quarta-feira, 13 de março de 2013

O QUIOSQUE DO SENHOR MACHADO



 Decorria Novembro de 1960. Não se sabe se o facto de Jonh F. Kennedy, logo a 1 desse mês, ter ganho as eleições nos EUA e com toda a vaga de esperança de paz e prosperidade que varreu o mundo teria influenciado Manuel dos Santos Machado a apostar na vida comercial. Também era certo que tinha 23 anos e saíra recentemente da tropa. Para além de um louvor por bom comportamento averbado na caderneta militar, onde se pode ler “Louvado pelo Exm.º Comandante do Regimento de Artilharia Nº 2 (…), por durante a sua permanência nas fileiras ter demonstrado possuir perfeito sentido das responsabilidades, grande correcção e desejo de bem servir, qualidades estas que o tornam merecedor de ser apontado como exemplo a seguir pelos seus camaradas”, pela experiência ali acumulada, trazia consigo um saco carregado de ambição. Em boa verdade, sejamos justos, o serviço militar, pelo elogio escrito e traquejo adquirido, apenas veio ratificar uma prática que já vinha desde a infância. Filho de mãe viúva precocemente e muito humilde, com 11 anos, em 1948, entrara para a Casa do Gaiato, em Miranda do Corvo. Cedo começou a trabalhar em vários ramos e em grandes firmas da cidade. Passou pela Farmácia Sitália, na Sé Velha, pela fábrica de mosaicos ÁS, na Guarda Inglesa, pela Soares & Múrias, junto à Estação Nova, pela distribuidora de O Século e pela firma de peças de automóveis J. Mendes, desaparecida há menos de um ano, na Avenida Fernão de Magalhães.
Se o sofrimento depura a alma, Machado, para além de saber onde colocava os pés, tinha um plano idealizado para a sua vida. Esse foi o ensinamento que aprendera na Casa do Padre Américo. Foi assim que nesse Novembro de 1960 soubera que a dona do Quiosque da Praça e também proprietária de uma barbearia junto ao Café Mandarim ficara viúva e tencionava largar o negócio de jornais e revistas. Foi falar com a empresária acerca da intenção de adquirir a pequena tabacaria. Acertaram o trespasse por 16 contos de reis desde que a autarquia autorizasse a passagem. Dirigiu-se à edilidade e pediu para ser recebido pelo presidente Moura Relvas. Sem grandes formalidades estava à frente do chefe da Câmara Municipal de Coimbra a explicar o seu sonho de se tornar comerciante. O velho presidente, percebendo que estava perante um Gaiato, pareceu sensibilizado e tocado pela força do rapaz, mandou-o levar no dia seguinte a Caderneta Militar. Quando Relvas se deparou com o louvor no livrete mandou chamar o secretário, licenciado em direito, e na hora, ali mesmo, exararam um requerimento. Quando saiu dos Paços do Concelho, com a obrigação de pagar 300 escudos por ano, era o novo dono da mais célebre tabacaria da Praça da República e daqui para frente baptizado de Quiosque do Senhor Machado.



O FAROL DA PRAÇA

 Como homem precavido vale por dois, apesar de agora ser patrão, não largou o escritório da fábrica de mosaicos ÁS. Embora nesta altura ainda solteiro, já namorava há uns anos aquela que viria a ser a sua companheira de uma vida: a Teresa. Como esta tivesse uma irmã que entendia de vendas, foi esta, a Otília, que durante cinco anos esteve à frente do pequeno estabelecimento. O Machado ia abrir e expor os jornais e revistas ao raiar da aurora. Voltava à hora do almoço e no crepúsculo ia encerrar já noite dentro. Quem não se lembra de cruzar com um homem que caminhava a passo apressado, quase correndo, a fazer lembrar o speedy Gonzales, entre a Baixa e a Praça da República? Era o Machado a tentar ultrapassar o tempo e a ensaiar que o dia tivesse a 25º hora.
Um ano depois casou e em 1965 a Dona Teresa, como é ainda carinhosamente tratada, passou a ser a extensão física e emocional no velho quiosque -que já viria desde 1900 e chegou a ser cabine de agulheiro de eléctrico- e de toda a prole dos Machados.
Como farol que ilumina e conduz marinheiros na infinidade da vida, durante décadas o velho quiosque era um pólo inevitável de atracção. Por lá passaram os inesquecíveis cromos da cidade, como o Daniel Tatonas, o Taxeira, o Adelino e o Pedro, ou mais vulgarmente conhecidos por Maló e o Chuças, e o Pirilau. Lá foram clientes personalidades importantes da política, como, por exemplo, Fausto Correia que ali ia sempre levantar os números 0 e 1 de todas as publicações. Mesmo quando esteve no Parlamento Europeu assim acontecia.


Conheci bem esta catedral de sapiência e humanidade. Comecei a trabalhar no Mandarim em 1966, e saí em 1972. Não exagero se disser que o meu gosto pela leitura foi despoletado pela generosidade da dona Teresa e boa vontade do senhor Machado. Como não tinha possibilidades de comprar qualquer pequeno livro, numa bondade sem limites, eram-me emprestados para eu ler encostado ao velho quiosque. Ali, na penumbra da sua sombra, li tudo o que era publicação do Falcão, Mundo de Aventuras, Condor, FBI, Xerife e tantos outros que não lembro. Bem-haja, senhor Machado e dona Teresa pelo que fizeram por mim. Nunca lhes conseguirei pagar. Este pequeno arrazoado será apenas o juro de um tempo fantástico e de extrema utilidade para tantos. Com este encerramento do velho quiosque, e com o vosso afastamento, tenho a certeza, a Praça da República, nunca mais voltará a ser a mesma.

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