sexta-feira, 30 de setembro de 2011

CARTA PARA O EX-COMANDANTE XANANA

(IMAGEM DA WEB)


“Anda baik, pria?”, estás bom, pá? –em indonésio. Como é que vais, meu caro José Alexandre “Kay Rala Xanana Gusmão”?
Passaste cá por Coimbra, há dois dias e nem me vieste dar um abraço, pá. Esqueceste-te de mim, foi?
Estás diferente, camarada, tudo mudou na tua pessoa. Até o teu falar, a cantar –assim como o nosso ministro das finanças, Vítor Gaspar-, já não é o mesmo. Lembro-me de ti quando foste entrevistado por todos os meios de informação internacionais, aquando do massacre do cemitério de Santa Cruz, em 12 de Novembro de 1991, a pedir atenção para o caso Timor.
Consegues visualizar aquela ideia maluca do Rui Marques, em 1992, quando fretou o “Lusitânia Expresso” para a “Missão Paz em Timor", e colocou novamente a tua terra na agenda internacional?
Recordo quando foste preso pelos indonésios em 1992 e estiveste encarcerado sete anos na prisão de Cipinang, em Jacarta –lembras-te quando foste visitado na prisão pelo Mandela?
Bem sei que são interrogações a mais, mas sabes porquê, camarada? É que com esta visita a Coimbra fiquei com a sensação de que esqueceste tudo o que passaste. Não gostei do que vi, meu amigo –já nem sei se posso tratar-te assim. Estava à espera de rever um homem simples, cujo passado de luta, de sofrimento, tivesse deixado marcas indeléveis no seu carácter, e o que vi foi uma pessoa arrogante, vaidosa e que perdeu a sensibilidade perante os mais fracos –não faças essa cara de surpresa. Sabes bem do que estou a escrever. O que tu fizeste há dois dias na Faculdade de Direito de Coimbra é inconcebível para qualquer primeiro-ministro, quanto mais para ti, camarada, tendo em conta tudo o que passaste.
Então, depois de receberes o grau de doutor “honoris causa” atribuído pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, quando num encontro com conterrâneos teus aqui a estudar em Portugal, só porque um timorense, que vive no nosso País há 30 anos e que por acaso até é mestrando em Ciências Jurídicas, afirmou que “os discursos de ocasião são muito bonitos, mas o que é preciso é uma política de educação”, de supetão, abandonaste a sala? “Apa tambang Anda?”, qual é a tua, meu? –novamente em indonésio.
Ainda por cima, deixando uma centena de timorenses a falar sozinhos, saíste com o argumento de que “não estavas ali para ouvir políticas”. Ai não? Então estavas lá para quê? Para seres venerado? Para te darem mais uma comenda, quem sabe uns queijinhos do Rabaçal, ou prestarem vassalagem e mais umas loas?
Foi muito mau, camarada. Acabaste por dar razão ao teu compatriota. Quem diria? Depois de um discurso que proferiste na Sala dos Capelos, tão pungente? Acredita, quando te ouvi, até as lágrimas me vieram aos olhos. Bonito discurso, sim senhor! Sobretudo quando disseste que “o mundo perdeu o rumo … porque só age por reflexo e perdeu a subtileza de ser humano, e se tornou refém da padronização do seu activo íntimo, que é o acto de pensar, de conhecer, de entender… para inspirar acções. (…) O mundo necessita de coragem para romper com as barreiras dos interesses que, pretensamente globais, conduzem a actos de injustiça”.
E então, depois destas palavras de ouro –cá para nós que ninguém nos ouve: não foste tu que escreveste, pois não?-, logo a seguir tens uma atitude daquelas?
Sabes, meu amigo, o que mais lamento? É que da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tão lesta a atribuir doutoramentos “honoris causa” –assim como outras faculdades-, sobre este assunto nem uma palavra. Aliás, devo dizer-te que se não fosse o Diário de Coimbra a noticiar este assunto, ninguém saberia. Que eu saiba, mais nenhum jornal da cidade referiu esse teu gesto, no mínimo, incompreensível. Mas tu sabes do que escrevo. Afinal conheces bem Coimbra, é uma cidade “lambe-botas” –desculpa o termo. Sabes bem do que falo. Não esqueças que a Faculdade de Direito concedeu-te o estatuto de aluno “ad eternum” sem prescrição. E, acredita em mim, este dobrar da espinha vai continuar. E então, se por acaso, para além de umas grandes empresas portuguesas, pudesses comprar parte da nossa dívida pública, ah!, então, poderias contar com um lugar cativo no Mosteiro dos Jerónimos. Um dia, está de ver.
Bem sei que não ligas nada ao que escrevo –afinal até sou um anónimo qualquer, que nem sequer conta para o universo político-, mas se fosse a ti, pelo menos, uma coisa fazia: retratava-me com um pedido de desculpas público aos portugueses e mais particularmente a todos os timorenses que estão em Portugal.
Se acaso te passar pela cabeça em devolver o título de “honoris causa”, não faças isso. Não vale nada. Pela forma continuada como continua a ser atribuído, está transformado numa vulgaridade.
“Pujian untuk Keluarga. Hal ini juga memelukku ketika Ramos Horta" –novamente em indonésio, e, como sabes, quer dizer o seguinte: Cumprimentos à família. Dá também um abraço meu ao Ramos Horta. Diz-lhe também que, embora já tenha um doutoramento do Porto, não fique invejoso com a tua menção honrosa. Daqui a uns dias será a vez dele cá em Coimbra.


(TEXTO ENVIADO PARA CONHECIMENTO AO SENHOR PRIMEIRO-MINISTRO DE TIMOR-LESTE, KAY RALA XANANA GUSMÃO)

1 comentário:

Alcides Rego disse...

Ai amigo Luís, como este texto continua tão actual!