domingo, 29 de maio de 2011

O ARRUMADOR PINGO DOCE





 São 19h00 deste domingo. Parei o meu carrito junto ao supermercado Pingo Doce, na Baixa da cidade. Reparei que, quase em concorrência directa, dois homens disputavam os carros que pareciam ir estacionar. Os dois tinham bom aspecto. “Demasiado” bom aspecto, escrito assim, até parece que os arrumadores de automóveis têm um arquétipo imaginado por todos nós. E têm mesmo, esse é o problema. Imaginamos que, como bonecos saídos de linha de montagem, todos são iguais. Quando perdemos tempo a pensar, construímos histórias à volta de pendentes em toxicodependências e outras adições. Sem o sentirmos passámos a evitá-los, na forma defensiva de olhar o chão, que é a indiferença no seu grau mais cruel.
Um dos arrumadores teria à volta de 40 anos. Bem vestido, relativamente bem cuidado fisicamente. A barriga saliente mostrava, provavelmente, que sempre vivera desafogadamente, pelo menos até agora. Sempre que se aproximava uma viatura, gesticulava, indicando um lugar vago, como se tentasse apanhar bolinhas de sabão. Se o condutor seguia as suas indicações, estacionava e a seguir ignorava o seu serviço, ia a atrás dele e, com voz dividida entre o cortante de atenção e o meloso de apelo, proclamava: “ó amigo, então não me arranja uma moedinha?”. Se o homem prosseguia a passada ele acompanhava-o até que se dispusesse mesmo a dar-lhe o níquel. Depois de uns tantos gestos positivos, como se ele apenas procurasse dinheiro para comer uma sandes, abandonou o trabalho sem apresentar causa para o despedimento.
O outro arrumador, um rapaz de cerca de 30 anos, constatei, era o oposto deste. Fazia umas indicações delicadas e, curioso, pedia com os olhos. Isso mesmo, quem reparasse nele, veria que era uma pessoa diferente. Porte atlético, rosto pontiagudo acompanhado com dois olhos negros que, certamente já teriam tido muito mais alegria. Olhando para ele de rompante fazia lembrar o Luís de Matos, o mágico de Coimbra.
Como estava com tempo, saio do carro e cumprimento-o, apertando-lhe a mão –é muito importante esta simbologia. Ao manifestar esta expressão de paz, apertando a mão a alguém, estamos a transmitir, através do sinal, que o consideramos igual a nós. E entro a matar, como habitualmente faço em relação a quem não conheço.
-Boa tarde. Como se chama?
Você foge ao modelo que nos habituámos a ver nas pessoas que estão a arrumar automóveis. O que é que se passou para você estar aqui? Interrogo. Nem todos os visados encaram bem, mas a maioria, talvez porque precisem de conversar com alguém, anuem.
-Chamo-me Cláudio Miguel. Olhe, até há cerca de oito meses, eu vivia muito bem. Estava a trabalhar em Espanha –sou carpinteiro de cofragem- e ganhava entre 1400 e 1500 euros, mensalmente. De repente, por causa da crise da construção que também se vive lá, fui despedido e vi-me numa situação de desespero. Há poucos anos comprei uma casa usada ali em Santa Clara, junto aos Correios, para mim e para toda a minha família –tenho mais cinco irmãos, um é deficiente, e a minha mãe. Foi a forma que eu encontrei de lhes dar um tecto, está a ver? Comprei também um carro, que também estou a pagar.
-E de repente é despedido…
-Exactamente. A minha mãe também está desempregada. Estamos os dois a fazer um curso profissional e recebemos cerca de 600 euros os dois. Está a ver, só para a prestação da casa vão duzentos e cinquenta. E como é que comemos? Tive de começar a arrumar carros. Mas custa muito, você não imagina a vergonha que sinto. Sabe, as pessoas pensam que quem está aqui só quer umas moedas para a droga, nunca se lembram que a pessoa com quem não falam, nem olham nos olhos, foi até há pouco um igual a elas. Mas eu não condeno. Até há pouco tempo eu também pensava assim. Olhe que em Espanha partiram-me um vidro do automóvel só para me roubar uma mala com roupa de trabalho.
-E é rentável. Isto é, você aqui a arrumar, dá para fazer face às despesas?
-Ai isso é. Durante a semana venho para cá a partir das 17h00, logo que acabo o curso, e até à noitinha ganho 10… 15 euros. É conforme. Ao sábado, durante todo o dia, dá à volta de 40 euros. Ao domingo, como hoje, é mais fraco.
-Mas você, engraçado, reparei que não pede a ninguém…
-Pois não. Você já sabe porque é que estou aqui. Eu não persigo ninguém para me gratificar. Quem quer dar, dá, quem não quer também não levo a mal.
Eu preciso é de trabalho. O trabalho dignifica. Estar aqui a arrumar, não é que seja indigno, mas é desprestigiante. A vida obriga-me a isto. Claro que, se não tenho escolha, prefiro fazer isto do que andar a roubar e ir parar a uma cadeia.
É triste uma pessoa ter de recorrer a isto. Acredite, amigo, é muito triste. Mas o que é que se há-de fazer?


(Chamo a atenção de que esta história como outras são colhidas em bruto e sem qualquer investigação. O que quer dizer que facilmente poderei ser enganado. De qualquer modo, mesmo que neste caso e noutros o seja, servirá sempre para pensarmos e aprendermos a olhar o "outro" de modo igual a nós)


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"O guardião da margem esquerda"


"A destruição e um estacionamento..."


"Repórter estrábico: uma nota de dez euros"


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2 comentários:

Jorge Neves disse...

Parabens Claudio pela tua grande coragem.

Sérgio Reis disse...

É por estes homens que eu considero ser possível existirem arrumadores em Coimbra, mas é necessário que seja promovida a Licença de Arrumador de Automóveis, e a polícia municipal faça cumprir esta norma.
Conheço mais arrumadores como este que realmente estão para ordenar o estacionamento na nossa cidade.
Estas pequenas medidas, permitem-nos estacionar tranquilamente e sem medos de "não arrumadores". E não ser necessário pensar-mos em soluções radicais e pouco eficazes para o problema.

Sérgio Reis