quinta-feira, 4 de abril de 2013

UMA ENTREVISTA... POR ACASO



 Como tantas vezes, e diariamente, cruzei-me com o Mário hoje à hora do almoço ali junto à igreja de São Tiago. De repente, sem nada combinado, estamos a falar do lixo que estava mesmo aos nossos pés e na falta de cuidado que os comerciantes da Baixa têm na estima que deveriam ter (e não têm) pela zona onde ganham a vida. Ora, o Mário Garcia Afonso é um reputado fotógrafo que, para além de estar ligado a várias publicações, conhece a cidade por dentro e por fora. Ou seja, enquanto citadino conimbricense, estando imbricado na massa populacional, consegue aperceber-se dos defeitos e virtudes que a urbe suporta. Enquanto fotógrafo, como outsider, transcende-se e tem uma percepção independente, tal-qualmente como se tivesse chegado hoje ao burgo no comboio matutino.
 E assim, sem nada programado, puxo do bloco de notas e toma lá Mário que estás a ser entrevistado para o blogue Questões Nacionais. Aqui vai:

“A cidade está de cócoras para a Universidade e de joelhos perante a Rainha Santa. A sabedoria está lá em cima, presume-se, mas não mata a fome aos residentes na cidade. Rezar à Padroeira a mesma coisa: também não retira a sensação incómoda do estômago. Consequência disso? Tudo o que Coimbra tem agora as outras cidades também tem, mas com uma diferença: não deixam cair o seu comércio como aqui. Olha aqui à volta… só lojas encerradas. Mete dó ver isto! É preciso estimular o investimento. É preciso colocar a cidade a trabalhar na criação de emprego. Lisboa é cada vez mais como antigamente: está tudo lá centralizado e o resto é paisagem. É interessante ver que Coimbra deixou de ter o peso que tinha. Deslocalizou-se tudo para outras cidades vizinhas, como Aveiro, Leiria. A nossa cidade perdeu a centralidade. Coimbra já foi a capital do reino. D. Afonso Henriques não escolheu estar sepultado em Santa Cruz por acaso. Aqui decidiu deixar os seus restos mortais porque reconheceu as potencialidades de Coimbra. A dimensão do país, sendo pequeno, acaba por ser redutora. Todos os serviços, na decisão, estão centralizados em Lisboa. Falta generosidade às pessoas de Coimbra, e outros que vieram de fora e aqui se estabeleceram, ganharam a vida, conquistaram estatuto. Alguns só dizem mal e não se movem um milímetro para mudar seja o que for. Sangraram a cidade e agora, que está nas lonas, estão a abandoná-la. Falta cidadania activa e espírito crítico. Como quem está lá em baixo, em Lisboa, têm uma visão global e redutiva da cidade dos estudantes. Pensam que isto é uma aldeia grande, que é uma localidade única. São Martinho, Vale de Canas, Tentúgal, para eles é tudo Coimbra. Olham apenas para o todo sem levar em conta os pormenores, a sua idiossincrasia. Esquecem que esta cidade tem muitos polos de interesses diferenciados.
Ao ver como a cidade é tratada de fora sinto-me triste, frustrado, impotente por não ter meios para mudar as coisas. Coimbra perdeu importância por não ter dois clubes a militar na primeira divisão. Ninguém se importa com a Académica. Para não falar do completo desinteresse a que estão votados o Olivais e o Santa Clara, que já foram grandes clubes de muita glória e agora ninguém fala deles. Deram grandes alegrias à cidade. A cidade, nas pessoas que cá vivem, não dá valor ao seu passado, à sua história, que, no fundo, é a sua essência, a sua alma. Sem roturas, gostava que no geral o comércio se revitalizasse. Dói-me o coração ver esta Baixa assim. Gostava de ver a pouca indústria que a Lusa Atenas tem a produzir, a criar emprego. Por exemplo, gostava de ver a Fábrica da Cerveja (Topázio e Onix), na Pedrulha, transformada num pólo museológico. Porque foi abandonada daquela maneira? Será que não vêem que ali está a nossa alma? A Câmara Municipal deveria ter um papel preponderante na divulgação da memória da cidade. Não pode continuar a perder de vista o essencial e dar demasiada importância ao acessório.
Aqui na Baixa, não vale a pena continuar a reconstruir as fachadas sem recuperar o miolo dos prédios –isto é um modelo que grassa em todas as cidades do país. Está mal. Se calhar é o paradigma dos portugueses: mostrar apenas a frente e esconder as traseiras.
O que se está a passar nestes centros urbanos deveria fazer pensar. Num completo abandono, deixa-se esboroar o que resta para depois ser comprado ao desbarato. Depois da recuperação do edificado assistimos ao aburguesamento. Quem para cá vem viver não tem nada a ver com quem aqui nasceu e sempre viveu. Estão a tirar a alma aos centros históricos. Retiram os traços populares. Enfim, mas noutra impossibilidade, ao menos que restaurem isto. Acredito na recuperação da Baixa, da Alta e da zona de Santa Clara –todos juntos, verdadeiramente são o Centro Histórico da cidade. Mas, se calhar, só vou ver esta mudança para o tempo dos meus netos… se cá estiver. Sei lá?!”


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