sexta-feira, 15 de março de 2013

LEIA O DESPERTAR...


LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA 

Para além  do texto "PARTIU O "ZÉ CABELEIREIRO", deixo também as crónicas "UM CRAVO NO DIA DA MULHER"; "O PESQUISADOR DE OURO"; "REFLEXÃO: OLHAI, SENHORES"; e "O QUIOSQUE DO SENHOR MACHADO"


PARTIU O “ZÉ CABELEIREIRO”

 Há uma semana, mais precisamente na sexta-feira, fomos surpreendidos por uma carta no “Fala o Leitor” do Diário de Coimbra, assinada por Olímpio Fernandes (OF), em que dava conta do desaparecimento súbito de José Rasteiro, mais conhecido por “Zé Cabeleireiro”.
Naturalmente que, por direito próprio conquistado ao longo de várias décadas de trabalho no Centro Histórico, legitimamente, o “Zé” merece fazer parte deste mural humilde que se retrata semanalmente nesta Página da Baixa. Embora já tivessem sido muito bem contados retalhos da sua vida pelo colega de profissão, OF, em sentida homenagem, fui falar com o seu filho, José da Silva Rasteiro. Segundo o seu primogénito, “o meu querido pai fazia parte de uma geração que sofreu muito. Nasceu em 1945, em Pereira, no armistício da Segunda Guerra Mundial. Os meus avós eram muito pobres e trabalhavam nos campos do Mondego, à jeira e de sol a sol. Devido à carência da casa onde viu a luz, o meu progenitor frequentou um albergue na zona de São Martinho do Bispo –provavelmente o Albergue Distrital de Coimbra onde, citando OF, “conheceu um senhor de nome Pinto que lhe ensinou a fazer umas barbas e uns cortes de cabelo”-, ainda miúdo, transitou para um café da Baixa como grumete –certamente o Arcádia, do José Maria Cerveira. Foi ao levar galões e torradas ao Salão Azul que o dono, o senhor Tozé se apercebeu da sua habilidade para os cabelos de senhora e lhe propôs emprego. Por alturas de 1970, estabeleceu-se como profissional por conta própria e com estabelecimento na Rua Ferreira Borges, por cima da antiga Farmácia Donato e agora Giovanni Galli. Ali permaneceu até meados da década de 1990 e se transferiu para a Avenida Afonso Henriques, onde continuamos hoje”.
Continua, Silva Rasteiro, “a decisão de retirar o trânsito das ruas da calçada foi fatal para o movimento da Baixa. O meu pai pensava assim e eu, igualmente, tenho a mesma convicção.
O meu querido criador tinha um coração de ouro. Fez bem a muita gente. Nunca dizia não a ninguém. Deu tudo o que não teve aos filhos. Era um bom pai. A sua partida repentina e sem avisar deixa-me um rasgo lancinante de dor.”
Ao interrogar o Rasteiro sobre se a nefasta decisão do seu pai estaria diretamente ligada à doença mental degenerativa de sua mãe respondeu assim: “tenho quase a certeza de que não foi apenas a demência da minha familiar que precipitou o seu ato derradeiro. Poderia ter contribuído, isso sim. Mas foi também a sua frustração, o desânimo, a falta de esperança e o descrédito num futuro que não se vê para quem sempre trabalhou desde infante e hoje se sente perdido neste infinito oceano de tempestade social.”



UM CRAVO NO DIA DA MULHER

 No dia 8 de Março foi o Dia Internacional da Mulher. Nas ruas estreitas da Baixa, aqui e ali, viam-se algumas pessoas a vender cravos furtivamente. Tentei travar conversa. Debalde. Implicitamente, havia medo. “Não leve a mal”, disseram, “mas não podemos aparecer. Você sabe como isto está agora. Mesmo para tentarmos angariar uma dúzia de euros, temos de andar a fugir. Parece que nos querem empurrar para o roubo.”
Com a promessa de não mostrar o rosto, lá consegui tirar uma foto. Disseram-me que estavam desempregados e, vendendo um cravo a 1 euro, era uma forma de ganhar algum dinheiro.
Em reflexão, o que gostaria de pedir é que, por um momento, se pensasse se estaremos a caminhar no sentido correto, dentro do espírito e da dignidade do trabalho. É certo que, no limite, até poderemos pensar que estes indivíduos, em concorrência desleal uma vez que não pagam impostos, estão a competir com uma pequena loja de flores que, tal como outro qualquer ramo, está num sufoco financeiro. Mas será mesmo assim? Será que estes pequeníssimos vendedores de minudências fazem sombra a alguém? Será que pelo seu interesse pessoal, ainda que egoísta, não estarão a alegrar, a perfumar as ruas e, sobretudo a lembrar o transeunte que, embora o devamos fazer todos os dias, naquela data muito particularmente devemos oferecer uma flor ao nosso amor? Ainda digo mais, com esta prestação pública, ao recordar a simbologia, estão a empurrar quem caminha na calçada para uma qualquer tradicional loja de rosas. Aliás, foi o que se passou comigo. Se não me tivesse cruzado com estes vendedores ambulantes, apesar de saber, não teria dado importância à data. É certo que, a troco da foto, acabei por adquirir um cravo e a seguir fui a uma loja tradicional e comprei uma outra mais bem apresentada. Mas uma coisa sei, se não visse estas pessoas a calcorrear as pedras, não teria oferecido uma flor à minha mulher. Curiosamente, na pequena loja de flores onde fui, numa destas ruas estreitas, a proprietária foi-me dizendo que, apesar da crise, felizmente, até vendeu mais ou menos. “A mulher continua a ser a projeção dos olhos do homem”, enfatizou a sorrir.
Entendo perfeitamente que neste momento grave das finanças públicas todos os cidadãos ativos –os reformados tenho muita dúvida- devem ser chamados a contribuir para o pagamento da dívida –que, como se sabe, foi contraída por outros que agora, irresponsavelmente, não assumem nem alguém os obriga a avocar. Ou seja, neste retângulo de inconsciência, uma vez que alguém terá de responder perante os credores, se o princípio estiver correto, a forma, de certeza absoluta, estará errada. Para tudo na vida são necessários parâmetros. O que quero dizer é que, genericamente, não se pode mandar alguém apanhar pedras sem explicar o tipo, o peso, o volume e o fim a que se destinam. Se assim não acontecer, poderemos ter de volta pedras de um grama, em forma de brilhantes, rochas de um quilo e outras de várias arrobas. Para complicar e lançar a confusão, só no fim se fica a saber que o objeto das pedras seria a construção de um muro. Passando a metáfora, e voltando aos pequeníssimos vendedores de rua, é necessário alterar as condições de acesso ao trabalho. Tendo atenção às diferenças, não se pode classificar todos os mercadores por igual. As novas regras fiscais, obrigando todos a passar fatura. São algo de absurdo. Por exemplo, para uma vendedeira de couves do Mercado Municipal, que nunca passou um cheque e mal sabe ler, esta obrigação é maquiavélica, discriminadora, destruidora e atentatória à sua dignidade de pessoa que sempre trabalhou e utiliza o labor como fonte de rendimento e terapia ocupacional da sua vida difícil. Então, pela impossibilidade de cumprir, só tem dois caminhos: ou desiste ou continua a vender ilegalmente.
Este emaranhado fiscal está a mandar para o charco milhares de portugueses de meia-idade que, perante as novas tecnologias, são disfuncionais. Só tecnocratas, que não sabem nada do que se passa na terra a terra das ruas, podem legislar desta maneira. Para muitos milhares de portugueses, sobretudo da geração de 1950, o trabalho é um direito, mas é muito mais do que o acesso ao rendimento; é o sentimento da utilidade social; a razão direta para uma existência feliz. Num Estado de Direito não pode ser admissível uma insensibilidade como a que estamos a assistir.
Como disse em cima, se o princípio da norma é entendível, que é o dever de todos os que auferirem rendimentos do trabalho concorrerem para a salvação da Pátria, para a sua prossecução e eficácia, é também obrigação do Estado criar leis simples, justas, acessíveis, e que convençam todos. E como? Poderemos interrogar? Muito fácil: optar pelo imposto único. Com justeza e equidade, dividir por escalões todos quantos trabalham por conta própria. A cada empresário, grande ou pequeno, sem exceção, consoante o grau de escala em que se insere, caberá um tributo a liquidar após o final do ano em exercício. Não serão admitidos prejuízos e todos têm de contribuir. Se não der lucro que encerre. Se na sua lícita liberdade quer prosseguir na atividade liquida a dízima correspondente e continua. Estranhamente, ainda não se percebeu que quanto mais se apertarem as regras menos exequíveis e frutuosos serão os resultados. Como estamos a caminhar atualmente, em que se verifica um confisco e se desmotiva a criação de riqueza, se nada se alterar depressa, vamos assistir a um extermínio coletivo de pequenos empreendedores. E não escrevo sobre os sucessivos suicídios que todos os dias nos tocam e são noticiados como mortes naturais. Sem que nos apercebamos, poderemos estar a marchar e a incentivar o terrorismo na mimética de atentados iguais ao Médio Oriente. Se uma pessoa que tenciona pôr termo à vida, e nada tem a perder, o que lhe custa levar consigo umas dezenas de inocentes? Estou a ser alarmista? Pode ser. Mas os números de mortes por motu proprio não mentem. Eles estão à vista de todos e é negligência grave não os relevar. A relativa paz social conquistada nos últimos 100 anos pode estar em risco. Tomai cuidado com quem não tem nada a perder!


O PESQUISADOR DE OURO

 Era uma tarde destas, acinzentada, em que, como norma entre o negro carregado e a cinza, passámos a ser contemplados sem poder reclamar. Estava de cócoras, de olhos fixos na pequena ranhura que divide as pedras lajeadas da Praça do Comércio. Chamou-me a atenção como reiteradamente, com um fino arame, tentava retirar qualquer coisa do rego escoador de águas pluviais.

Chama-se Mário Santos. É natural da Covilhã e está na Baixa há cerca de seis meses. Está desempregado e recebe o Rendimento Social de Inserção. “Mal chega para comer”, diz-me. “Muitas vezes passo fome. Por isso mesmo ando sempre a olhar para o chão e mais particularmente para estas ranhuras entre as pedras. Olhe ali! -e aponta para o fundo cheio de lixo- está a ver a moeda de euro? Já aqui apanhei várias peças em ouro, anéis, brincos, etc. A última rendeu-me 180 euros. A necessidade aguça o engenho. Não é assim que se diz?”. E ensaia um presumível sorriso no rosto duro marcado pelas intempéries da vida. 


REFLEXÃO: OLHAI, SENHORES!

 No último mês, na zona de Celas, quatro pessoas colocaram uma pedra sobre as suas existências infelizes. Duas delas, que eu tive o grato prazer de conhecer, eram pequenos empresários que trabalharam desde crianças. Nestas suas decisões de arrumar tudo de uma vez, se, por um lado, devemos respeitar a sua vontade soberana, por outro, temos, todos, obrigação de parar para pensar e interrogar: o que se está a passar com as ínclitas gerações de 40 e 50?



O QUIOSQUE DO SENHOR MACHADO

 Decorria novembro de 1960. Não se sabe se o facto de Jonh F. Kennedy, logo a 1 desse mês, ter ganho as eleições nos EUA e com toda a vaga de esperança de paz e prosperidade que varreu o mundo teria influenciado Manuel dos Santos Machado a apostar na vida comercial. Também era certo que tinha 23 anos e saíra recentemente da tropa. Para além de um louvor por bom comportamento averbado na caderneta militar, onde se pode ler “Louvado pelo Exm.º Comandante do Regimento de Artilharia Nº 2 (…), por durante a sua permanência nas fileiras ter demonstrado possuir perfeito sentido das responsabilidades, grande correção e desejo de bem servir, qualidades estas que o tornam merecedor de ser apontado como exemplo a seguir pelos seus camaradas”, pela experiência ali acumulada, trazia consigo um saco carregado de ambição. Em boa verdade, sejamos justos, o serviço militar, pelo elogio escrito e traquejo adquirido, apenas veio ratificar uma prática que já vinha desde a infância. Filho de mãe viúva precocemente e muito humilde, com 11 anos, em 1948, entrara para a Casa do Gaiato, em Miranda do Corvo. Cedo começou a trabalhar em vários ramos e em grandes firmas da cidade. Passou pela Farmácia Sitália, na Sé Velha, pela fábrica de mosaicos ÁS, na Guarda Inglesa, pela Soares & Múrias, junto à Estação Nova, pela distribuidora de O Século e pela firma de peças de automóveis J. Mendes, desaparecida há menos de um ano, na Avenida Fernão de Magalhães.
Se o sofrimento depura a alma, Machado, para além de saber onde colocava os pés, tinha um plano idealizado para a sua vida. Esse foi o ensinamento que aprendera na Casa do Padre Américo. Foi assim que nesse novembro de 1960 soubera que a dona do Quiosque da Praça e também proprietária de uma barbearia junto ao Café Mandarim ficara viúva e tencionava largar o negócio de jornais e revistas. Foi falar com a empresária acerca da intenção de adquirir a pequena tabacaria. Acertaram o trespasse por 16 contos de reis desde que a autarquia autorizasse a passagem. Dirigiu-se à edilidade e pediu para ser recebido pelo presidente Moura Relvas. Sem grandes formalidades estava à frente do chefe da Câmara Municipal de Coimbra a explicar o seu sonho de se tornar comerciante. O velho presidente, percebendo que estava perante um Gaiato, pareceu sensibilizado e tocado pela força do rapaz, mandou-o levar no dia seguinte a Caderneta Militar. Quando Relvas se deparou com o louvor no livrete mandou chamar o secretário, licenciado em direito, e na hora, ali mesmo, exararam um requerimento. Quando saiu dos Paços do Concelho, com a obrigação de pagar 300 escudos por ano, era o novo dono da mais célebre tabacaria da Praça da República e daqui para frente batizado de Quiosque do Senhor Machado.



O FAROL DA PRAÇA

Como homem precavido vale por dois, apesar de agora ser patrão, não largou o escritório da fábrica de mosaicos ÁS. Embora nesta altura ainda solteiro, já namorava há uns anos aquela que viria a ser a sua companheira de uma vida: a Teresa. Como esta tivesse uma irmã que entendia de vendas, foi esta, a Otília, que durante cinco anos esteve à frente do pequeno estabelecimento. O Machado ia abrir e expor os jornais e revistas ao raiar da aurora. Voltava à hora do almoço e no crepúsculo ia encerrar já noite dentro. Quem não se lembra de cruzar com um homem que caminhava a passo apressado, quase correndo, a fazer lembrar o speedy Gonzales, entre a Baixa e a Praça da República? Era o Machado a tentar ultrapassar o tempo e a ensaiar que o dia tivesse a 25º hora.
Um ano depois casou e em 1965 a Dona Teresa, como é ainda carinhosamente tratada, passou a ser a extensão física e emocional no velho quiosque -que já viria desde 1900 e chegou a ser cabine de agulheiro de elétrico- e de toda a prole dos Machados.
Como farol que ilumina e conduz marinheiros na infinidade da vida, durante décadas o velho quiosque era um polo inevitável de atração. Por lá passaram os inesquecíveis cromos da cidade, como o Daniel Tatonas, o Taxeira, o Adelino e o Pedro, ou mais vulgarmente conhecidos por Maló e o Chuças, e o Pirilau. Lá foram clientes personalidades importantes da política, como, por exemplo, Fausto Correia que ali ia sempre levantar os números 0 e 1 de todas as publicações. Mesmo quando esteve no Parlamento Europeu assim acontecia.
Conheci bem esta catedral de sapiência e humanidade. Comecei a trabalhar no Mandarim em 1966, e saí em 1972. Não exagero se disser que o meu gosto pela leitura foi despoletado pela generosidade da dona Teresa e boa vontade do senhor Machado. Como não tinha possibilidades de comprar qualquer pequeno livro, numa bondade sem limites, eram-me emprestados para eu ler encostado ao velho quiosque. Ali, na penumbra da sua sombra, li tudo o que era publicação do Falcão, Mundo de Aventuras, Condor, FBI, Xerife e tantos outros que não lembro. Bem-haja, senhor Machado e dona Teresa pelo que fizeram por mim. Nunca lhes conseguirei pagar. Este pequeno arrazoado será apenas o juro de um tempo fantástico e de extrema utilidade para tantos. Com este encerramento do velho quiosque, e com o vosso afastamento, tenho a certeza, a Praça da República, nunca mais voltará a ser a mesma.









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