quarta-feira, 6 de março de 2013

AS CINZAS DO SILÊNCIO



 Por desejo manifesto em vida, Daniel Tibério, o meu amigo desaparecido do mundo dos vivos na semana passada, foi cremado na Figueira da Foz. De acordo com a família, era intenção jogar as cinzas ao mar. No entanto, antes de o fazer, ficámos a saber que, cumprindo com a legislação em vigor, teríamos de pedir autorização à capitania do porto da praia da claridade. Imaginando um processo burocrático moroso, optámos por trazer o pequeno pote com os restos mortais do meu amigo para Coimbra e, numa parte afastada da cidade, lançá-los ao rio. Na hora de o fazer questionámos se seria certo, por um lado, conspurcar o leito, por outro se, jogando o pó ao vento como coisa desprezível, não seria um acto desrespeitoso pela memória do Daniel. Entre balanços de religiosidade entre ateus e agnósticos, entendemos que o sítio certo para descanso de restos mortais é mesmo um necrotério, o local ideal para os defuntos. Fomos ao cemitério da Conchada para que nos fosse concedida autorização para despejar as cinzas dentro do espaço e num pequeno terreno anexo para este efeito. Segundo a funcionária camarária, Alexandra France, “o regulamento do cemitério não prevê o despejo de cinzas, excepto se o finado tiver ali alguém enterrado ou com jazigo. Não temos cendrários.”
Como não tínhamos ali nenhum ente depositado e por estarmos imbuídos da certeza de que o nosso amigo deveria repousar na terra do jardim da memória, e não queríamos abandonar a sua última recordação corpórea em qualquer pinhal, partimos em direcção do Crematório do Complexo Funerário da Figueira da Foz onde, relembro, no dia anterior tinha sido cremado. Contactada a recepção foi-nos dito que para colocar o interior do pequeno pote numa pequena cova de um terreno relvado, adjacente ao cemitério e sem qualquer identificação, só o poderíamos fazer contra o pagamento de 61,50 euros, 50 mais IVA. Naturalmente, que, mesmo não entendendo estes critérios tão onerosos, pagámos e o nosso amigo, temos a convicção, descansa em paz.
Deixo apenas três interrogações: estes procedimentos de alheamento do Cemitério da Conchada, em Coimbra, e o elevado custo no da Figueira da Foz estão correctos? Será que, com estas burocracias insensíveis e careiras não estão a empurrar as pessoas para a ilegalidade? Ou, sendo eu mauzinho, será que não estará tudo feito de modo a beneficiar as entidades privadas que exploram os crematórios?

A CREMAÇÃO É O FUTURO

 Contactado um operador funerário na zona centro para dar a sua opinião sobre estes procedimentos, que pediu o anonimato, foi-me dizendo que “de facto estes processos deveriam ser muito mais simplificados. Os cemitérios, perante o aumento exponencial de cremações, deveriam dispor já de um pequeno canteiro destinado ao repouso das cinzas anónimas, sobretudo para evitar o despejo anárquico em qualquer leito de água ou terreno baldio. É verdade que já foi muito pior. Antigamente só poderia haver cremação por vontade expressa do falecido em vida. Agora não, está melhor, mas continua a ser muito caro e muito burocratizado para as agências funerárias. Para incinerar um corpo, aqui na Figueira da Foz, custa 213,44 euros e são precisos 5 requerimentos com umas dez folhas. Repare que estamos a assistir a um aumento muito grande de cremações. Neste momento em cada 100 funerais feitos na cidade, cerca de 40 destinam-se à cremação. Nos subúrbios, vilas e aldeias em redor, a percentagem passa de 20 para cada centena de falecidos.”

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