quinta-feira, 3 de março de 2011

UM GRITO DE SOCORRO VINDO DO AGONIZANTE MERCADO D. PEDRO V

(IMAGEM DA WEB)



 Durante uma dúzia de anos, de 1982 a 1994, diariamente eu corria para a “praça”. Nessa altura eu tinha um pequeno café e restaurante. Estabeleci-me sem capital próprio e com um pequeno empréstimo. Lembro-me de, ali no mercado, ter contactado o meu primeiro fornecedor e a pedir crédito: o senhor António “alentejano” e a esposa, a dona Helena. Pessoas excelentes e de coração enorme. Talvez por ter sido sob os auspícios de um amigo comum, o Daniel Tibério, a verdade é que o senhor António, com a sua graça proverbial, sem me conhecer, abriu-me completamente as portas de par em par do seu estabelecimento de carnes e diversos. Durante toda a vigência do meu reinado na hotelaria fui sempre cliente deste meu amigo.
Naquela altura não havia as denominadas “Regras de boas Práticas” de hoje, saídas das directivas comunitárias de 2005 e em que não se podem misturar alimentos na mesma banca de venda. Nesse tempo, o senhor António vendia quase tudo -excepto carne de vaca, que era exclusivo dos talhos-, desde queijo, carne de porco, conservas, peixe congelado, fiambre, presunto, bebidas em garrafa, azeite, etc. Desde que o mercado abria ao romper da aurora até fechar portas às 16 horas, todos os dias, havia um montão de clientes junto ao balcão do seu espaço de negócio.
Quase em frente estava a Cacilda e o Moura, o marido, a venderem hortaliças, e tudo o que um restaurante precisava, desde tremoços, amendoins até a azeitonas. Andava aí uns vinte passos e estava o Alberto Henriques no seu talho de carne de porco –ainda o mercado não tinha sofrido estas grandes obras que alteraram completamente a sua arquitectura e forma popular de vender. Quem entrava pela parte dos Correios dava de caras com a zona das hortaliças e legumes. Era aqui que as “mulheres do campo” vinham vender o resultado do seu esforço nas leiras em volta do Mondego. Do lado direito estavam os talhos de carne de vaca e do esquerdo os de porco. Mal se transpunha o pesado portão de ferro forjado éramos imediatamente envolvidos num barulho e bulício extraordinário a fazer lembrar um qualquer porto inglês do século XIX. Ali, para além das muitas dezenas e dezenas de vendedores, a todo o momento, eram centenas de pessoas que se atropelavam a comprar. Um dos muitos fiscais do mercado que relembro é o Armando Figo, meu amigo e hoje já aposentado.
Em 1993 abriram as duas grandes áreas comerciais em Coimbra, a Makro e o Continente e o movimento na “praça” começou a vacilar.
Em final da década de 1990, e pondo fim a condições decrépitas de compra e venda, o executivo de Manuel Machado, então presidente da Câmara Municipal de Coimbra, com um projecto arrasador e virado para o futuro, ergueu um moderno mercado, onde não faltam escadas rolantes e um parque de estacionamento subterrâneo.



HELP…HELP…

 Há dias entrou-me portas adentro a “Maria”, uma das muitas pessoas que me conhece e ainda vende no mercado. Como sabe que eu gosto de escrever, assim à laia de desafio, disfarçado de apelo pungente, atirou-me: “porque é que você não vai ao mercado e escreve sobre a nossa situação? Você que conheceu a nossa praça…aquilo é uma dor de alma. Todos os dias morro um pouco com ela!”.
E hoje, coloquei os pés ao caminho e lá fui revisitar e ver “in loco” o Mercado Municipal Dom Pedro V.
Há mais de um ano que não entrava neste grande espaço comercial. Estava à espera do pior. Para minha surpresa encontrei algum movimento na secção de legumes. Não é que houvesse muita gente a comprar, mas, se calhar, talvez porque aguardasse um cataclismo logo à entrada, fiquei agradado com o que vi. Reparei que havia uma grande semelhança etária entre compradores e vendedores. À minha frente, e a cruzarem-se comigo, estavam pessoas envelhecidas. Muitos dos vendedores ainda são do meu tempo de 1990.
Tomo posição num degrau da escada rolante e desemboco no primeiro-andar, onde estão as bancas de frutas e lojas de roupas –até há pouco tempo estas lojas de malhas e tecidos estavam numa galeria por cima da praça do peixe. Com bom senso, chegou-se à conclusão que o cheiro do mar não combina bem com o da roupa.
Aqui já se notam muitos lugares encerrados. Vou direito à zona do pescado. Olho em volta e vejo muitas bancas sem vendedores. Compradores contam-se pelos dedos. Passa por mim o “Zé” Neto, o proprietário de um restaurante na Baixa.
Sigo em direcção à primeira vendedeira de peixe que faz esquina em frente à porta.



E O QUE PENSA QUEM GANHA A VIDA A VENDER PEIXE?

 É uma mulher bela. Ninguém lhe dá a idade que, efectivamente, tem. Parece ter menos 10 anos. Se passasse por ela na rua, provavelmente, imaginá-la-ia professora. Jamais uma vendedeira de peixe –nós mais velhos estamos viciados nos estereótipos. Quando se pensa em peixeira vem logo à ideia o avental e as grandes argolas em ouro de…Rosa Amélia, da Figueira da Foz.
Continuo a olhar para esta peixeira linda que está à minha frente. Para além dos seus cabelos alourados intencionalmente um pormenor me chama atenção: a tristeza dos seus olhos. A melancolia, a solidão, é lactente, palpável a olho nu –reparei que esta similitude era extensível a todos os vendedores com quem falei e me fixei, quer homens quer mulheres.
É a senhora Maria de Fátima Soares, de 50 anos e há uma vintena de anos a vender peixe no mercado municipal. Quando lhe pergunto como vê, actualmente, esta grande área, responde:
-Mal, muito mal, mesmo. Mais 6/7 anos e morre de vez!
As pessoas deixaram de vir ao mercado. Perdeu-se o hábito de comprar aqui. Tanto faz melhorar como não. Os clientes vão para as grandes superfícies. Não temos hipótese nenhuma de concorrer com eles. Lá o estacionamento é grátis e há muito espaço para estacionar. Aqui paga-se, mas, como é pequeno, está sempre cheio. As pessoas estacionam e vão para a Baixa. Ainda bem que é a pagar. Imagine, o que seria se fosse grátis?
O nosso freguês é muito envelhecido. Só cá vem quem ainda faz comer em casa.
-E o movimento é sempre assim tão fraco como hoje? Interrogo.
-Não, felizmente que à sexta-feira e ao sábado vende-se muito bem…mas não chega.
Sabe que antigamente os donos dos restaurantes da Baixa e da Alta vinham todos aqui comprar, agora não. Só cá vem meia dúzia deles…olhe como aí o senhor “Zé” Neto -que entretanto passou. Vem também o senhor Alfredo, do restaurante Paço do Conde, e pouco mais. A maioria vai ao hipermercado. Talvez estes profissionais nem se apercebam o quanto estão a contribuir para o nosso desaparecimento. Só se abastece aqui quem gosta mesmo de peixe do mar. Nos hipers é quase tudo peixe de engorda, de viveiro. Lá também há do mar, mas nós, aqui, apostamos mais no natural…
-Diga-me, com esta pouca circulação ainda vão à lota da Figueira da Foz, como antigamente? Interrogo.
-Agora, devido à pouca clientela, já não justifica irmos todos como antigamente. Há um vendedor que vai e depois vende a quem quiser comprar. No entanto, saliento, ainda há quem vá. Estou a lembrar-me de dois colegas que vão sempre.
-E como é que, uma pessoa como a senhora, que está aqui há 20 anos, isto é, que viveu o apogeu do mercado, agora sente esta decadência?
-Olhe, nem durmo a pensar na vida. É a minha alma que se está a decompor. Não se ganha para a despesa…
Adoro isto! Adoro mexer em peixe! Se não fizerem alguma coisa, para meu mal, acabarei por ir embora e ficar ainda mais infeliz.
-No seu entender o que é que se poderá fazer? Interrogo.
-Não sei bem ao certo, mas uma coisa tenho a certeza: estas lojas não podem continuar fechadas –e aponta para a galeria superior. As pessoas olham para cima e, como se estivessem perante um horror, exclamam: “que desastre!”.
Mas uma coisa tenho de dizer: o que é que a Câmara vai fazer às lojas se não há pessoas?



E O QUE PENSA QUEM VENDE TRAPOS?

 Conheço esta senhora há quase 40 anos -fogo, como estou velho! Trabalhou sempre no comércio da Baixa, numa grande casa comercial que faliu há pouco mais de um ano. Então, como estava disponível, vem fazer umas horas nesta loja do mercado, mesmo encostado ao sítio do peixe. É a Adélia Norberto. Então, diga-me, Adélia, como é que vê este espaço de recordação tão entretecido em fios de memória com a Baixa?
-Está muito mau. Ninguém quer saber. Ninguém faz nada pela “praça”…
-E, na sua opinião, o que é que se poderá fazer? Interrogo.
-Ora bem, para já é preciso gente aqui a circular. Então porque não colocar aqui, nestas tantas lojas vazias, serviços, de modo a que as pessoas tenham de vir cá. Assim no género da Loja do Cidadão, está entender? Uma coisa lhe garanto: estes lugares de venda não podem continuar encerradas. A autarquia deve concessionar estes espaços com brevidade. A bem do Mercado, a bem da Baixa, a bem de Coimbra!

Mais à frente vou falar com outra senhora vendedora, que pediu o anonimato e está sentada a ler uma revista dentro do balcão. Conto-lhe então ao que venho. O que é que se pode fazer para alterar esta apatia, interrogo em jeito de cumprimento.
-Na minha opinião, há coisas que são básicas. Há gente interessada em ocupar as lojas vazias e vir para aqui vender. Já se sabe que estas cedências têm sido feitas por leilão -os dois últimos foram feitos durante o ano de 2006. No primeiro houve duas arrematações de dois espaços e no segundo não houve ninguém interessado.
Até entendo que esta forma de licitação será o modo mais transparente de a autarquia mostrar que está isenta…mas isso seria se estivéssemos numa economia de oferta e procura e onde as duas se equilibrassem. Ora, já se vê facilmente que a oferta de lojas e bancas excede em muito a procura de quase zero. Então, uma vez que o último leilão de 2006 esteve às moscas, o que deveria fazer a Câmara com grande urgência? É óbvio: abrir a possibilidade de negociação particular. E mais: tomar atenção que os valores devem ser obrigatoriamente muito baixos. Bem sei que este mercado, neste momento de crise económica, deve ser uma preocupação constante para a edilidade, mas, não há volta a dar-lhe, temos de acreditar na sua recuperação. Nem quero pensar, mas se eventualmente viesse a encerrar seria uma parte da alma do Centro Histórico que partia. A Baixa começa aqui…e não parece!
Pelo que me apercebo este novo vereador…(ai!, como é que se chama?...João Orvalho, respondo), até me parece muito interessado. Esta semana até andam aí uns jovens finalistas do ISEC a fazer uns trabalhos de curso. Segundo me constou até vão apresentar o mercado a três dimensões.



E QUE VALORES ESTIVERAM EM CAUSA NOS LEILÕES DE 2006?

 Como não tenho acesso a dados, tenho de recorrer a um meu amigo comerciante que sabe tudo o que se passa dentro daquele espaço, mas escusa-se a dar a cara. Peço-lhe então que me dê alguns valores relativos ao último leilão de 2006.
-Ora bem, não penses que sou alguma enciclopédia, ou que tenho memória de elefante, mas vou tentar dar-te números aproximados e que retenho na mente.
Em 2006 foram feitos os últimos leilões para tentar atribuir lugares. Acontece que no primeiro foram cedidos dois e no último já não houve interessados.
Posso dizer também que os valores em causa já eram metade dos praticados em 2004, ano de outro leilão…
-E que valores eram esses? Interrogo.
-Se bem me lembro, porque era da minha área, por exemplo, um talho generalista com 13,5 metros quadrados, andou à volta de 6000 euros, mais IVA –este era o valor de entrada para se poder ter acesso a um espaço assim…
-E a renda desse estabelecimento era cara? Interrogo.
-Não. A renda era de cerca de 56 euros por mês. Aliás, são os valores correntes. Aqui as rendas são muito baratas. Não é por aí que nós iremos à falência. Uma pessoa tem de compreender…tem de se pagar alguma coisa. Não sei bem, mas quase garanto que os valores recebidos actualmente mal dão para os custos de limpeza e manutenção.
-Já agora, lembrei-me, o mercado tem uma associação, não tem? Interrogo.
-Tem sim, mas funciona mal. São sempre os mesmos. Mas, atenção, tenho de ser justo, tu conheces-me, pá! Aqui, por parte dos comerciantes, todos dizem que está mal, mas quando é preciso a sua ajuda ninguém dá. Ninguém se envolve. Logo, já estás a ver porque é que são sempre os mesmos e, é claro, assim, serão mesmo obrigados a funcionar mal.
-Achas que o Regulamento Geral do Mercado deveria ser alterado? Interrogo.
-Não tenho dúvida nenhuma. Os meus colegas estão habituados a pedir…pedir, mas não dão nada. Ora isto não pode continuar. Se querem salvar o mercado, ajudando este novo vereador, que me parece de boa pinta, todos temos de colaborar.
Por exemplo, este espaço comercial, sendo um condomínio fechado, deveria funcionar exactamente como as grandes superfícies. Ou seja com hora para todos abrirem e horário para todos fecharem. E quem não cumprisse levava multa. Ora isto por aqui é um regabofe…abrem e encerram à hora que querem. Não pode ser. Se todos exigem também todos têm de dar.


PODE VER MAIS FOTOS EM "AI, SE A MINHA PRAÇA FALASSE!!...)

(ESTE TEXTO FOI LEVADO AO CONHECIMENTO DO NOVO VEREADOR DO PELOURO, JOÃO ORVALHO)


1 comentário:

Jorge Neves disse...

Como existem muitas lojas vazias na parte superior da zona de venda do peixe, muitas bancas de peixe por serem ocupadas e por ser um espaço bastante agradável eu sugeria uma ideia um pouco rebelde mas bastante lucrativa para a autarquia que vou passar a descrever.
Dei uma volta com o amigo Luís pelo MERCADO D. PEDRO V e reparei que existem bastantes lojas vazias e bancas sem serem utilizadas.
Se tecnicamente for possível reorganizar o Mercado, sugeria que as bancas de peixe fossem transferidas para outra zona deixando o lugar onde estão instaladas totalmente vagas, isto porque pergunta você?
Por uma razão simples, a minha ideia era transformar toda aquela área da venda de peixe num grandioso restaurante/ bar, com possibilidade de discoteca já que não se situa numa zona residencial e até tem estacionamento.
Esse novo espaço poderia ou deveria funcionar em regime de aluguer nos moldes do NB ou o Bar Still.
Este novo espaça na cidade e pela zona onde seria dava uma nova alma ao Mercado D. Pedro V e um aumento de receitas por parte da Câmara Municipal de Coimbra, que por sua vez poderia diminuir a base de licitação para quem quer vir a operar no Mercado.