quinta-feira, 9 de agosto de 2012

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O DESPERTAR DESTA SEMANA


Para além da coluna "Um sistema enrolado sobre si mesmo", deixo também o meu texto "Os olhos do pensador".



UM SISTEMA ENROLADO SOBRE SI MESMO

 O “Manel” é um caminheiro destes becos e ruelas. A sua idade física deverá andar à volta dos 65 anos. Nunca lhe perguntei, mas, pela sua disponibilidade de tempo, deve ser aposentado. Como é um tipo que foge ao comum dos reformados, no sentido de que é esclarecido, calculo que tivesse sido funcionário público, sei lá, talvez contínuo, por aqui, numa qualquer escola. Fala com desenvoltura. Nota-se alguma acidez e desdém, materializados numa falta de fé no presente e sem esperança no futuro.
Como uma projeção de mim nas lides jornalísticas amadoras, volta e meia vem ter comigo e soletra: “ó Luís, já viste o que está ali, na rua tal? Já passaste no beco xis? Viste o aborto que lá está?”. E eu lá lhe agradeço a nota, embrulhada numa promessa de passar lá assim que puder e escrever sobre o assunto.
Ontem, mais uma vez, veio falar-me: “ó Luís, não passas lá para cima, para a Alta, para os lados da Rua da Matemática? Sabes lá o que uma certa cambada deu em fazer lá? Então não é que começaram a pintar os candeeiros daquela artéria de vermelho? Já coloriram dois e, pelos vistos, vai tudo a eito. Filhos de uma mãe, que deve estar mais que arrependida em ter gemido tanto em sofrimento para os pôr cá no mundo! Uma pessoa passa lá à noite e não vê nada. O cenário em volta é de um repugnante vandalismo. Aquilo é para fumarem umas passas à vontade e para ninguém ver. Estamos nisto, Luís! Havia de ser numa outra época em que vivi, no tempo do “Botas”, que eles iam ver o que lhes custava andarem a pintar o cenário de cores matizadas e que só a eles convém.”


Às vezes falta-me a paciência para aturar gente como o “Manel”. Estas pessoas, ao virem ancorar a sua frustração no meu porto de abrigo, neste procedimento, há aqui um certo abuso de confiança. No fundo eles não concordam com o sistema em que estamos inseridos, reclamam por entre dentes, mas, para além de não moverem uma palha, nunca dão a cara para mudar seja lá o que for. E então, como sabem que escrevo, ancoram-se. E se umas vezes até são assuntos de nota, outras vezes é de “lana caprina”. Tendo alguém que sirva de muro de lamentações é mais fácil porque ficam em paz com a sua consciência e, ao mesmo tempo, estão sempre protegidos pelo anonimato. São assim uma espécie de grupo de forcados que está atrás do primeiro que arrisca enfrentar o touro. Se a coisa correr bem, mesmo agarrando o rabo do animal, todo o grupo vai receber por inteiro a ovação geral do público assistente. Se correr mal quem apanha a cornada é o que enfrenta a besta.
Desta vez não resisti e interroguei: diz-me lá, por que não vais à Câmara Municipal e apresentas lá uma reclamação? Respondeu-me: “eu já lá fui, mas disseram que não era nada com eles. Que fizesse uma queixa na polícia. Então achas que eu vou para a polícia? Estes gajos são doidos!?!”
É evidente que não sei se teria sido assim. Mas uma coisa dá para ver: o sistema não está preparado para receber a colaboração do cidadão comum. O engraçado, sem graça, é que os detentores do poder estão sempre a apregoar a participação pública de cidadania ativa, mas, através de barreiras psicológicas, fazem tudo para obstaculizar. A propaganda emitida mais não é do que nuvens de fumo em dia de forte vento. Para participar, por exemplo, uma qualquer ocorrência, uma injustiça, implica ao civitas uma grande segurança na sua ação. Tem de ser tomado por algum conhecimento básico do seu direito para conseguir partir a barreira de vidro invisível e levar o seu intento até ao fim. Como a maioria não é assim, entende-se porque temos um tão elevado índice de apatia pelo cuidar da coisa pública e, por outro lado, um aumento exponencial de queixas anónimas.
Qualquer autarquia deveria ter um gabinete vocacionado e direcionado ao munícipe colaborante –claro que se um funcionário da edilidade local me estiver a ler, mentalmente, pensará: “a Câmara Municipal de Coimbra tem um”. Acontece que não falo de um gabinete igual aos outros. Este pequeno balcão deveria estar fora do conjunto. Deveria, por exemplo, estar à entrada, no átrio, com um funcionário preparado para lidar com gente simples. Não é que não saiba que o outro pessoal da casa não esteja, o que digo é que terá de ser de outro modo, mais prático e menos burocrático. O problema é que basta fazer a experiência no atendimento ao munícipe para verificar a impessoalidade do espaço –que é enorme e até assusta. Depois o trato dado por um funcionário que tem de saber milhentas coisas e apanha de tudo e leva pancada de todos –e este facto dá-lhe a necessidade de se escudar, criando máscaras de defesa materializadas numa certa distância e frivolidade. Para a pessoa comum o simples ato de retirar uma senha e estar largos minutos à espera já é um obstáculo quase intransponível. Quem quer colaborar com as autoridades, defendendo valores da coisa pública, quer ser ouvido rapidamente e com atenção porque acha que está a prestar um serviço, logo não pode ser tratado de igual modo a um qualquer indivíduo que vai cuidar de um projeto para uma casa. Aquele cidadão que dá a cara e participa ativamente na vida da cidade não pode, nem deve, ser olhado da mesma forma. Ele é diferente. É um indivíduo preocupado com o que se passa à sua volta e, sendo assim, é preciso agarrá-lo com ambas as mãos. Mas, é óbvio, não é assim. Em contrário, dá a parecer que o próprio sistema, em processo desmotivador, se escuda nestes emaranhados protocolares para evitar a denúncia. Até se entende por que é assim, mas não devia. Talvez valha a pena pensar nisto.


(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)

OS OLHOS DO PENSADOR

 Na rua da cidade o homem caminha lentamente por entre a multidão. Como proa de navio invisível a rasgar as ondas, ele vai rompendo por entre os transeuntes que, embrenhados nos tormentos das suas vidas, cada um olhando para si mesmo, parecem não dar por outros. Mas ele observa cada rosto, cada traço, cada olhar, cada cabelo, e até a forma de vestir e de calçar de cada um que consigo cruza e esboça um perfil mental do retratado. Ele não sabe por que faz isto, muito menos se serve para alguma coisa. Sabe apenas que, ao analisar os outros, é como se estivesse a ver-se a si mesmo, numa catarse mal-amanhada. Dá por si a pensar que somos todos tão estranhamente quase iguais, apenas com leves diferenças de pormenor, que no conjunto geral praticamente não se distinguem. O curioso, pensa o caminhante para si mesmo, é que todos, homens e mulheres, numa roda obsessiva, à procura do inexistente, buscam essa diversidade, isto é, o diferente… que não existe em lado algum. O que uns têm a mais num lado comportamental, numa ambivalência inexplicável, terão em carência em outro qualquer sentimento. O engraçado, também, é o facto de cada um, sendo feito da mesma argila existencial, à sua maneira, se considerar superior e melhor do que o outro.
Enquanto vai mergulhado nestes pensamentos, de repente, na rua larga, passa por si aquele tipo que ocupa um cargo importante na Câmara Municipal. Marcha ereto, apontando o céu, com o olhar fixo no horizonte, como se o seu raio de visão perscrutasse muito longe, no global, sem se deter nas minudências, nas pessoas, coisas pequenas e sem valor humanitário; como se os indivíduos que se cruzam consigo fossem meras sombras de um cenário teatral chinês. Calcula-se que este comportamento altivo mais não é do que uma máscara de defesa e assente apenas nos alicerces frágeis do interesse estatutário. O nosso caminhante meditativo, observador, dá por si a pensar, como a dissecar esta figura, o que seria este rei, neste tabuleiro de xadrez social, se lhe retirassem o tapete da ilusória importância?
Agora o analista especulador está a passar por aquela dama de meia-idade, divorciada recentemente e que, por sua iniciativa, pôs um ponto final numa relação de muitas décadas. Quando lhe perguntam o porquê dessa atitude, responde que estava farta de aturar o ex-marido. Já não o aguentava. Está boa, o raio da “cota”! Já nem parece a mesma! Ainda apetitosa, bem apertadinha, como maçã golden bem polida e preparada criteriosamente para agradar ao consumidor. Como boneca voluptuosa, erótica, em passo concertado, caminha pela calçada despertando olhares de cobiça masculinos. Acabou de sair do cabeleireiro. As suas longas madeixas alouradas em ficção, caindo-lhe pelos ombros, ainda largam aquele odor perfumado que se confunde com café torrado. Leva as unhas bem pintadas, mais parecem uma tela colorida com cores berrantes em sótão de pintor sem nome. É de supor, também, que tudo o que fora pêlo, no interior do seu corpo e na sua pele já um pouco tocada pelos anos, aparado criteriosamente pelas mãos experientes da esteticista, como jardineiro em busca da erva daninha, terá desaparecido. Provavelmente, como é fim-de-semana, irá a mais um encontro conseguido num site de encontros, entre centenas de outros, dedicado aos descasados desta vida e solitários deste mundo. Como um número sorteado numa tômbola de lotaria, lá irá calhar e cair nos braços de algum carente de amor, mentiroso e mais sozinho do que ela própria. Num qualquer quarto bafiento de um motel de estrada, poeirenta e em segunda mão, se rebolarão, com sofreguidão, em torno de momentos de prazer. Como comprimido analgésico, tomado para aliviar a dor, ambos, naquele entreter vazio, fatalista e sem destino, se enganarão durante umas horas. No dia seguinte, como sol que renasce na aurora, na busca pelo homem perfeito, tudo recomeçará de novo. Os seus olhos entristecidos parecem denotar algum cansaço, quem sabe, talvez a sua alma esteja ardente de saudade do seu ex-companheiro e artesão dos filhos queridos? Se calhar já deu para ver, já se teria apercebido, que não há homens perfeitos. Todos são incompletos, inacabados, finitos, mas, curiosamente, a pensarem o contrário. Quando, revendo retalhos da memória, se lembra de certos momentos passados a dois, uma lágrima rebelde, teima em borrar a pintura há pouco retocada no salão. Se pudesse voltar atrás! Mas o tempo está para o humano, como a água para o rio. Quer o tempo quer água, nunca mais voltarão a ser os mesmos, apesar de o humano e o rio continuarem, aparentemente, a serem iguais.
O mentalista pensador continua a pisar as pedras duras do chão maltratado sem um único queixume. Agora está a passar por um comerciante que está à porta da sua loja. O lojista, em conversa com um seu certamente cliente, com um ar simpático, parece rir. Quantas mágoas afogarão cada risco daquele aparente traço de felicidade? Quantas reviravoltas dadas na cama em noite mal passajada? Quantos sonhos enterrados em campa rasa de isolamento povoarão a sua mente? Mas este homem empobrecido, continuando a aparentar uma forma de estar que já há muito perdeu e derrotado pelo sistema em secretária de luxo, finge com quantos dentes tem na boca. Quando está só, apelando ao seu santo protetor, culpa-se e pede perdão em contas de rosário que jamais serão entendidas ou terão fim. Resta-lhe a dissimulação nesta época de muitos perdidos e poucos achados e do desperdício de usar e deitar fora.



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