sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

A HISTÓRIA DE TERESA

(IMAGEM DE LEONARDO BRAGA PINHEIRO)



                                              I

“Nasci numa “terreola” ali para os lados de Oliveira do Hospital, em 1965. A minha mãe era cigana. Quando conheceu o meu pai, um português estarola e viandante por terras de Espanha, era bailarina de flamengo, em Salamanca. Apaixonaram-se, mas como se tratava de um amor impossível entre duas culturas tão diferentes entre si, tiveram de fugir a toda a pressa de terras de Castela e Leão para o meu pai não ser trespassado por balas.
Por acasos do destino vieram a cair numa aldeia onde o Sol era o deus menor e o Inverno longo demais. Tornaram-se caseiros de uma grande quinta, de uma família de Lisboa. Naquela imensidão de terra, onde o horizonte parecia longe, tratavam de tudo no respeitante à agricultura. Lavravam a terra e cuidavam dos muitos animais. Como não tinha outros divertimentos o meu pai fazia filhos. Quando nasci vi-me no meio de uma prole de uma dezena de irmãos. Os tempos que corriam eram de extrema pobreza para todos, quanto mais para uma família numerosa.
Talvez por pena, não sei, os donos da quinta e patrões de meus pais levaram-me para Lisboa, tinha eu então 18 meses de idade. Eu fora dada como coisa imprestável e sem valor. Fui com raquitismo em último grau. Salvaram-me a vida “in extremis”. Moravam em Almada. Eram duas irmãs, uma delas, médica. Uma das duas era casada com um almirante da marinha, do Arsenal do Alfeite, não podia ter filhos. A outra tinha dois herdeiros. Como viviam em casas gémeas, fui logo viver com a que não podia ter descendentes. Mas como eram edifícios ligados, estava sempre em contacto com as duas famílias. Almoçava numa casa e jantava noutra. Era uma criança mimada por todos. Davam-me tudo. Certamente pensavam que ao cobrir-me com bens materiais me enchiam de contentamento. Apesar de ser muito bem tratada, naquele ambiente opulento, senti sempre que era a “outra”, a estrangeira, a filha que não pertencia àquele meio.
Nunca me perfilharam nem deram carinho. A ternura em coisas simples, como se dá a quem se ama. Talvez porque lhes faltasse o cordão umbilical do amor que os ligaria a mim, para compensar, ofereciam-me tudo, materialmente, em excesso. Mas o gesto não era tudo. A quantidade não fazia a qualidade. Eu era uma criança ensimesmada. Faltava ali qualquer coisa e nunca enchia o buraco negro da minha solidão. Naquela casa grande, abastada, sentia-me sempre deslocada. A menina só, rodeada de objectos, de coisas e mais coisas que nada me diziam. Depressa me apercebi que a felicidade está muito para além do tangível. Embora faça parte do mesmo pacote, transcende tudo o que é palpável. Sentia-me uma alma perdida num vácuo, um lençol a esvoaçar ao vento, sem ponta de corno onde se apoiar. Nada daquilo que me era oferecido me preenchia. Por mais que me fizessem as vontades, nada tapava aquele negrume que, como cal viva, me carcomia o peito. Era um remoer diário, como se tivesse um roedor a mastigar-me as entranhas e a provocar-me uma dor lancinante. Eu não sabia nada de onde viera nem para onde ia. Sempre que procurava saber das minhas reminiscências a conversa era desviada e eu ficava cada vez mais profundamente infeliz.  Jamais entendi a razão de nunca me terem levado a visitar os meus pais. Até parecia que ao fazerem um corte entre o presente e o passado me queriam poupar a qualquer coisa que não entendia.
Até aos 16 anos, dia após dia, vivia acordada e pregada num pensamento; noite após noite, a dormir,  sonhava com a minha mãe a ir buscar-me num cavalo branco e a envolver-me num longo e apertado abraço. Imaginava cenários de muitas lágrimas e muitos beijos repenicados. Muitos apelos vincados em gritos de silêncio: “mamã… mamã!”
Mas os meus pais idealizados e idolatrados nunca apareceram, nem me foram visitar.

                                     II

 Depois de muito insistir com a família de acolhimento, já com 17 anos, consegui saber que os meus pais biológicos viviam agora na Mealhada. Agarrei no meu estendal e parti da Capital à procura da razão do meu ser e de toda a minha existência.
Foi um choque brutal ao entrar naquele pequeno mundo de miséria e tão diferenciado da casa onde cresci. Num pequeno tugúrio viviam todos os meus irmãos e irmãs e os meus pais. Ninguém conseguia falar com ninguém. Nem eles diziam nada, nem eu. Ali eu era uma estranha. Era notório que não fazia parte daquele universo indescritível. Estive lá dois dias. Ao pequeno-almoço davam-me sopas de “cavalo cansado”, broa em bocados com vinho. De manhã, quando me levantei e fui tomar banho, numa casa-de-banho sem privacidade, dei com o meu pai a espreitar através da cortina. À noite, já muito bêbado, ouvi-o gritar, aos berros com a minha mãe: “confessa… a Teresa não é minha filha, pois não?! Diz-me, porra!”
Estampei-me completamente com aquele quadro paupérrimo. Fiquei desorientada. Era o ruir de muitos sonhos que sustentavam o meu crescer. Sentia um enorme conflito interior dividido entre a raiva e a comiseração. Por um lado foi bom conhecê-los. Foi o desmistificar de uma ilusão. Por outro, a perda desta fantasia foi terrível. Foi sanguinolenta para a minha emoção. Era neste estuário de imaginação que eu me ancorava.
Regressei a Lisboa de cabeça perdida. Não era mais a mesma rapariga que uns dias antes, feliz e cheia de ansiedade, partira à procura do sangue do seu sangue, da sua própria identidade, do seu passado. Depois de conhecer a verdade, era uma sombra que se arrastava pelas pedras da calçada.
Na casa da minha segunda família ninguém me perguntou como estava e o resultado da viagem. Se calhar nem se aperceberam que eu não era mais a mesma pessoa. Provavelmente nem teriam visto que eu perdera toda a força anímica que impele um qualquer pré-adulto para a luta que se avizinha.
Pela minha fragilidade, mais que certo, depressa estava a arranjar muletas para me manter erguida, igual, no meio de pessoas que nunca questionaram a minha tristeza. Comecei na erva, no “axe”. Com 18 anos entrei na heroína. Sempre obsessivamente à procura de novas sensações que me fizessem esquecer e para tapar aquela abertura horrível e sem fundo que tinha no meu âmago.  A seguir, conheci a cocaína. Nunca tive problemas de dinheiro -hoje, à distância, tenho a certeza que as drogas entraram na minha subsistência não só pela necessidade de amparo psíquico, mas sobretudo pela facilidade que tinha no acesso monetário. O dinheiro não era problema. Os estupefacientes muito menos.  Com o 25 de Abril, embrulhados na democracia, num manto de liberdade esotérico, os narcóticos vieram para conquistar, rasgando a fogo de destruição muitos jovens como eu, e ficar de vez no território. A vontade de experimentar tomava todos de supetão, ou, pelo menos, os mais abastados. Era tudo diferente, um desconhecido mundo novo que viria a marcar a minha vida para sempre.
Embora possa constituir uma desculpa esfarrapada, é bem possível que a minha propensão para a adição tivesse a ver com os meus genes, em virtude de os meus pais serem alcoólicos. Será? Não será? Jamais obterei uma resposta convincente e esclarecedora.
Curiosamente, ou nem tanto, esta família de hospedagem nunca se apercebeu da minha adolescência tumultuosa. Nas aulas tudo correu razoavelmente. Não dava nas vistas, e era uma aluna média e regular.
Depois do liceu fui estudar para a Escola Superior de Belas Artes António Arroio. Nunca deixei o maldito vício. Era nele que explanava toda a minha frustração. Era a minha praia privada onde tomava banhos de solidão.
Com 23 anos tinha o curso artístico. Completei com o mestrado em Belas Artes, em pintura, restauros e toda a sua envolvência, incluindo arte sacra e tectos. Para além disso já tinha feito várias exposições na Rua do Ouro, na Rua Augusta. Mas eu tinha aquela angústia que me corroía a alma e todo o meu ser. Quem era eu? De onde provinha? Eu precisava de saber. E de cada vez que me interrogava mais me atolava no entorpecimento para esquecer.

                                         III

 Até que, naturalmente, depois de tantos anos, foi descoberto o meu segredo: havia um drogado na família. As reacções foram o pior que se possa imaginar. Vieram os cortes drásticos na semanada e grandes sermões telúricos, que abanavam tudo em redor.
Mas a minha mente não alinhava com convenções nem restrições e depressa estava a remediar a situação da pior maneira. Comecei a surripiar tudo o que podia para vender na Feira da Ladra. Uma peça aqui, outra acolá nos talheres de prata, Companhia das Índias, faianças portuguesas antigas, enxovais e lençóis de linho, paulatinamente, ia tudo. Num fim-de-semana, em que tinham partido para a quinta, despejei arcas e armários.
Quando regressaram a Lisboa, vindos de Oliveira do Hospital, foi um embate brutal naquela realidade aparentemente impossível de prever, um tumulto de choros, complexos de culpa e imprecações. Fui posta na rua só com a roupa que tinha no corpo.
Fui viver para a Costa da Caparica, para a praia. Durante vários anos dormi dentro de um barco e onde calhava.
Numa tentativa de fugir àquele ambiente de toxicodependência, vim para Coimbra. Mas azar meu, aqui, nesta cidade, era igual. No fundo, bem no fundo, eu queria abalar de mim. Eu queria desprender-me deste corpo pesado e que tanto sofrimento me causava. Mas a resposta para os nossos problemas está sempre dentro de nós e nunca no exterior que nos rodeia. Nessa altura não entendia isso. Tentei o suicídio. Mas até aqui não tive sorte.
Um dia, num eterno retorno que nos há-de comandar sempre, mais uma vez à procura de ausentar-me de mim, fui para a aldeia, próximo de Oliveira do Hospital, e pedi ajuda, argumentando que era filha dos caseiros da quinta, atrás do Sol Poente.
Durante 11 dias trabalhei no campo, na tentativa de parar a ressaca que me aniquilava todo o meu ser. Tinha a certeza que não era com Metadona ou Subtex que eu me conseguiria curar. Só o trabalho poderia constituir a terapia que eu tanto necessitava para me encontrar. Em solilóquio, dizia para mim que nunca mais consumiria drogas duras. Nunca mais! –repetia até à exaustão.
Na aldeia, encontrei o amor da minha vida: o Leonardo. Era muito mais velho do que eu. Trabalhava em estucador e ladrilhador. Viemos para Coimbra. Tive uma filha, deve ter hoje 16/17 anos. Perdia-a com 7 anos. Prometeram-me que ficaria no “Ninho”, na Bissaya Barreto, junto ao Portugal dos Pequenitos, até eu recuperar. Um dia cheguei lá e a criança, a minha filha, a carne da minha carne, não estava. Começaram a dar-me desculpas e eu “passei-me dos carretos”. Agredi a directora. Prendia-a pelo pescoço para ela me dizer onde estava o sangue do meu ventre. Veio a polícia. Estive detida um dia. Nunca mais soube onde está o fruto do meu grande amor. Desapareceu para nunca mais a ver. Custa muito. Apesar de consumir, amamentei-a ao peito até aos dois anos. Alguém consegue perceber uma ferida destas? Retirar um filho a uma mãe é selvático, é impessoal, é inqualificável. É duro de mais para ser verdade. Onde está a minha querida?
O Leonardo não queria trabalhar. Um amor e uma cabana nunca deu certo. Separámo-nos. Entretanto fui trabalhar para o hospital dos Covões, mas como continuava a consumir fui despedida.
Hoje, curada das drogas,  continuo em Coimbra. Vivo mal, com muita dificuldade. Estou junta com o João, já há 5 anos. Ele, tal como eu, está desempregado. Faz pequenos trabalhos de artesanato, de utensílios que apanha no lixo. Temos uma casa ali para os lados da Alta. É muito difícil, sem emprego, manter o nosso lar e vivermos, minimamente, com algum conforto. Não queremos esmolas. Precisamos de trabalho. Eu quero viver com dignidade. Continuo a pintar. É o que gosto de fazer. Nunca abdicarei da pintura. Tenho duas certezas: a primeira, é que hei-de encontrar a minha filha. A segunda, sei que morrerei na miséria porque não se dá valor à arte. A pintura não dá.”


(HISTÓRIA VERÍDICA, CONTADA NA PRIMEIRA PESSOA)

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