domingo, 31 de julho de 2011

O CRISTO NEGRO DA MARACHA





 Venho aqui escrever sobre um pária que, há cerca de um mês, dorme dia e noite, aos olhos de quem passa, no Largo da Maracha. O estranho é que este pária, apesar de descalço, andrajoso e muito sujo, barba hirsuta e emporcalhada, se parece com gente. E agora, surpresa: Então não é que também tem nome? É verdade: chama-se Anildo Monteiro. Bom, dá para ver que é um apelido rasco, de pobre, está de ver. Sei lá, se ao menos se chamasse Aníbal, António, José… agora Anildo?! E ainda por cima –da pele, está de ver- é preto! Quer dizer, é negro, como negra é a vida para alguns. Como negra é a fome. Como negra é a solidão e o abandono. Talvez por isso, sem que ninguém me encomendasse tal sacramento, baptizei-o de "Cristo Negro da Maracha".
E porquê “Cristo”? Interrogará o leitor. Não sei. Se calhar, transcendo-me para dois mil anos atrás, imagino todos os cidadãos a fixar o filho de Deus pregado na cruz pelos romanos. O seu olhar divide-se entre a acusação, a apatia e o símbolo.
Ora, voltando à actualidade, curiosamente, apercebo-me de que o olhar do povo é o mesmo. Atentam para este “Cristo Negro” com olhar de “acusação”. Indo bem fundo nos seus olhos, parece que o incriminam por ele se ter abandonado, abandalhado, nos braços de uma inércia e desleixo que ele próprio não sentirá. Especulando, é como se, em olhar fulminante, lhe dissessem que todos nesta vida têm de seguir à risca os cânones da convivência. Mais grave ainda -e esta então é imperdoável?!-, então não é que o Anildo sorri? Pois é? Isto é grave! Muito grave! Então a dormir na rua, coberto com papelões, muitas vezes com fome, a sede a ser mitigada com água cheia de bactérias, colhida no Largo do Poço, e o bicho, com aspecto de homem ri? Ri de quê, ou de quem? Às tantas está a gozar connosco. Só pode! E isto irrita, mas logo a seguir a gente acalma, porque pensa assim: “bem feito! Tens o que mereces!” 
E continuamos a andar em frente, porque o tempo urge e não se pode perder com inutilidades… com este… como é que eu disse que se chamava? Bom, esqueci-me, mas também não interessa nada. Continuemos.
Outros há que olham para este animal -que por acaso se parece com um homem… negro, está de ver- com “apatia”. Assim, tipo varrer a área sem se prender em nada. É paisagem. Simples paisagem e nada mais.
Depois ainda há outros transeuntes que miram este… homem -mas ele será mesmo homem? Mas homem, que se diz por aí, ser filho de Deus, não se mostra assim- com um olhar de “símbolo”. Afinal, ao longo da história sempre houve pobres e miseráveis. E não há dúvida que são necessários. Fazem uma falta tão grande que às vezes até os esquecemos. Ou lembramos, sei lá! Nem que seja para provocar a catarse. O que seria este viver de excessos sem estas figuras emblemáticas? Alguém imagina uma cidade cheia de felicidade, luz e cor, onde a abastança impera, sem estes “ex-libris”?
É certo que este homem com aparência pré-histórica não bate bem da tola. Quer dizer, presumo eu, não sei, porque não sou psiquiatra –e se o fosse, para poupar na consulta, tratava de mim. Mas, aqui para esta “estória”, sem história, não interessa nada. Até porque um dia destes iremos encontrá-lo esticadinho. E pronto! Estará resolvido o problema.

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