quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O REGRESSO DO SOLDADO





 Naquele dia, vi-o de ombros descaídos, de lágrimas a querem saltar dos olhos, como pingos de água num charco provocado pelas goteiras de um beiral. Ali, naquele dia de semana aparentemente igual a outro qualquer, na Rua das Padeiras encontrei um soldado que, durante décadas, lutou em defesa e pela Pátria, colocando a conveniência desta acima dos seus próprios interesses pessoais e quando se dá conta essa mesma nação abandona-o e trata-o como uma coisa qualquer. Passando a metáfora, tratou-se de um empregado de comércio que, durante quatro décadas, defendeu os interesses de uma casa comercial na Baixa. Um dia, em 10 de Abril de 2009, como sempre fizera, ia para entrar ao serviço e deu de caras com os vidros das montras cheios de papéis colados e um anúncio “Arrenda-se”. Como andorinha que acabou de perder o ninho e toda a passarada, este homem esteve ali, ao pé do estabelecimento, durante toda a manhã. Como se estivesse a velar o corpo de alguém muito querido que partiu, este empregado comercial, como disco riscado, repetia: ““É injusto, sabe? Estive aqui uma vida. É verdade que até ontem fui sempre bem tratado como pessoa. Mas, com este acto –que eu não merecia- parecem querer tratar-me como uma qualquer mercadoria. Mas olhe, não esqueça, sempre me trataram bem… até ontem…”
Por causa de ter escrito este texto –veja aqui- tive um processo por difamação e no qual, pedindo a instrução, foi declarada a nulidade da acusação e o despacho de não pronúncia –veja  aqui.
Passaram dois anos, e neste tempo que não voltará atrás, muitas coisas mudaram, muita água passou debaixo da ponte. Nem a loja voltou a ser a mesma, nem eu -até aqui sempre escrevi com cuidado e responsabilidade, mas, depois de me “sentar no mocho”, redobrei ainda mais os meus cuidados-, nem o Humberto, o empregado comercial que foi despedido sem o ser, voltou a ser o mesmo.
Hoje, passado já muito tempo que não nos víamos, o Humberto veio visitar-me. Não que a sua simples visita não seja sempre agradável, mas há mais. O Humberto, o velho amigo, de 56 anos, e empregado de balcão comercial, hoje, à minha frente, apresentava-se de capa e batina. Este meu amigo, outrora mais um entre os demais perdidos neste cemitério comercial de mortos-vivos que ninguém consolará, depois de maltratado e espezinhado, deu a volta por cima e agora frequenta o 2º ano de Gestão, no ISCAC, Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Coimbra.
É ou não lindo vermos alguém que levou um pontapé no traseiro erguer-se das cinzas do ostracismo e, depois de soldado raso, ser agora um aspirante a cabo-de-guerra? Quem é que não tem prazer em ver este mesmo Humberto, pessoa simples, afável e respeitadora, numa nova escalada rumo a um futuro que, mesmo que se augure incerto, para ele, porque da adversidade fez ventura, será sempre um orgulho para a sua pessoa e para todos os seus familiares.
Um grande abraço, Humberto, meu amigo. Muitas felicidades.

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