quinta-feira, 9 de agosto de 2012

A BAIXA EM AGOSTO



 Está um calor do “caraças! Fosca-se, não se aguenta! Os poucos transeuntes que se cruzam comigo na rua vão encostados às paredes, tentando albergar-se na sombra, como se procurassem um coração no breu de uma noite de solidão. Vê-se alguns turistas. Pela indumentária, tudo indica que são de “pé-descalço”. São visíveis as mochilas às suas costas, como se fossem paraquedistas prontos a dar o salto. Certamente, no interior, guardam umas sandes para o almoço e, quem sabe, para o jantar.
Na rua principal, o senhor Ambrósio, comerciante já de idade avançada, como farol a incidir num barco, procura entre os turistas um bom pedaço, como quem diz, uma boazona, que lhe possa encher o espírito. Já se sabe que um homem, para se alimentar, contenta-se com pouco. De certa maneira, quase sem mais nada, basta-lhe uma imagem fresca de um anjo e depois a sua imaginação fará o resto. Salvo excepções, a mente de um indivíduo é povoada de visões de ninfas femininas nuas a dançarem no Éden.
Mas o comerciante está sorumbático. Nota-se no olhar e nos seus ombros arqueados. Precisa daquela visão magnífica, sobretudo, para lhe aliviar a dor de, este ano, pela primeira vez, não poder ir até à "praia dos tesos", que fica ali para os lados dos montes erectos do Mondego. Mais exactamente em Torres do Mondego. No ano passado, com a “famelga”, agarrando no estendal, ainda foi uns domingos até à Figueira da Foz. Como as coisas estão que “não se pode”, para esquecer, atira-se à loja nas horas vagas e a tempo inteiro manda umas “pestanadas” nas “camones”, pensando que está a mergulhar no mar da felicidade eterna.
“Que raio de tempo este!”, pensa para si o senhor Ambósio. De repente passou um cliente seu conhecido e o seu semblante, como candeeiro a petróleo a que chegaram lume à mexa, iluminou-se completamente. “Sim, tem de ser!”, responderia o velho lobo das chitas a metro se lhe perguntassem. Hoje estamos a assistir a um novo tipo de pessimista: o optimista realista. Quem não for optimista não se safa!, poderia ser este o refrão popular. Mesmo na desgraça do pessimismo, todos, temos de acreditar que ainda haverá amanhã. Dos tristonhos não reza a história, poderia ser ainda outro aforismo complementar. Só o arranhar na cabeça do velho comerciante, constantemente, parece provar que a sua alma está mais enegrecida que a camisola preta do clube de Coimbra. Ele não tem motivos para sorrir. Ainda ontem, como um corvo de mau presságio, andou um agente de insolvências, na Baixa, com um braçado de notificações a participar a má-nova. E se o homem andava triste! Triste não, mais pesaroso que a angústia, a tristeza e o isolamento todos juntos. “Não lhe gabo o empenho”, pensou, mais uma vez para si o velho balconista, já depois de o seu amigo ter desaparecido e engolido pela mancha tépida da calçada. Como num retorno impossível de suster, voltou novamente a ter as mesmas olheiras carregadas de angústia, os mesmos traços, os mesmos vincos, a fazerem lembrar as ondulações da areia no deserto chicoteado pelo sol abrasador. E se a metáfora está bem utilizada! Afinal, o que somos nós nesta vida se não grãos de areia que, tocados pelo vento, se vão progressivamente tornando menores e até desaparecerem em partículas de pó no infinitésimo espaço?
Mais à frente, o senhor Sulpício, vai orientando os seus empregados no seu café. A esplanada está bem preenchida. Vê-se bem que, pelo linguarejar, são estrangeiros. Na mesa ao lado está um grupo de “emigras”, nossos compatriotas que há muitos anos estão distribuídos pelas terras de França e Suíça. Todos falam em francês. Mesmo até o pedido ao Isaltino, o empregado, foi feito na língua de Asterix. O rapaz, que é de uma simplicidade absoluta, numa primeira fase nem notou e até fez um grande esforço para entender os naturais de Gustave Heiffel. Foi então que uma frase em português, saída da boca da mulher mais velha, o mandou aos arames. Então não esteve com simpatias. Chateado pelo embuste, engatilhou uma expressão, apontou à velha, e disparou: “olhe lá, minha senhora? Se é portuguesa, porque não falou comigo em português? Tem vergonha da nossa língua, é?”. E a velhota, presa aos velhos costumes de quando usava avental e o utilizava para esconder as mãos, começou a tropeçar em lapsos e relapsos e enfiando os braços pelas pernas varizentas, o bastante para que o Isaltino não entendesse nada. Encolhendo os ombros, fazendo de conta que tudo estava bem, lá foi à sua vida, porque há “emigras” para ir e voltar.


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