quinta-feira, 31 de maio de 2012

LEIA O DESPERTAR




LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA


Para além da coluna "Elegia ao Homem do Café (1)", deixo também os textos "Reflexão: filhos de um Deus menor", "Quando a ambição tolda a razão" e "Rostos nossos (des)conhecidos: o ceguinho".



ELEGIA AO HOMEM DO CAFÉ (1)


 São sete horas da manhã. Como todos os dias, depois de umas horas a “passar pelas brasas”, acordo com o retinir da campainha do despertador. De segunda a sábado é sempre assim. Às oito horas, impreterivelmente, tenho de abrir o café. Se não o fizer, já sei que os meus clientes habituais vão bater-me à porta de cinco em cinco minutos e interrogar: “está doente, senhor João? Ai não? Ainda bem! Sabe, é que, como costuma ser pontual, até pensei…” –Bolas! Um empresário de hotelaria não pode atrasar-se nem um minuto sequer. Às vezes dou comigo a pensar para quê este meu frenesim na abertura da porta. Bem sei que é o pessoal que trabalha no comércio, entram às nove. Mas agora, com esta crise, nesta hora primeira do meu dia, estou a vender meia-dúzia de cafés –só para comparar, há uma década eram cerca de 70 e há vinte anos tirava mais de uma centena. Nesses tempos, para além das bicas e dos muitos galões, ainda saíam muitas torradas, sandes de fiambre e queijo, tostas, e muitos pastéis. Hoje, durante a primeira hora, ninguém me pede uma sanduiche e muito menos um bolo.
Tantas vezes que dou por mim a olhar para a máquina de café, que está ligada a consumir eletricidade desde as 07h30 –liga meia-hora antes para aquecer- até à meia-noite, hora a que encerro todos dias, e penso se valerá a pena continuar neste negócio. Porque não é só este aparelho que me consome as entranhas e trabalha para a EDP, é também uma bancada frigorífica de dois metros, uma vitrina para a pastelaria, um forno ondo cozo os “Panik’s”, a máquina de lavar louça, a arca dos gelados, o moinho de café, a máquina dos sumos, o micro-ondas, a torradeira e ainda o secador de mãos, na casa de banho. A minha fatura mensal de energia, em média, por mês anda sempre a rondar os 300 euros, isto durante o inverno, porque no verão, como ligo o ar condicionado, vai aos 400.


É certo que sempre gostei da indústria hoteleira, mas, hoje, perante os tempos conturbados que vivemos, penso muitas vezes em renunciar. Olho para trás e o que vejo? Trabalho, trabalho e mais trabalho. Comecei com isto sem tostão, com dinheiro emprestado –aliás, sendo filho de “pé-rapado” o que se poderia esperar? Foi através deste muito transpirar que tentei educar os meus dois filhos. Um deles licenciou-se, e, no primeiro dia, que transpôs a Porta Férrea chorei a bom chorar –ali, naquele ato hoje tão simples, naquela fotografia, estava tudo; os meus sonhos idealizados e o que eu não tive hipótese de ter tido.
Dei aos dois, por igual, todas as oportunidades que não me foram facultadas: andarem no desporto, frequentarem o Conservatório de Música, irem para a Universidade. Fiz o que pude e o que não pude para os tornar, acima de tudo, felizes. Quando eram pequenitos, porque não tinha tempo para os acompanhar, sempre que podia levava-os a passear e comprava-lhes um brinquedo novo. Nas datas mais marcantes das suas vidas, como, por exemplo, na peça de teatro em que entravam lá na escola, eu corria a bom correr para estar lá. Tantas vezes cheguei atrasado, já depois do espetáculo ter começado, mas, para que vissem bem que eu marcava presença, levantava os braços e acenava para que soubessem que não me esquecera deles. Estive sempre presente nas festas mais importantes da sua história recente  –fazia questão de ser assim, porque os meus pais nunca me acompanharam em criança, nem na primeira-comunhão. Essa lacuna deles nunca me largou e tenho a certeza que, mal e bem, contribuiu muito para a minha forma de ser. Dei sempre o máximo para poder proporcionar aos meus descendentes uma infância equilibrada e alegre. Hoje, um está com 30 anos e outro um pouco menos. O que se licenciou está no desemprego, o outro, que nunca passou do 9º ano também está desocupado –o problema é que este, com várias depressões associadas na última década, acusa-me frequentemente de ter sido o causador da angústia que consome a sua alma. Não lhe dei o amor que deveria ter dado, invoca amiúde vezes. Em coro, a mãe, minha mulher, diz o mesmo: “tu és o culpado de o “menino” ser assim!”. De pouco me vale arguir que me entreguei de corpo e alma ao trabalho para lhes dar uma existência afortunada e nada comparável à minha e que tenho gravado a fogo na mente. Andei descalço, o meu pai nunca quis saber do meu futuro. Nunca me lembro de me ter dado um beijo; muito menos de me perguntar se precisava de alguma coisa. Então, relacionando, em somatório de privações e custo-benefício, o que deveria ter sido eu? Talvez um bêbado, um drogado, um fracassado passageiro da noite? Para explicar os meus desaforos, poderei avocar as minhas carências afetivas? Posso sim, mas não devo. Cada um de nós é sempre o resultado de várias circunstâncias confluentes. Por outro lado, não há pais perfeitos, nem filhos modelos. Há apenas pessoas com defeitos e virtudes. O que é necessário é não esquecer que cada um, pai e filho, com sua responsabilidade, tem obrigação de fazer o melhor que puder para a sociedade. Um foi e outro será sempre o princípio de uma nova obra e a esperança de um novo tempo. 
(Continua na próxima edição)


REFLEXÃO: FILHOS DE UM DEUS MENOR


 No último sábado, numa produção agregada da Junta de Freguesia de São Bartolomeu, da Fundação Inatel e da Câmara Municipal de Coimbra, realizou-se mais uma edição das “Maias, Doces e Cantares”, na Rua Ferreira Borges.
É normal alguns comerciantes, sabendo que escrevo amiúde vezes sobre o comércio, me fazerem chegar os seus queixumes. Tal como noutras ocasiões, também desta vez, alguns, me apresentaram os seus lamentos sobre o facto de tudo o que são alegorias, sobretudo promovidas pela edilidade, serem sempre apresentados nas “ruas dos ricos”, como apregoam com algum desdém. Realmente não se entende que, em equidade e um pouco para agradar a todos e desenvolver a Baixa enquanto um todo, os certames não sejam distribuídos também pelas ruas estreitas. Dá a parecer, e essa é a impressão corrente, que os comerciantes desta zona são filhos de um Deus menor.

QUANDO A AMBIÇÃO TOLDA A RAZÃO

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)

 Alegadamente e segundo declarações do próprio, um cidadão do Bengladesh, estabelecido com um pequeno restaurante na Baixa desde fevereiro último, na semana passada, porque tinha a sua renda em atraso, e não embarcou no jogo do senhorio, teria sido agredido dentro do estabelecimento que explorava.
Por questões de salvaguarda não irei apresentar a identidade dos intervenientes, até porque o que pretendo não será uma condenação pública localizada, mas antes que este caso possa fazer refletir os proprietários do Centro Histórico. Atualmente as rendas novas praticadas no comércio, para além de constituírem um escândalo, estão a mandar para o charco dezenas de pessoas que, num momento de falta de trabalho, aspiraram a tentar a sorte com um negócio. Não vou dizer que, legal e legitimamente, cada senhorio não possa levar a renda que quiser e bem entenda, o que afirmo é que, tendo em conta as dificuldades que se vive no dia-a-dia, é imoral praticar valores de milhares de euros. Para além disso, há outras questões que nos devem fazer pensar. Se não se infletir nesta situação –e aqui espero que o Governo legisle para condicionar esta prática corrente-, por um lado, está-se a matar a galinha dos ovos de ouro dos proprietários, por outro, pela ganância generalizada, está a condenar-se esta zona de antanho a ser um cemitério de lojas encerradas por insolvências provocadas.
Embora a ofensa à integridade física fosse participada à PSP, tentando contar os factos com a maior seriedade possível, explanando o assunto, vamos ouvir o cidadão imigrante: “eu abri o restaurante em 10 de Fevereiro, último, já mobilado e pronto a funcionar, com uma renda mensal de 1300 euros. Tenho tido muita dificuldade em cumprir o pagamento. Neste momento estou a dever um mês de renda. Tenho tido problemas com o Alvará na Câmara Municipal e com a licença do estabelecimento. Estou também com dificuldades na extração de fumos pela chaminé e não me aprovaram a instalação do gás. Comuniquei tudo isto ao senhorio e até à data nunca me resolveu estes constrangimentos. Como estou a fazer 70, 80 euros por dia, não tenho conseguido cumprir com a minha obrigação contratual. Há dias, no dia 12, apareceu-me no estabelecimento, o dono do prédio, a dizer que eu tinha de fechar porque estava com a renda em atraso. No dia seguinte a mesma coisa e acabei por não abrir mais. Hoje recebi um telefonema dele a dizer que queria falar comigo, e para nos encontrarmos no restaurante. Fui lá, entrei, e a seguir entrou ele com outro sujeito. Lá dentro, disse-me que se eu não saísse imediatamente colocava tudo o que era meu na rua. Puxou de uma folha e queria que eu a assinasse. Como eu percebo mal a escrita portuguesa, disse-lhe que, primeiro, tinha de levar o documento ao meu contabilista para ele ler. Perante a minha recusa, o senhorio colocou as mãos no meu peito, na camisola, e, brutalmente, atirou-me para o chão. Depois retirou-me as chaves do estabelecimento.”
Por coincidência passei no local à hora deste acontecimento. Embora não tivesse presenciado a alegada agressão, pude constatar que o cidadão estrangeiro tinha a camisola rasgada e dois ferimentos ligeiros em dois dedos ensanguentados. Pude verificar também que o dono do prédio, encerrando a porta e colocando a chave no bolso, deixou o seu inquilino na rua.


ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS


“O CEGUINHO”

 Quantas vezes, nos últimos 15 anos, já o escutaram na Rua Eduardo Coelho com a sua lamúria: “tenham dó e caridade de auxiliar o ceguinho, com uma esmola, para quem não vê a luz do dia, senhor”?
É o Eduardo Ventura Neves, de 58 anos, e é cego de nascença. Vive em casa dos pais, em Casalinhos, Soure. É solteiro e bom rapaz. Recebe 140 euros da Segurança Social, talvez uma pequena reforma por invalidez, não sabe. No princípio custou um bocado estar a apelar ao óbolo, com o “ajudem o ceguinho, senhor!”, mas agora, já se habituou. “Se pudesse, não estaria aqui”, confidencia-me. Sobretudo agora, que, com a crise, as pessoas dão tão pouco.











Sem comentários: