quinta-feira, 22 de novembro de 2012

LEIA O DESPERTAR...



LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA 

Para além  do texto "O VIÚVO QUE QUEBROU A REGRA", deixo também as crónicas "ATO DE CONTRIÇÃO"; e "REFLEXÃO: A IMPORTÂNCIA DAS  PALAVRAS"



O VIÚVO QUE QUEBROU A REGRA

 Aquele homem alto, garboso e de personalidade bem vincada nem parece o mesmo. Apesar dos seus oitenta anos, até há um ano atrás parecia um pinheiro ereto e pronto a enfrentar todas as ameaças possíveis e impossíveis que invadissem a mata de pináceos. Agora, na sua loja, numa rua estreita da cidade, arrasta-se de ombros caídos, como se crescessem ombreiras e faltasse corpo, olheiras negras e olhos vermelhos, como se o chorar copiosamente passasse da exceção à regra, e face macilenta cor de defunto.
A sua esposa morreu há cerca de um ano atrás. Foi o fim de uma relação de seis décadas a dois. Foi o epílogo de uma história de amor muito feliz. Nada a substitui, tudo a faz lembrar, nada a traz de volta. O tempo, no seu correr de rotineira loucura, é implacável e, perseguindo sabe-se lá o quê, não olha a meios, à dor e ao sofrimento, para atingir os fins, derradeiro e último dia do calendário existencial de cada um que vai tombando.
Quando lhe pergunto como vai andando, as lágrimas, como se estivessem presas por fios invisíveis e prontos a ceder pelo cansaço, irrompem pelo rosto abaixo, como chuva repentina de verão em terra sequiosa. “Vou mal. Muito mal! Foram sessenta anos de vida em comum. Entende? Durante o dia, como estou ocupado, até vou aguentando. O pior é à noite. O vazio do silêncio ser quebrado pelo barulho impercetível de um móvel, na madeira a ceder em “traque” de estalido, e olhar, ansiosamente, pensando que ela está ali. Mas não está. O espaço visual continua desabitado. Só eu e os objetos em redor teimamos em lembrar a sua memória. Levanto os olhos para a fotografia que me enche o coração e ela, fixamente, olha para mim, como se a interrogar da razão deste quebrar de regra. Porque não fui eu primeiro? Porque fiquei eu a penar neste padecimento indescritível? E quando vou para a cama e dou por mim a estender o braço, num abraço esvaziado, e o recolho lentamente tomando consciência do meu hábito repetido de décadas? Ali está o cheiro dela, o odor materializado que tenho sempre presente nas minhas narinas e que nunca esqueço. Só quem passa por esta amargura sabe e sente a tristeza que me envolve o coração. Tanto trabalhei, noite e dia, desalmadamente em busca de um futuro melhor. Hoje, de bom grado, daria tudo, toda a minha riqueza e até a minha vida, para a ter de volta. Estranho esta forma de viver. Não acha?
Tal como você diz, bem sei que me deveria afastar de todas as recordações que me transportam ao reavivar do sofrimento. Mas, e conseguir? Como posso eu deixar de a visitar duas vezes por semana no cemitério? Talvez você não entenda, mas ali, envolvida pela terra, eu sei que ela está lá fisicamente… ou o que resta dela. Da minha querida. Do meu amor! Você consegue imaginar a mágoa que sinto aqui no peito? Não consegue! Este pesar há-de ir comigo para a cova, qualquer dia, em que finalmente nos iremos reencontrar. Acredita que chego a pensar nisso e desejar a morte? Só agora sei que ela era o sustentáculo da minha vida, o vento que tocava as velas do frémito da minha existência. Se calhar é tarde para o reconhecer, o que lhe parece? Sempre me tive na conta de homem insensível à dor e que não chorava. Veja bem no que me transformei: numa criança que lacrimeja por tudo e por nada. Nada me satisfaz. Já nada me dá prazer viver. Não precisa de me dizer que estou deprimido eu sei… aliás, o psicólogo que me acompanha diz exatamente isso mesmo. Mas que quer? Eu perdi uma parte de mim. A minha segunda alma!”


REFLEXÃO: A IMPORTÂNCIA DAS PALAVRAS

 Há largos meses que colaboro com este mais antigo semanário da cidade, “O Despertar”. Para quem não for leitor habitual, trata-se de uma folha semanal com o título “Página da Baixa”. Está a ser uma experiência fantástica e que, salvo pequenos percalços de caminho, me dá um gozo extraordinário. Escrevo há mais de 30 anos gratuitamente para jornais e não é a primeira colaboração que exerço. Simplesmente na cooperação que tive com outros periódicos nunca me senti acarinhado, antes pelo contrário. A sensação que tive sempre é que parecia que me estavam a fazer um favor ao publicarem os meus escritos. Por exemplo, durante cerca de três anos, escrevi para um jornal da Mealhada, de onde sou natural, uma série de crónicas intituladas “Histórias da minha aldeia”, que retratavam toda a ambiência dos anos de 1950 para a frente no meu lugarejo recôndito. Nunca recebi um telefonema a manifestar contentamento ou aconselhar outra forma de apresentar o trabalho. Passaram Natais e Fins de ano e nem um postal de boas festas me alegrou na volta do correio. Este apoio terminou quando enviei uma crónica dividida em três partes; foi publicada a primeira e, com o tempo de dois meses a correr, as seguintes não viram mais a luz. Quando interpelei o diretor do periódico em causa respondeu que se esquecera e pensou que eu não enviara os textos. Ora, estava de ver, que, perante este desleixo, falta de comunicação e estima, tinha de terminar ali mesmo. Curiosamente, esta relação já finalizou há mais de um ano e ainda hoje, quando vou à minha zona, as pessoas que me conhecem vêm ter comigo a dar-me os parabéns pelas histórias de vidas que lá contava e muitos se identificavam totalmente. Alguns, que nem conhecia, chegaram a vir ter comigo a Coimbra para me cumprimentarem. Estranho, mas é verdade.
No caso de O Despertar é completamente antagónico. Sinto-me completamente apoiado pela direção do jornal; todas as semanas falamos; antes de ser publicada a minha página recebo sempre a prova para correção de “gralhas. Confesso, não estava habituado a ser considerado assim.
Antes de prosseguir, gostaria de salientar a diferença de leitores. No primeiro caso, no jornal da Mealhada, falamos de um universo maioritariamente de gente simples, de aldeias em torno do Luso e arredores, e no segundo caso, neste d’O Despertar, penso, abrangerá um mundo mais intelectual, de uma cidade cosmopolita, embora de “fiéis companheiros de jornada”, no sentido de que provavelmente é a ternura, o amor, destes assinantes que os mantém presos a um jornal de quase um século.
E, aqui na Baixa, por parte do público? Perante o que escrevo como é que se manifestam? Pois, essa é a questão. Raramente exteriorizam o que lhes vai na alma e quando o fazem é para sublinhar os pequenos lapsos. “Coisinhas”, minudências sem significado. Mais à frente vou dar exemplos. Até há cerca de três meses andei a escrever a história dos estabelecimentos comerciais/versus proprietários. Perdia um tempo imenso para ouvir o comerciante. Ia lá uma vez, não dava, depois outra e mais outra. Escrevi imensas. Pois acredite, que me lembre, nem um só veio ter comigo e mostrar o seu agrado ou desagrado. Claro que se poderá sempre advogar que foram mal escritas e descritas, mas, puxando da minha imodéstia, não foi o caso. Tratou-se apenas de um sentimento comum, que é o “fechar na concha”. Isto é, no pensar deles, “escreveste, está escrito e até te fiz um favor para encher a página do jornal”. Ou seja, em silogismo, ainda lhes estou a dever alguma coisa. Acerca dessas histórias, o único sinal que recebi de um retratado foi vir ter comigo para me dizer que havia lá um engano na narração: “80 mil contos eram 400 mil euros e não 200 mil como eu escrevi”. Em analogia, parece que estas pessoas estão apenas fixadas no erro plasmado e pouco na história em si.
A semana passada escrevi um texto n’O Despertar, pretensamente de intervenção política, com o título “A Baixa vai para a cama com as galinhas”. Foi uma crónica vivida por mim, uns dias antes, aqui na Baixa onde às 21h30, sem gente, os estabelecimentos estavam a encerrar. Em determinado ponto do texto falei de um restaurante que frequento e onde, nessa noite, fui beber café. Para além do nome, tratei o empregado por gerente –até há uma vintena de anos “gerente” era um funcionário comum que, sem se poder obrigar legalmente, representava o patrão na sua ausência. Porque realmente, pelo seu à vontade, estava convencido que o era mesmo. Enfim, intuições bacocas que cada um de nós infere sem racionalidade. Pois, logo de manhã, mal saiu o jornal, recebi um telefonema da proprietária completamente indignada: “olhe lá, o senhor não poderia escrever que o (…) era gerente. O senhor não tem esse direito! Ele é simplesmente funcionário! O que vão pensar os meus clientes?!”


ATO DE CONTRIÇÃO

 Há pouco mais de um mês desabafava com os leitores o meu continuado estado de senilidade avançada. Nessa altura manifestava a esperança de recuperação. Tenho de confessar que estou muito pior. Diariamente, perante tantos tropeções na gramática, dou por mim em frente ao espelho em introspecto solilóquio, em monólogo comigo mesmo, ai, Toino, Toino! Quem te viu e que te vê! Já foste um gato e agora não passas de um “molengão”, escancarado e esquecido, que “nem lá vais nem fazes nada”.
Os lapsos sucedem-se em catadupa. Desta vez, na edição anterior, de uma assentada foram dois. O primeiro, como um vulgar ladrãozito de esquina, furtei ao senhor Costa, da Ourivesaria com o mesmo nome, 12 anos. Ele que já passou por 81 primaveras foi apresentado por mim com 69. Foi grave? Felizmente que não, mas poderia ter sido. Imaginemos que este reputado lobo do comércio tomava mesmo a sério a minha alteração proposta e vinha para a rua de braços no ar a gritar de contentamento: “estou mais novo! Estou mais novo!”. Ou sei lá, no limite, o cirurgião plástico Ibérico Nogueira me vinha pedir contas por concorrência desleal?
O segundo, sem mais nem menos, arvorado em notário, nomeei o senhor Mário, do Café “A Brasileira”, gerente. Foi grave? Felizmente, não. Tive sorte, mais uma vez, está de ver! Imaginemos que ele, sendo um simples funcionário, tomado da convicção por mim exarada em ata de jornal, lhe dava para começar a passar cheques a torto e a direito? Pois é! Às vezes quem escreve não mede bem o peso das palavras e depois dá no que dá. Razão tem o Rui Rio em culpar a imprensa de todo o mal que acontece neste mundo. São uns boateiros, a começar por mim, é óbvio.
Bom, vamos lá acertar contas com os desconsiderados. Ao senhor Costa fica a saber que a sua idade, de facto, é mesmo 81 anos; ao senhor Mário fica também aqui escrito que lhe retiro a anterior promoção e passa novamente a empregado comum; ao café restaurante “A Brasileira” gostava de prometer que não vou cometer erros novamente, mas parece-me que vale mais eu não dizer nada. Estou cada mais debilitado! A todos as minhas desculpas.


Sem comentários: