segunda-feira, 30 de julho de 2012

UM DOMINGO AZARADO


 Pelo menos uma vez por mês vou a Aveiro. Como tenho tido relações de trabalho com um homem lá na periferia, que há cerca de dezoito anos me faz uns arranjos em peças que vendo na loja, aproveito sempre a minha ida no coincidir com a feira de velharias, que se realiza sempre ao quarto domingo. Para além de gostar muito desta cidade, para mim, este é o melhor certame da zona centro. Por iniciativa da autarquia, os vendedores estão espalhados por entre praças, becos e ruelas do centro histórico e, em simpatia, nesse dia, desenvolvem todo o comércio local.
Como faço habitualmente, dentro da hora do almoço, e levando comigo um caixote com os arranjos futuros, nas calmas, ontem parti em direcção à Veneza do meu imaginário. Uns quilómetros antes, e já próximo da cidade, acendeu-me a luz sinalizadora da bateria do carro. Como o meu “burro” já tem mais de uma dezena de anos, nem achei muito estranho acontecer. Às vezes é o alternador que está com paranoias e dá-lhe para me azucrinar o juízo. Tomei atenção ao ponteiro da temperatura e estava normal. Em pensamento, cá com os meus botões, pensei que, em princípio, não haveria problema. Pelo sim, pelo não, fui mais devagar. Quando surgissem as primeiras bombas abastecedoras de combustível iria parar e verificar. Passados uns quilómetros o manómetro da temperatura começou a subir. Em conversa só comigo, pensei, bom, às tantas, como está muito calor, está com falta de água no radiador. Quando chegar ao posto abastecedor, páro e vou ver o que se passa. À entrada da cidade dos canais encostei na primeira gasolineira Repsol. Abri o capô da viatura e, como médico a avaliar um paciente, acabei por verificar que tinha sido a correia da ventoinha que tinha partido. Estava visto que já não poderia circular, a não ser em cima de um reboque.
Puxei do telemóvel e liguei ao meu colaborador. Afinal eu era seu cliente de quase vinte anos e, entre nós, sempre houve uma cordialidade e até uma aparente amizade. Estava a falar com ele ao telefone portátil, a tentar explicar-lhe em que sítio da urbe estava apeado e a pedir-lhe que viesse ao meu encontro quando pudesse para levar a obra de interesse comum. Poderia ser por volta das 18 ou 19h00 e dentro das suas possibilidades, alvitrei. Ainda antes de acertarmos o local de encontro, entretanto, a chamada caiu. Fiquei sem saldo no portátil. Esperei que ele me ligasse e nada. Quem conhece bem aquela avenida sabe que é muito longa, talvez dois quilómetros até ao centro da cidade. Atirei-me à estrada à procura de uma máquina de Multibanco. Até que encontrei uma e carreguei o meu utilitário. Liguei ao homem e fui dizendo, “fiquei sem saldo. Diga-me lá, porque não me ligou? Que diabo, eu pagaria a chamada. Meio a titubear, lá foi dizendo que não sabia o número. Argumentei que ele estava mesmo à sua frente. Há quinze minutos tinha acabado de fazer a ligação. Continuou a esboçar uma desculpa esfarrapada, que não percebia nada de telemóveis, assim e assado, e foi por isso que não ligou. Pronto, passemos à frente, disse eu. Precisava que me fizesse o favor, repeti: se me vinha buscar o caixote e o levava porque estou impossibilitado, por ter o carro imobilizado com a correia da ventoinha partida. “Estou na praia, na Barra… você não pode vir cá? Que diabo… não dá jeito… sabe?!...”. Comecei a ferver por dentro muito mais que o motor do meu carro anteriormente quando se viu sem a ventoinha refrigeradora. Fiquei furibundo. Só lhe disse: deixe lá. Passe bem! 
Se há coisas que mais me tiram do sério é a apatia, a insensibilidade, perante alguém que está em apuros. Quem me segue e lê o que escrevo sabe que em algumas coisas –em outras não, onde sou completamente devasso- sou profundamente moralista. Naquilo que escrevo, e quando isso acontece, como é caso de agora, é com convicção que o afirmo. Perante alguém em dificuldades eu sou incapaz de ficar ledo e quedo. Já aconteceu, muitas vezes, levantar-me a meio da noite para acudir alguém –também já muitos o fizeram por mim, e quando faço algo pelos outros é sempre a pensar que alguém, em gesto altruísta, me passou o ceptro da mensagem comportamental para que eu a passe em contrapartida. Somos todos mensageiros, quer da paz, quer da guerra. Ao longo da minha vida fui bafejado com o prazer de ter encontrado pessoas anónimas, cujo nome desconheço, mas que num determinado momento de aflição foram fundamentais para me retirar de um enrasque. E eu, ao pensar nisso, como se fosse um embaixador da boa vontade de favores em cadeia –é o título de um bom filme que vi há cerca de uma vintena de anos-, faço o mesmo. Muitas vezes sou incompreendido por quem me rodeia e raramente entendem o gozo que me dá fazer isto.
Continuando, fiquei então furibundo com aquela falta de solidariedade de um meu conhecido –imagine-se se fosse um desconhecido, qual seria a atitude desta pessoa? Mas, pronto, passei à frente. Até estou grato por, embora tarde mas a tempo, ver que este sujeito não pode, de modo algum, fazer parte dos meus mais próximos. Cortei e acabou. Paz ao seu desinteresse burro. Porque o que choca mais é a sua estupidez. Afinal havia ali uma relação mútua de interesses.
Já passava das 15h00 e eu sem almoçar. Entrei num restaurante, à berma da estrada. Reparei que cá fora, nas mesas, tinha várias pessoas sentadas. Da esplanada saiu uma mulher ainda jovem. Cumprimentei-a e interroguei: pode arranjar-me uma sandes? O que é que tem? Meia constrangida, como se tivesse ficado aborrecida por alguém a ter arrancado à cadeira, disse: “desculpe, não temos nada para sandes. Fiambre e queijo não temos…”. E uma bifana?, coloquei por hipótese. Também não. Já não havia carne. “Sabe, encerramos a cozinha, ao domingo, logo a seguir ao almoço.”
Confesso que, perante coisas destas, fico sem palavras. Só pergunto como é que é possível acontecerem cenas assim?! Estou sempre a defender o comércio tradicional. Ainda há dias o fiz com fervor e perante um texto de um jornalista do semanário Expresso. Mas, quando me sai um duque destes do baralho, tenho de reconhecer a minha incoerência na coerência –acho que é vício comum em quem expressa o pensamento em escrita. Escrevemos no soprar da brisa suave do vento e utilizando as linhas inconstantes do tempo. Realmente há muita gente no comércio de rua que são péssimos representantes do todo, e, naturalmente, por uns pagam todos e, no conjunto, são apreciados globalmente.
Fui almoçar ao Fórum de Aveiro. No meu entendimento, esta é a grande área mais bem-sucedida da zona centro. Já lá vou há muitos anos. Para quem não conhece, em analogia, tem a configuração de uma rua de cidade, com um longo corredor, onde os passarinhos esvoaçam livremente. Ontem, certamente por ser domingo, estava cheio de gente a passear, com as esplanadas com clientes a consumir e algumas lojas a vender. Em volta do shopping, mesmo nas ruas transversais vi muitas pessoas. Por momentos, largos, diga-se, não pude deixar de pensar que quando tantos comerciantes pedem o encerramento ao domingo de todo o comércio no país não podem estar mais errados. O comércio existirá sempre enquanto houver necessidades para satisfazer. Logo, se há clientes dispostos a gastar dinheiro no dia do Senhor, porque estão de folga e têm tempo para passear com os filhos, o comércio de rua o que tem a fazer é render-se a esta evidência. Provavelmente se houvesse mais teimosia destes operadores, abrindo ao sábado e domingo e encerrando um qualquer dia da semana, se calhar, não haveria a miséria que todos estamos a assistir diariamente neste sector. O trágico desta questão é que poucos estão dispostos a mudar velhos hábitos arreigados e incompatíveis com os tempos de crise que vivemos –mas estaremos mesmo em crise? Todos os dias dou comigo em duvidar. Há, de facto, uma crise latente, mas é apenas para alguns. A maioria continua na maior, como se o futuro não constituísse qualquer apreensão.
Ah, é verdade, para terminar em beleza, a feira de velharias de Aveiro tinha sido no fim-de-semana anterior. Este mês de julho teve cinco domingos.



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