domingo, 11 de setembro de 2011

FALECEU O SENHOR ABREU




 Se todos os consumidores da Baixa conhecem a sapataria Ginita, na Rua da Fornalhinha, não será menos verdade que a alma desta sapataria, que teria aberto portas por volta de 1960, assentava no proprietário e também muito conhecido aqui no Centro Histórico.
Acontece que nesta roda, que é vida, calhou a vez de ser chamado a contas o senhor Carlos Abreu. Sendo mais directo, o senhor Abreu faleceu. Tinha 76 anos de idade.
Segundo mostra o anúncio da necrologia colado junto à porta do estabelecimento, e exarado pela funerária Borralho, “o corpo encontra-se em câmara ardente na Capela de Nossa Senhora da Esperança, em Santa Clara, onde, amanhã, segunda-feira, dia 12, pelas 14h00, será celebrada missa de corpo presente.
À família enlutada, nesta hora de sofrimento, em nome de todos os comerciantes –se posso escrever assim- desejo os mais sentidos pêsames.

A CRUELDADE DOS HUMANOS

 Com franqueza, estou tão indignado que nem sei como hei-de escrever o que me vai cá dentro. Há cerca de uma hora, ao passar na Rua da Fornalhinha, reparei então no anúncio sobre o desaparecimento do senhor Carlos Abreu. Porque conheço muito bem os seus três filhos e, de um deles até tenho o seu contacto, telefonei a transmitir-lhe os meus sentimentos. Então agora pasme-se: os filhos não sabiam que o pai teria falecido ontem. Ou seja, passadas cerca de 24 horas, foi o meu telefonema que lhes teria dado a notícia.
As razões serão várias e, naturalmente que, embora conhecendo-as, não vou dissecá-las aqui. Para melhor se entender este drama humano –infelizmente tão comum entre nós- vou apenas escrever o mínimo e que o senhor Abreu, viúvo, vivia maritalmente com outra senhora com quem casou posteriormente e depois de ter enviuvado. Por razões que não interessam aqui, repetindo-me, entre esta nova família e os filhos houve um corte profundo nas relações intervivos. Até aqui, tudo normal. São coisas da vida. Culpas de um lado e de outro, e pronto! É mesmo assim! Somos todos iguais, ou quase.
O que não se pode admitir é que tendo falecido o homem, o comerciante, o obreiro, o pai, não tivesse havido a dignidade, a sensibilidade, a transcendência, de comunicar aos filhos consanguíneos que o seu pai pereceu. É demasiado cruel quando as pessoas na morte de alguém chegado, por ódios recalcados, por frustrações mal resolvidas, não conseguem ultrapassar o sentimento de que estão possuídos. É triste! Muito triste. Porque já vivi uma situação muito parecida entendo o que devem estar a sentir neste momento os filhos do senhor Abreu.
Perdoar é o mais nobre sentimento da humanidade –creio que na classe de animais somos a única que odeia- mas para conseguir absolver alguém é preciso estarmos de coração aberto, sentirmos que todos somos finitos e cometemos erros. Todos erramos nesta vida tão efémera. O que custa é não entender a nossa fragilidade comum.
Acabei de vir há cerca de uma hora dos HUC, onde fui visitar três amigos. Um deles, de 51 anos, está em estado terminal com um cancro. Dizia-me ele –melhor escrevia, porque já não fala- que esta vida é uma ilusão. Não vale a pena andarmos para aqui nesta lufa-lufa. Ele, que tanto trabalhou noite e dia, vê-se agora com montes de coisas e o que é mais essencial, que é a sua vida, falta-lhe, não tem. Tenho a certeza que ele e a sua família dariam tudo para se manter por cá. Será que não valerá a pena pensar neste exemplo, que todos os dias se nos apresenta nu e cru?
Então porque razão continuamos a odiar-nos de morte enquanto vivemos –como é o caso da família do senhor Carlos Abreu-, se, enquanto andamos por cá, é uma graça e deveríamos aproveitar este sopro divino?


FILHOS DO ÓDIO


  Depois de ter dado a notícia do desaparecimento do senhor Abreu a um dos filhos, e este ter desabado em choro, confesso –eu que não passo de um inocente- que fiquei comovido e ainda me aumentou mais a minha indignação. Perante esta aparente manifestação de dor fiquei com a certeza de que, esquecendo feridas em carne viva, sofrimentos mal curados e memórias malditas, iriam prestar a última homenagem a quem os gerou e criou.
Ontem, dia do funeral do senhor Abreu e com o corpo em câmara ardente na igreja de Nossa Senhora da Esperança, em Santa Clara, cerca das 12h30, desloquei-me àquela catedral para dar os sentimentos à família. Para minha surpresa, dos filhos nem sombra. Até àquele momento, nenhum deles se tinha deslocado à Igreja.
Hoje fiquei a saber que nenhum deles compareceu no féretro do pai.
Não vou tecer mais comentários. As acções ficam com quem as pratica. No fundo, bem no fundo, reconheço: o que é que eu tenho a ver com isto? Evidentemente que nada.
Escrevi o texto de cima com a convicção de que uma das partes deste drama familiar não tinha agido bem, ao não ter comunicado o desaparecimento de um pai aos filhos. Tenho a certeza de que estava perante uma insensibilidade total. Porém, agora, com este conhecimento novo, não sei o que escrever. Perdi o convencimento na minha razão inicial. Ou melhor, sei apenas que as duas partes em litígio se irão virar contra mim e interrogar: “O que é você tem a ver com isto?”


1 comentário:

Jorge Neves disse...

Conheço o Abreu desde os meus primeiros passos,era amigo do meu pai. Foi na sapataria dele que me compraram os primeiros sapatos que calçei. Até um dia...