôr no horizonte. Como trepador a subir a montanha, o brilho do astro-rei, paulatinamente, vai subindo cada vez mais alto na torre da Igreja de São Bartolomeu, ali mesmo ao lado.
No recanto mais típico da Baixa, com mais de cem anos de historial de fogueiras mandadas por alturas dos santos populares, as cerca de vinte mesas, pertencentes às duas tabernas existentes no pitoresco local, espalhadas por metade do terreiro, estavam praticamente completas de todos as cores e quadrantes, social, político e religioso. O prato mais pedido era o das sardinhas assadas com pimentos.
Com ar descontraído, à civil, estava um agente da PSP que diariamente patrulha estas ruas estreitas; embora fora de serviço, mas polícia não desliga, e, como tal, sempre a varrer o ambiente. A verdade é que ali respirava-se paz, concórdia, e tolerância com todos os credos e profissões.
Numa mesa mais ao centro, a conviver com amigos, estava o Manel, que, há vários anos, nunca perde uma alegoria destas. Estão ali as suas reminiscências. Nos idos anos de 1970 trabalhou ali mais de uma década numa antiga firma de eletricidade, hoje, já desaparecida.
No lado esquerdo, em pé, a beber uma cerveja e a conversar com o Bruno, está o Naifas, o cigano, perfeitamente inserido neste ambiente multicultural.
No lado direito, como farol em dia de nevoeiro a romper a imensidão, o Emplastro, com o cabelo empastado em brilhantina, varria tudo em redor à procura de uma garina que lhe servisse de porto de abrigo.
Para trás e para diante, a coxear, o pintor Isaías, com as calças todas sarapintadas de tinta, ensaiava uma abordagem a uma virgem quarentona.
Descomplexados, prontos a curtir o som da orquestra, o Jacinto e o Anacleto, cabo-verdianos, de cor de pele achocolatada, com chapéu de palha na cabeça, irão mostrar como se dança verdadeiramente uma morna caliente.
Numa mesa de canto, a Lurdinhas, à espera de um prato de sardinhas, trocava um olhar de enleio com a sua companheira, ao mesmo tempo que, sub-repticiamente, não fosse alguém ver, lhe afagava uma das papudas mãos.
Bateram as 22 horas. O conjunto contratado pela Junta de Freguesia de São Bartolomeu, numa réplica de Tony Carreira, deu início ao bailarico.
A menina Etelvina, viúva dos pés à cabeça, abriu o salsifré a dançar com a dona Estefânia. Ao lado, o Xico, polidor de esquinas de profissão, com uma grande porca no focinho, quase que embatia nestas pobres e inocentes almas, residentes numa ruela ali próximo. A roda começou a encher-se nas músicas convidativas de Emanuel e Quim Barreiros. Ao som da banda Mar & Samba, com o Toy e a sua inconfundível boina à Che na bateria, podia ver-se o Toino Manias a exibir-se, dançando sozinho. Mais ao lado, toda enroscada no seu querido, a Marquitas, que habitualmente a esta hora costuma estar a trabalhar na avenida, ali próximo, alugando o corpo a retalho e resguardando a alma, mas hoje, a entrar na noite de queima de todas as calorias, nem o seu melhor cliente a faria arrancar dali. Aliás, por causa das coisas, até desligou o telemóvel. Nesta noite de festa popular, o único que a vai ter nos braços é mesmo o seu Isquim, o seu bacano mais que tudo. É o amor da sua vida. Que pena às vezes se aborrecerem sobretudo quando ele está com a buba, esquinado, e lá vem um sopapo desnecessário do raio da besta do homem. Mas que se há-de fazer? Pensa a trabalhadora do turno da noite para si mesma. Ninguém é perfeito e há muito que deixou de acreditar na vinda do seu príncipe encantado montado num cavalo branco.
Por cima dos pares de dançarinos, as bandeiras de papel mostravam querer imitá-los e pareciam também bailar em fustigo de uma aragem mais afoita.
O vinho, robusto e bem encorpado, misturado com o cheiro a sardinha assada, corria a rodos pelas largas dezenas de gargantas sequiosas. E vieram as 23 horas.
Como de costume, e legitimamente, Carlos Clemente, o presidente da Junta de Freguesia de São Bartolomeu, o obreiro e continuador destas fogueiras que têm mais de um século, a queimar os últimos cartuchos, em fim de mandato pela representação dos fregueses e extinção da freguesia, no meio do improvisado palco, interrompendo a sequência de músicas portuguesas, disse: “Boa noite. Muito obrigado por terem vindo. Valeu a pena vir à Baixa e ao Largo do Romal. É um trabalho de quatro pessoas, que nos honra trabalhar para Coimbra e, em particular, para a Baixa. Às 01H30 acaba! Os meus pedidos de desculpa para os moradores mas é por uma boa causa”.
Nas muitas janelas em volta do largo apenas uma mostrava vida, emoldurada com uma senhora de rugas avançadas. Todas as outras fenetres estavam envoltas em silêncio de sepulcro.
A festa continuou com a cantiga popular “Bairro Alto com seus amores tão delicados”, e, mais uma vez, a Fany, toda apertadinha das coxas até aos seios, num repente de solavanco, puxou para junto de si o Evaristo, mais conhecido por sorrisos, que, por acaso, estava mesmo contente, não se sabe se pelo calor emanado do corpo da Fany se dos vapores etílicos do carrascão sangue de Cristo.
Este ano, tal como em anos anteriores e sem fim de reinado à vista, o rei da dança foi o Jorge, acompanhado da Andreia. A imitarem Richard Gere e Jennifer Lopes, no filme Dança Comigo, naquele terreiro de calçada portuguesa, pareciam anjos de algodão a voar em céu azul. Também repetindo o ano passado, Barbosa de Melo, acompanhado pela simpática esposa, picou o ponto. Como a dizer aos presentes que, embora da mesma cor partidária do antecessor, era fermento de outra massa, o candidato pela Coligação por Coimbra espalhou charme no encantador Romal.
O mandador improvisado das marchas, que este ano substituiu o histórico Carlos Mendes, como pavão, levantou o pescoço, sacudiu os ombros, ajeitou a camisa, e subiu ao palco. A próxima meia hora era dele. Acompanhado pelas melodias de sempre, o homem lá ia ordenando como podia aquele exército mal-amanhado, mas tudo tão ordeiro naquela amálgama coletiva, através da dança e da música, como elos de interstícios integradores, a contribuir para uma Baixa que, apesar do pessimismo presente, se anseia próspera e melhor.



UM MURRO CONTRA A SOLIDÃO

 Cerca das 20h00 de quarta-feira, da semana passada, ouviu-se um estrondo na sem-vivalma, deserta, Rua Eduardo Coelho. Por ainda estar na loja, assomei à ponta da rua e vi um indivíduo completamente a cair para todos os lados, que mais parecia uma cana no canavial tocada pelo vento. Como aparentemente não detetei algo justificativo do barulho recolhi ao meu cantinho. Passados uns dez minutos vieram dois residentes e perguntaram: “você não tem o contacto do telefone das funcionárias da sapataria Teresinha? É que está lá um vidro da montra partido. Já ligámos à polícia!”
Não tinha o número de nenhuma das funcionárias. Entretanto veio um carro da PSP que tomou conta da ocorrência. Por coincidência, ou não –a dar provimento ao aforismo de que o criminoso volta sempre ao local do crime-, o presumível agressor passou no mesmo local. Naturalmente que o indiquei ao agente, embora apenas como suspeito, uma vez que não presenciei o facto. O cívico lá o identificou e, mais que certo por falta de provas, não poder fazer mais nada, lá foi o homem à vida. Com certeza a pensar que a existência de quem não apetece fazer nada é uma chatice das grandes, a matutar como é que haveria de expurgar a solidão que o consumia, e em descarregar a sua ira, a sua frustração, em uma qualquer outra loja. Se até lhe correu bem, porque não tentar mais uma e outra vez? Se calhar, uma montra de sapatos, cujo estabelecimento dá trabalho e emprego a duas pessoas, para este vadio, simboliza o paradigma da riqueza abastada e culpa projetada da sua pobreza –essencialmente espiritual, porque é dos muitos que por aqui vagueiam e nunca fizeram nada de útil. É de supor que receberá o RSI, Rendimento Social de Inserção.
Duas interrogações se retiram deste anómalo facto. A primeira, porque não colocam os lojistas o número de contacto de telefone na montra do estabelecimento? A segunda, nestes casos concretos de agressões públicas e particulares ao património, o que se espera para registar os acontecimentos e retirar o RSI a esta cambada de inúteis, que, quase num gozo displicente, só prejudica quem trabalha?



UM ÍCONE DEBILITADO

 Victor Campos, o mais velho dos irmãos com o mesmo nome, uma das cintilantes estrelas da Académica dos finais de 1960 e princípio de 1970, de 69 anos, sofreu na semana passada um AVC, Acidente Vascular Cerebral, muito grave. Segundo alguém próximo, muito amigo e de lágrimas nos olhos, “foi mesmo muito grave, mas, felizmente, já está estabilizado. Caramba! A vida é muito injusta!”
Quis o destino que nos últimos meses tivesse a sorte de voltar a reencontrar os irmãos Campos e, particularmente, a simpatia do Victor Campos. Desde Fevereiro que, à noite e quase todos os dias, nos encontrássemos no Café Trianon. Naquela sua forma de menino intemporal, com caracóis ao vento e boné à anos 30 enterrado na cabeça, voltámos a recordar o velho Mandarim e as suas histórias, onde veio à baila os tão conhecidos empregados do celebérrimo café da Praça da República, desde o Mendes, ao Talina, ao Tarrafa, ao Hugo ao Pardal, ao Fernando Gomes e outros tantos que agora não lembro. Prometi-lhe que, como lá trabalhei, um dia destes publicaria algumas histórias que escrevi sobre o velho café do senhor Antunes neste jornal. Ficou assente que o avisaria para que ele pudesse ler.
Foi com profunda consternação que a notícia caiu como uma bomba no mais afamado café da zona de Celas, o Trianon, na Praça Fausto Correia. A partir daí, diariamente, ao serão, o tema da tertúlia não mais deixou de ser o mesmo.
Com um enorme abraço de amizade, faço votos, muito sinceros, para que o “nosso” Victor recupere depressa deste abalo telúrico que invadiu o seu corpo e saia depressa da convalescença forçada.


VIDAS ERRANTES (1)


 Há dias vi-o transpor a porta da minha loja. Eu estava a falar com um cliente. Cumprimentámo-nos, e, rapidamente, depois de um olhar intuitivo que a racionalidade não explica, eu disse: adivinho que precisas de falar comigo. Agora estou ocupado. Vem um dia destes, vamos almoçar e conversamos. E o João André –vamos tratá-lo assim- deu meia volta e foi-se à vida. O João, de 33 anos, foi colega da minha filha. Ambos têm mais ou menos a mesma idade. Nos tempos de estudantes na Universidade eram muito amigos e frequentou a minha casa. O André é um rapaz alto, todo charmoso e do género em que uma mulher volta o pescoço duas vezes para o rever.
Há dias, na sexta-feira 31 de Maio, próximo da hora do almoço, sem se fazer anunciado, mais uma vez transpôs a porta e, na sua voz pausada, mansa de ovelhinha tresmalhada e abandonada, interrogou: “posso ir almoçar consigo?”. Foi então que me fixei no João. Barba por aparar de várias jornadas, em aspeto desleixado, de chinelos e com os pés muito sujos, calças descosidas nos fundilhos e a ver-se as cuecas, uns tiques perfeitamente notórios de alguém que está descompensado psiquicamente e um horrível cheiro intenso, parecido com inalações de uma esterqueira, saído de um corpo que já não sentiria água há muitos dias. Fomos almoçar ao pequeno snack onde vou diariamente contentar o estômago. Sentámo-nos na pequena sala. Estou convencido que, para os donos da casa e para os clientes presentes, o smel que invadiu o pequeno estabelecimento foi a prenda negra de um dia que, especulei, já não seria brilhante. Fiz de conta que o incomodativo odor era de um prado verde com cheiro a jasmim. Reparei que o João comia sofregamente como alguém que já não ingeria alimentos há uns tempos. Fomos conversando calmamente sem atropelos e de modo a que ele não sentisse que eu estava a invadir a sua privacidade –sem acreditar totalmente na reincarnação, estou convencido que noutra vida passada eu teria sido psicólogo. Não exatamente assim chamado, porque o ramo da ciência da mente e da alma tem escassas décadas, mas qualquer coisa parecido com confidente e tratador de ânimos em desalinho. E o André, enquanto ora dobrava ora desdobrava o guardanapo compulsivamente, começou a falar: “sou do Alentejo; de uma típica localidade alentejana, de casario baixo, caiado de branco e portadas a azul-cobalto. Depois de saltar de trabalho em trabalho, arranjaram-me uma colocação na vila e sede de concelho. Apaixonei-me por um médico, não me aceitaram, incluindo o meu pai, que ameaçou matar-me, apertou-me a garganta –e levou a mão direita ao pescoço. A minha mãe não se importou. Tem medo dele. Ela só está na sua companhia pelo conforto financeiro que ele lhe dá. Ela tem medo dele. Lembro-me de a minha mãe se ter tentado matar por duas vezes, era eu ainda uma criança”. Em gestos exaustivos sem controlo, levava a mão ao cabelo, olhava para o lado, sorria sem nexo de causalidade. Tragava a comida com voracidade. Fez de uma côdea restante um guardanapo para limpar completamente o prato e deixá-lo a brilhar. Despejou o molho sobrante sobre a peça vidrada, pediu mais pão e repetiu a mesma operação, como se, através do quadro figurativo, lambesse o prato redondo com os lábios sequiosos de comida.
Mais uma vez, recorrendo à intuição, enfatizei: o teu pai foi militar e não aceitou a tua homossexualidade… Sim, foi da marinha”, respondeu. Enquanto tragava uma garfada do delicioso bacalhau com natas, pensava neste estranho país que é o nosso. Legaliza-se o aborto, homologa-se o casamento gay, aprova-se na Assembleia da República a lei da adoção para casamentos do mesmo género. No entanto, no que é básico, que é o apostar na educação, ensinando o respeito pelas diferenças de cada um, na tolerância, contribuindo para a felicidade individual, não se faz absolutamente nada. Continua-se a fazer de conta, para o exterior, que somos uma nação modernaça, quando, de facto, salvaguardando a exceção, somos um rebanho de pacóvios, rústicos, intolerantes e defensores de uma masculinidade macho-latina, heterossexual, que nunca existiu.
Continuava o João, “nunca mais quero ver o meu pai. Para mim, ele não existe, morreu!” – o destino é cruel, pensava para mim em solilóquio com os meus botões. Como se eu não soubesse bem, sentindo na pele, as relações entre pai e filho. Entre os meus amigos, estou rodeado de casos parecidos com o deste André. E sendo assim, se acaso não fosse imparcial, a julgar numa leviandade notória, teria o direito de condenar este pai, assim sem mais nem menos? Como não relevar a sua frustração? Como não entender que, certamente num esforço sem precedentes, deu tudo a este filho, proporcionando-lhe instrumentos, através de um curso universitário, para que fosse uma pessoa realizada, respeitável e com família? E o que recebeu em troca? Um alcoólico, um pródigo, que não liga nada, e não dá valor, ao que lhe cai no regaço sem esforço. Para piorar, sendo de uma aldeia pequena do Alentejo, onde todos falam da homossexualidade, com desdém, chamando aos diferentes paneleiros, como aceitar um filho assim? É fácil? É sim, desde que o primogénito seja do nosso vizinho. Felizes daqueles pais que têm herdeiros certinhos, pensava eu enquanto o João emborcava mais um copo de tinto.
Ao menos, posso ligar à tua mãe? Interroguei. Na afirmativa, deu-me o contacto. Mas precisas de ajuda urgente, João –continuei. Não sei se sabes mas existe a linha 144, é um programa de assistência de emergência social. Aceitas ir comigo à esquadra da PSP? Liga-se a pedir ajuda imediata, pelo menos para tomares banho e te darem uma roupa lavada. Aceitas? Aceitou. E fomos para a polícia. (Continua na próxima edição).

 










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