sábado, 4 de agosto de 2012

OS OLHOS DO PENSADOR

(Foto de Leonardo Braga Pinheiro)



 Na rua da cidade o homem caminha lentamente por entre a multidão. Como proa de navio invisível a rasgar as ondas, ele vai rompendo por entre os transeuntes que, embrenhados nos tormentos das suas vidas, cada um olhando para si mesmo, parecem não dar por outros. Mas ele observa cada rosto, cada traço, cada olhar, cada cabelo, e até a forma de vestir e de calçar de cada um que consigo cruza e esboça um perfil mental do retratado. Ele não sabe por que faz isto, muito menos se serve para alguma coisa. Sabe apenas que, ao analisar os outros, é como se estivesse a ver-se a si mesmo, numa catarse mal-amanhada. Dá por si a pensar que somos todos tão estranhamente quase iguais, apenas com leves diferenças de pormenor, que no conjunto geral praticamente não se distinguem. O curioso, pensa o caminhante para si mesmo, é que todos, homens e mulheres, numa roda obsessiva, à procura do inexistente, buscam essa diversidade, isto é, o diferente… que não existe em lado algum. O que uns têm a mais num lado comportamental, numa ambivalência inexplicável, terão em carência em outro qualquer sentimento. O engraçado, também, é o facto de cada um, sendo feito da mesma argila existencial, à sua maneira, se considerar superior e melhor do que o outro.
Enquanto vai mergulhado nestes pensamentos, de repente, na rua larga, passa por si aquele tipo que ocupa um cargo importante na Câmara Municipal. Marcha erecto, apontando o céu, com o olhar fixo no horizonte, como se o seu raio de visão perscrutasse muito longe, no global, sem se deter nas minudências, nas pessoas, coisas pequenas e sem valor humanitário; como se os indivíduos que se cruzam consigo fossem meras sombras de um cenário teatral chinês. Calcula-se que este comportamento altivo mais não é do que uma máscara de defesa e assente apenas nos alicerces frágeis do interesse estatutário. O nosso caminhante meditativo, observador, dá por si a pensar, como a dissecar esta figura, o que seria este rei, neste tabuleiro de xadrez social, se lhe retirassem o tapete da ilusória importância?
Agora o analista especulador está a passar por aquela dama de meia-idade, divorciada recentemente e que, por sua iniciativa, pôs um ponto final numa relação de muitas décadas. Quando lhe perguntam o porquê dessa atitude, responde que estava farta de aturar o ex-marido. Já não o aguentava. Está boa, o raio da “cota”! Já nem parece a mesma! Ainda apetitosa, bem apertadinha, como maçã golden bem polida e preparada criteriosamente para agradar ao consumidor, como boneca voluptuosa em passo concertado, caminha pela calçada. Acabou de sair do cabeleireiro. As suas longas madeixas alouradas, caindo-lhe pelos ombros, ainda largam aquele odor perfumado que se confunde com café torrado. As suas unhas estão bem pintadas e parecem uma tela repintada de cores berrantes em sótão de pintor sem nome. É de supor que tudo o que fora pêlo no interior do seu corpo, na sua pele já um pouco tocada pelo tempo, aparado pelas mãos experientes da esteticista, como jardineiro em busca da erva daninha, terá desaparecido. Provavelmente, hoje, como é sábado, irá a mais um encontro conseguido num site dedicado, entre centenas de outros, aos descasados desta vida e solitários deste mundo. Como um número sorteado numa tômbola de lotaria lá irá calhar e cair nos braços de algum carente de amor, mentiroso e mais sozinho do que ela própria. Num qualquer quarto bafiento de um motel de estrada, poeirenta e em segunda mão, se rebolarão, com sofreguidão, em torno de momentos de prazer. Como comprimido analgésico, tomado para a dor de cabeça, ambos, naquele entreter fatalista e sem destino, se enganarão durante umas horas. No dia seguinte, como sol que renasce na aurora, na busca pelo homem perfeito, tudo recomeçará de novo. Os seus olhos entristecidos parecem denotar algum cansaço, quem sabe, talvez a sua alma esteja ardente de saudades do seu ex-companheiro e artesão dos filhos queridos? Se calhar já deu para ver, já se teria apercebido, que não há homens perfeitos. Todos são incompletos, finitos, mas a pensarem o contrário. Quando, revendo retalhos da memória, se lembra de certos momentos passados a dois, uma lágrima rebelde, teima em borrar a pintura há pouco retocada no salão. Se pudesse voltar atrás! Mas o tempo está para o humano como a água para o rio. Quer o tempo quer água nunca mais voltarão a ser os mesmos, apesar de o humano e o rio continuarem, aparentemente, a serem iguais.
O mentalista pensador continua a pisar as pedras duras do chão maltratado sem um único queixume. Agora está a passar por um comerciante que está à porta da sua loja. O lojista, em conversa com um seu certamente cliente, com um ar simpático, parece rir. Quantas mágoas afogarão cada risco daquele aparente traço de felicidade? Quantas reviravoltas dadas na cama em noite mal passajada? Quantos sonhos enterrados em campa rasa de isolamento povoarão a sua mente? Mas este homem empobrecido, continuando a aparentar uma forma de estar que já há muito perdeu e derrotado pelo sistema em secretária de luxo, finge com quantos dentes tem na boca. Quando está só, apelando ao seu santo protector, culpa-se e pede perdão em contas de rosário que jamais serão entendidas ou terão fim. Resta-lhe o fingimento numa época de perdidos e achados e de usar e deitar fora.

Sem comentários: