sexta-feira, 10 de maio de 2013

LEIA O DESPERTAR...



LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA 

Para além  do texto "UMA ENTREVISTA, POR ACASO", deixo também as crónicas "O Solitário"; e "REFLEXÂO: A FORMIGA E A CIGARRA"


UMA ENTREVISTA, POR ACASO…

 Há muitos anos que, volta e meia, visito o “médico podologista” dos meus sapatos, o Rui Pedro Saraiva. O seu consultório de atendimento familiar fica situado ali na Rua Pedro Rocha, junto à sede deste jornal e, para quem não souber, nas traseiras da 2ª Esquadra da PSP. Aprecio a sua simpatia, a sua generosidade, o seu conhecimento profundo da saúde das minhas alpercatas. Com um simples olhar técnico realiza um chek-up e diagnostica imediatamente uma operação rápida de manutenção. As amantes dos meus pés estão de tal modo habituadas ao seu carinho e sensibilidade que, sem que eu nada faça por isso, amiúde, levam-me ao seu atelier nem que seja para saber das últimas, frescas e boas. Como bom técnico sapateiro que se preze, o Rui, com 44 anos, tem uma perspectiva geral da política local, europeia e mundial. Para além de profissionalmente conhecer bem as linhas com que cose tudo o que é artigo de marroquinaria, tem também opinião. Vamos ouvi-lo:
Estou aqui na zona de Montarroio, na Baixa da cidade, a trabalhar por conta própria há cerca de 25 anos. Já passei por tempos melhores e menos bons. Desde sempre encarei a vida sob o prisma do trabalho. Desde que me conheço, as coisas nunca foram fáceis para mim, mas agora, desde fevereiro, o movimento está uma desgraça. Nota-se que as pessoas não têm dinheiro. Não está fácil para aguentar. Os clientes mandam arranjar mas, depois, não levantam. Isto, apesar de eu até praticar o pré-pagamento como precaução. São poucos os que pagam previamente. Dizem: “não vinha a contar em pagar já. Arranje que depois pago”. Mas muitos, como andorinhas migratórias, perdem-se por outras paragens e não voltam mais. Tenho calçado armazenado há três e quatro anos. A Baixa está muito debilitada. Muito doente. Todos os operadores comerciais se queixam. Têm encerrado muitos estabelecimentos. Olha comigo, e avança para a porta. Esta minha rua, há uma década, estava cheia de comércio. Ali era uma casa de móveis, ali um quiosque, acolá uma loja de artigos vários, ali à frente uma loja de decoração. Hoje estão todas com jornais nos vidros.
A Câmara Municipal deveria dar incentivos a quem investe ou tem o seu negócio. Por exemplo, provisoriamente, nesta fase complicada, deveria isentar as taxas de toldos reclames e publicidade. Para além disso, no estacionamento de rua, deveria utilizar a mesma metodologia que pratica no Mercado Municipal: dar, pelo menos, a primeira meia hora a cada visitante para poder comprar uma calça ou uma camisa. As artérias do canal, Ferreira Borges e Visconde da Luz, já há muito que deveriam ter sido repostos os transportes coletivos. Passa lá o “Pantufinhas” mas não chega. Toda a gente vê que são precisas soluções imediatas para mudar o situacionismo de degradação continuada. Falam, falam, mas ninguém faz nada. A paisagem, essencialmente para quem nos visita, é alucinante. É triste e medonha. As lojas, em corrupio, estão constantemente a fechar. As rendas praticadas, a maioria delas acima de mil euros, são outro cancro e estão a minar a débil economia desta zona comercial. A autarquia deveria criar mecanismos para obrigar os proprietários a arrendar os seus espaços. Uma loja de comércio só deveria poder estar encerrada no máximo meio ano. Se, por parte do Governo, houvesse legislação não assistíamos a esta pouca vergonha. Se é preciso revitalizar a zona histórica o esforço deve ser feito por todos e não apenas por quem aqui tenta ganhar a vida. Estou preocupado. Há muito menos trabalho. As pessoas não mandam arranjar o calçado porque estão desempregadas. Com esta política de austeridade não acredito no futuro. Se não fosse a minha família já teria emigrado. Portugal só serve para os grandes, os abastados, viverem. Os meus filhos, se calhar, irão ser emigrantes. Lamento muito pela sorte deles. Pelo meu esforço e da minha mulher, mereciam melhor ventura. A Nação deveria gerar oportunidades para os nossos descendentes, que são a essência, o ADN populacional. Sobretudo para os sedentarizar e aqui criarem raízes. Qualquer dia este País nem é para novos nem para velhos. É simplesmente um gigantesco lar de idosos.


O SOLITÁRIO

 O homem está sentado no cimo do monte e o seu olhar perde-se na imensidão das ilusórias águas límpidas de um lago por si imaginado. Pelas rugas do rosto, como terra lavrada em época de sementeira, pelas cãs prateadas, pela pose de abandono ao sabor do vento, adivinha-se naquele corpo cansado muitos invernos martirizantes. Os seus olhos, com pouco brilho, parecem angustiados e nublados pelo negrume da solidão. Como feixe de luz de mortiça, estão parados lá longe, no horizonte perdido das recordações. Ele magica lentamente como só os pensamentos podem cavalgar a loucas correrias em contraste de águas calmas de balanços existenciais. Se as suas imaginações se transformassem em imagens vivas e tivessem legendas, mais que certo, mostrariam toda a sua vida passada de sacrifício.
Como um filme a preto e branco, tudo começaria umas seis décadas atrás na aldeia recôndita e enterrada no país analfabeto e perdido nas profundezas do obscurantismo. Ver-se-ia um miúdo, esfarrapado e descalço, a apanhar lenha, em aparas, no pinhal acompanhado em melodias de nota única sob o cuscar do Cuco e o piar do Mocho. Como a dar luz numa falaciosa lanterna mágica que projeta figuração numa esconsa parede, vai recordando, desenvolvendo passo a passo, toda a sua vida numa história desenvolvida em retalhos maltrapilhos de esforços sem mitigação. Rasgou montes e vales, enfrentou invernos e canículas, lutou de espada em riste contra um futuro predestinado e mais que certo de indigência. Acachapado e encostado ao pinheiro, dormitando sob o silêncio envolvente e diáfano, transparente, da natureza, sonhou ser mais igual a outros referentes conhecidos. Constituiu família e, de degrau em degrau, foi subindo na escala social. Como capitão imbuído em missão transatlântica e em que a salvaguarda da embarcação estava acima de todas as intempéries e, mesmo atentando contra a sua própria saúde e vida, retirou aos seus o peso da preocupação e poupou-lhes medos aflitivos de no dia seguinte não haver aurora. Vieram os filhos e proporcionou-lhes tudo o que na sua infância não lhe fora dispensado. Formou-os na educação da liberdade sem levar em conta que aperfeiçoamento sem dificuldades no acesso ao ter não se formam guerreiros no ser para a luta, mas sim animais reivindicativos que tudo julgam ter direito sem uma obrigatória contribuição retributiva. Sem a sentida frustração da negação das portas batidas na cara e sem a angústia de querer e não conseguir, mostrada sem despudor e em descarada manifestação de insignificância, não se fazem cidadãos construtores de coletivos e ambições legítimas sem colocar de lado o bem comum. Esqueceu-se que o sofrimento é a parte reversa que engrandece a felicidade, no comparte e reparte. Ninguém dará valor ao contentamento se não tiver passado pelo infortúnio. Nenhum poeta feliz, que não bebeu o copo da solidão desventurosa, conseguirá escrever poesia profunda e entendível, tocada de sentimento.
Erro crasso”, pensa para si mesmo o homem sentado em repetida frase expressa mentalmente. Razão tinha seu pai em martirizá-lo quando criança ao sacrificá-lo em pequenos trabalhos domésticos. Estranha forma de reconhecimento e muito tarde para dar o braço a torcer. Há muitas décadas que quem deveria ouvir esta verdade partiu para nunca mais voltar.
Para que trabalhei eu tanto, tanto?”, sofre o homem, engelhando a fronte, em solilóquio que lhe chicoteia o espírito em doses infernais de culpabilidade. Adquiri terras, montes e vales, uma encosta soalheira onde um fio de água assegurava a erva verde e dava cor à paisagem idílica onde uma casa em pedra simbolizava o esperado remanso de uma velhice ternurenta e feliz. Não passeei o que deveria; não viajei por onde queria. O meu Universo global restringiu-se entre a minha rua e o meu local de trabalho. Valeu a pena? Sobre o que angariei, pensando ser um dia o meu pé-de-meia, nada vale para quem compra. O Estado, pelo braço estendido dos governos no confisco à propriedade, nas exigências monstruosas ao pequeno comércio e indústria artesanal, e aos frutos do labor, numa deliberada intenção desmotivadora, tudo tem feito para arrastar para a lama o gosto pela produção e criação de riqueza. Parece deliberadamente querer transformar trabalhadores em bestas de andarilho e empecilho social. Assiste-se a uma cruzada infernal contra o tangível e uma desvalorização sucessiva dos bens materiais. Hoje só tem valor o que supre uma necessidade imediata.
Aí se eu pudesse voltar atrás! As cambalhotas que eu daria; os sorrisos que distribuiria; as águas em que mergulharia; os oceanos que rasgaria; as mulheres que eu amaria. “Nunca é tarde”, imagina quem lê aqui o que o homem pensa. Mas o pensador sabe que o tempo, o seu tempo, como corda de relógio que se esgotou, passou sem dar por ele e experimenta uma sensação de debilidade e frustração. Faltam-lhe a fé anímica tracejada pelos deuses e as forças físicas que, como conquistador dos descobrimentos de há cinco séculos contra o Adamastor, outrora o empurraram contra as correntes do desânimo e conquista de um mundo novo.




REFLEXÃO: A FORMIGA E A CIGARRA

 Há dias lembrei-me de mandar um e-mail à minha amiga Helena. Ela é ligeiramente mais nova do que eu, já ultrapassou o meio-século, e morava na zona de Leiria. Há cerca de um ano que não sabia nada da sua vida. Como murro no estômago desferido à queima-roupa, a resposta veio assim: “Estamos no Canadá, desde setembro do ano passado. O negócio do meu marido começou a correr mal e, como tinha cá o meu irmão, pedi-lhe que me ajudasse. Estamos ambos a trabalhar. Eu estou a lavar pratos num restaurante, mas não me importo nada. Tenho trabalho e isso é que importa”. A Helena era professora em Portugal.
Neste domingo, último, foi o Cortejo da Queima das Fitas. Apesar de ainda agora ter saído legislação sobre a venda de álcool, tal como em anos anteriores, sobretudo nos estudantes, o clima etílico na cidade atingiu o vermelho rubro. Quem esteve presente, neste dia, na zona de Celas, certamente se terá apercebido do corrupio de ambulâncias a caminho do hospital durante a tarde. Entre o comprometimento da geração da Helena, que por força das circunstâncias se viu obrigada a emigrar, e a irresponsabilidade dos seus descendentes há qualquer coisa que nos faz temer pelo futuro.





Sem comentários: